Baby Fútbol: o segredo e a raiz do futebol uruguaio
Como o Uruguai consegue revelar jogadores de alto nível, geração após geração, apesar da pequena população? Qual o processo? Como ele funciona?
Chega mais um final de semana no Uruguai. Os pais e mães pegam seus filhos pequenos, a garrafa térmica, o mate, um par de cadeiras e tomam o rumo da cancha do bairro. Se instalam às margens do gramado aguardando o apito inicial, enquanto o seu aspirante a jogador de futebol se reúne com os colegas para ouvir as últimas instruções do treinador.
Seria apenas mais uma cena de um sábado ou domingo qualquer, não fosse o significado por trás de tudo isso. Em meio a toda essa logística comunitária, mora o grande segredo e a gênese da formação do futebolista uruguaio. Enzo Francescoli, Diego Forlán e todos os outros grandes celestes da história começaram assim. É dia de Baby Fútbol.
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A olho nu, o futebol bicampeão mundial desafia a lógica demográfica. Com pouco mais de 3 milhões de habitantes, o Uruguai revela jogadores de alto nível em quantidade e constância que muitos países de maior população sequer conseguem se aproximar. E os aparentemente inofensivos confrontos entre crianças possuem um papel crucial para que tal fenômeno ocorra.
O surgimento do chamado Baby Fútbol data da década de 1960, quando foram fundados pequenos clubes de bairro em Montevidéu, em torno dos chamados potreros (pequenos campos de futebol). A partir dali, as ligas começaram a tomar forma, até chegar na estrutura que há atualmente país a fora.
Hoje existem 62 ligas registradas oficialmente no Uruguai, englobando cerca de 600 times para crianças entre 6 e 13 anos, zona de idade que comporta o Baby Fútbol. O número de pequenos que participam não deixa de ser menos impressionante. A estimativa é de que 60 mil meninos e 3 mil meninas praticam o futebol infantil nestes clubes. Com uma população de 716.416 pessoas entre 0 e 14 anos, de acordo com o censo mais recente realizado no país em 2011, essas 63 mil crianças representam uma fatia de 8,8% da faixa etária praticando o esporte.
Ambrosio Rosiello, presidente da Liga Uruguaia de Baby Fútbol, ressalta que esse número se dá também pela inclusão cada vez mais precoce dos garotos e garotas nas atividades:
“Hoje em dia, as crianças tem contato com a bola a partir dos 5 anos. No começo, era algo que acontecia a partir dos 7 ou 8 anos. Com toda a tecnologia e com o que temos hoje, isso se fomentou mais. Isso é a raiz do futebol uruguaio. Incentivar as crianças a jogarem futebol desde cedo”
SOB A BATUTA DO GOVERNO
O organograma do Baby Fútbol no Uruguai não começa e termina apenas nas ligas e nos clubes. Acima de tudo isso, há um braço político ligado ao governo nacional.
Também nos anos 60, junto aos primeiros passos desta escola futebolística, surgiu a Comissão Nacional de Baby Fútbol. Mais recentemente, no começo dos anos 2000, a entidade mudou seu nome e hoje atende por Organização Nacional de Futebol Infantil (ONFI).
A instituição está debaixo do guarda-chuva da Secretaria Nacional do Esporte do Uruguai, e tem a incumbência de reger as diretrizes para a estruturação e fomento do esporte para crianças no país. Mais do que apenas ditar os rumos do Baby Fútbol através de regimentos, a ONFI é a responsável por auxiliar financeiramente as ligas e equipes através do fundo criado com este objetivo, além de fornecer a capacitação para dirigentes e treinadores.
Carlos Sintas, coordenador esportivo do clube Enrique López, reconhece que tal investimento e preparo são pontos importantes para a evolução do Baby Fútbol como ferramenta para a revelação de jogadores.
“Atualmente se treina mais. Não digo profissionalmente, mas se dá maior importância a isso. Antes, há 40 anos, quando eu jogava no Baby Fútbol, íamos aos jogos e jogávamos no sábado ou domingo. Às vezes tinha algum pequeno treino. Hoje não. Os clubes têm escolinhas, treinam muito mais. Inclusive, os técnicos tem uma formação maior agora. A ONFI, que dirige tudo isso, se preocupou em melhorar a formação dos treinadores. Se exige um pouco mais deles. Entretanto, em algumas ligas ainda há alguns treinadores não capacitados, mas os clubes se dispõem a aprimorar isso”
A INFLUÊNCIA SOCIAL E COMPORTAMENTAL DO BABY FÚTBOL
O Baby Fútbol já é um costume entranhado na vida dos uruguaios. Entretanto, a influência disto vai muito além do simples hábito de ir em família até os campos de bairro nos finais de semana. Há muito mais inserido nisto. Rúben Silva, presidente da Associação Uruguaia de Futebol Infantil (AUFI) – mais uma das ligas existentes pelo país –, exalta justamente este lado, pouco valorizado dentro do esporte na maior parte das vezes.
“É o maior movimento de voluntariado que existe no Uruguai, e isso está aglutinado em torno de uma paxião nacional que é o futebol”
Antes de qualquer coisa, o Baby Fútbol é uma ação social e comunitária. Não é raro ver pais, mães e até mesmo as crianças envolvidas em atividades extracampo nas localidades, principalmente ajudando a preservar e manter a estrutura dos clubes e dos campos de jogo. E isso acaba sendo uma via de mão dupla.
Muitas destas equipes estão localizadas em zonas de alta vulnerabilidade das cidades, com todas as mazelas e riscos que isso pode oferecer para o desenvolvimento de uma criança. Como frisa o jornalista do diário El País, Juan Pablo Romero, as agremiações são fundamentais para apartar meninos e meninas de uma realidade violenta.
“O Baby Fútbol é uma obra social importante, com muita gente envolvida para que as crianças não estejam nas ruas. Muitas vezes, os clubes fazem ações até mesmo para dar o que comer às crianças quando as dificuldades são grandes”
Por conta desta dura rotina, o futebol acaba se tornando não apenas um escape da violência, mas uma forma de buscar um padrão de vida mais confortável. Somado a isso, muitos pais acabam projetando nos filhos o sucesso que não alcançaram, criando um ambiente de pressão que afeta as crianças.
A reestruturação da Seleção Inglesa e o futebol multicultural na Premier League.
Isso não passa despercebido por quem trabalha com o dia a dia do futebol infantil. Sintas fala que tal comportamento, de pais pressionando filhos, acarreta em uma dinâmica pouco proveitosa para as crianças dentro de campo, e que é necessário se mobilizar para coibir este ato.
“Isso acontece em uma alta proporção no geral. São muitos pais que exigem demais das crianças. É comum que queiram que os filhos alcancem aquilo que eles não conseguiram. E isso é bastante contraproducente. Acaba influenciando muito em algumas crianças, pois jogam para satisfazer seus pais ou jogam perturbados pelas indicações do seu responsável na arquibancada. É um trabalho árduo para combater isso”
O PROCESSO DE FORMAÇÃO, A EVOLUÇÃO E O GARIMPO
Se por um lado a pressão dos pais atrapalha na orientação em relação ao jogo ou na vontade da criança praticar o futebol como algo lúdico neste começo, por outro, ajuda a alimentar o perfil psicológico e mental do jogador uruguaio. Um tanto estereotipado, é verdade, porém ao mesmo tempo fácil de perceber que é real em um quadro mais amplo.
O atleta aguerrido, obstinado, que não desiste de nenhuma jogada, surge ali. Além dos pais que desejam ver os filhos vencendo – na vida e em campo –, vários clubes alimentam essa busca pela vitória, priorizando o resultado em detrimento da formação técnica e do desenvolvimento dos jovens. Mesmo em um cenário de aprimoramento metodológico nos últimos anos, os atributos inerentes à personalidade acabam se sobressaindo em relação ao lado conceitual, segundo Sintas.
“Dentro disto, se faz muito difícil a formação. Mas eu sempre digo que por trás da essência do jogador uruguaio e da forma como o jogador uruguaio atua de uma forma geral, está o Baby Fútbol. Tem-se a visão de que desde pequeno há que se ganhar. Não se pode deixar o outro sair jogando e ter a bola. Tem que ir à frente e lutar por ela. Quando mais velhos, acabam sentindo pouco a questão da pressão, pois estão acostumados desde pequenos. Por isso, quando há campeonatos de futebol juvenil, sobretudo em idades mais jovens, o Uruguai tem êxito. Não sentem a pressão e eles são fortes em todos os sentidos, física e psicologicamente. Os conceitos de futebol ainda não conseguem ser tão aplicados, embora já se esteja trabalhando muito mais para isso”
Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, em 2018, o zagueiro Diego Godín comentou sobre o duro ambiente que o Baby Fútbol produz para as crianças darem seus primeiros chutes. O ex-Atlético de Madrid e atual jogador da Inter de Milão reafirma o modo como esse conjunto de fatores atua sobre quem começa a se forjar como jogador.
“Às vezes, os pais são o pior. Brigam com o técnico, com os adversários, com o próprio filho. Demandas que não deveriam ser feitas a crianças de 7, 8, 9 anos são feitas, com obrigações e responsabilidades que elas não deveriam ter. Isso não é bom, mas a verdade é que impulsiona os jogadores. Eles melhoram, competem e crescem. Eu tive sorte. Meus pais usavam isso como uma ferramenta para me fazer estudar e ter bom comportamento. Se eu não tirasse boas notas, não jogava”
Diego Godín, zagueiro uruguaio
O fato é que mesmo com todos estes obstáculos, nos últimos anos se acompanha uma gradual mudança de característica nas revelações uruguaias. Se há algum tempo peças de maior refino com a bola no pé eram exceções dentro de uma geração, e a maioria atuando em setores mais avançados do campo, hoje já não é assim. Recentemente, jogadores como José Maria Giménez, Federico Valverde e Lucas Torreira encontraram o caminho do sucesso no futebol internacional em posições onde a regra, ao menos no Uruguai, era valorizar atletas de maior força física, com a técnica em segundo plano. E nessa ascensão, não deixaram de lado os clássicos traços de ímpeto particulares do país.
É importante destacar que o Baby Fútbol possui as suas especificidades para comportar a capacidade física e a idade das crianças. Os campos são menores, as goleiras são menores e a quantidade de jogadores nos times são menores, com algumas variações de liga para liga e de categoria para categoria. O habitual são canchas de 60 x 40 metros de dimensão, com equipes tendo entre 7 e 9 jogadores. Em faixas etárias mais avançadas, principalmente após os 10 anos, as dimensões costumam aumentar e o 11 contra 11 é mais corriqueiro.
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Mas o Baby Fútbol não é um fim em si. Ele é a apenas a ponta de um processo que tem a observação contínua dos principais clubes do Uruguai. Peñarol, Nacional, Defensor, Danubio e vários outros das principais divisões do país buscam nos pequenos clubes de bairro os seus próximos pupilos. Na AUFI, por exemplo, a aproximação das equipes com os jovens acontece por meio de programas promovidos junto à liga, conforme Rúben Silva.
“Na prática, existem projetos institucionais dos clubes, e através do futebol infantil captam jogadores para que, no futuro, eles sejam incorporados às suas divisões juvenis”
Os olheiros também são parte fundamental nesta corrida por jogadores dentro do Baby Fútbol. Eles permanecem em contato constante com treinadores e dirigentes atrás de algum novo fenômeno que demonstre desde cedo o potencial para atingir o topo. E nesta relação, também é natural que o caminho inverso seja feito, como relata Sintas.
“As equipes profissionais nos procuram em busca de jogadores, mas há também ocasiões em que os clubes de Baby Fútbol levam as crianças a elas. Muitas vezes sugerimos que as crianças vão a clubes maiores, e enquanto atuam conosco, treinam também lá. Com isso, vão aprimorando o seu desenvolvimento em determinadas agremiações que sabemos que tomam todos os cuidados com elas”
Na esteira desta máquina, quase a totalidade dos jogadores uruguaios chegaram ao profissionalismo nas últimas décadas, desde o reserva do Central Español na 2ª divisão até o ídolo nacional Luís Suárez. O Baby Fútbol é o denominador comum a todos eles. A organização, a mobilização e a paixão com que lidam com o futebol são exemplares. E enquanto houver um grupo de crianças dispostas a batalhar todo final de semana por uma bola, o Uruguai seguirá produzindo talentos independentemente da quantidade de pessoas que há em seu território. Se a vida sempre encontra um caminho, o futebol nas terras celestes também.
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