O que está por trás da tendência dos 3 zagueiros na Serie A italiana

Inter de Inzaghi, Torino de Juric, Atalanta de Gasperini, Roma de Mourinho, por que tanta gente usa uma defesa com 3 zagueiros na Itália?

Em cada rodada da Serie A, se busca em locais como o das “prováveis formações” da rodada da Gazzetta dello Sport, em seu site, o que cada time irá escalar nas partidas do campeonato. Seja para busca no Fantacalcio (o Cartola deles), seja para apenas se informar, um caminho é buscado pelo torcedor, pelos analistas para saber como os times irão jogar.

Neste momento, a tabela de prováveis formações mostra uma tendência crescente para além de jogadores: a crescente volta aos sistemas de três zagueiros na Itália, em que neste momento, oito das 20 equipes da primeira divisão italiana utilizam como base de suas formações táticas.

E nesse modelo temos cases de sucesso, como o caso da Atalanta de Gasperini, que é um dos principais pontos disso, o da Inter de Inzaghi, treinador que já utiliza desse esquema desde a Lazio, enquanto os nerazzurri herdaram a base dele de Antonio Conte, outros velhos conhecidos, como Walter Mazzarri e o seu Cagliari, e Ivan Juric, que consagrou o modelo por onde passou, e hoje o faz no Torino, enquanto outros já se apressam para fazer transições ao modelo, como José Mourinho com a Roma.

Mas por que essa tendência tem sido tão crescente, como temos reparado nos últimos tempos, pelo sucesso dos nerazzurri, tanto de Bérgamo, quanto de Milão, e porque tantos técnicos querem seguir este modelo, como já debatemos em colunas e nos nossos podcasts, e é o debate do texto referência para este post, de Dario Pergolizzi, em L’Ultimo Uomo:

A resposta pode estar em uma teoria dita por Antonio Gagliardi, um dos chefes de scout da seleção italiana, em um tweet publicado em dezembro de 2019: no futebol moderno, o papel do jogador não está mais restrito a uma posição, mas a uma função. 

Hoje existem necessidades diferentes, em primeiro lugar do ponto de vista posicional: ou seja, um jogador está mais frequentemente envolvido em atuar em posições diferentes daquela “prevista” pelo seu papel, e é comum ver situações em que se pode haver inversões temporárias de posicionamento. 

A partir disso, a função não pode ser entendida como fixa, estável, único, caso contrário não mudaria muito do próprio conceito de “papel”; também porque, embora um jogador possa ser mais solicitado em alguns aspectos com base em sua posição na estrutura do time, mesmo levando em consideração isso existem caminhos de combinações possíveis e mutáveis ​​baseadas nas relações com companheiros, adversários, espaços.

Para manter uma abordagem ofensiva e dominante apesar da utilização de jogadores mais defensivos, o seu envolvimento mesmo nas zonas mais avançadas do campo é essencial, tanto para minar o bloco adversário como para atrair ainda mais pressão criativa no seu meio-campo. 

Num futebol em que cada vez mais equipes, independentemente da disponibilidade financeira ou dos objetivos finais, tentam aumentar a sua influência no controle da posse de bola, tem tido um reflexo na pressão e nas variações de atitude sem bola. 

Ir buscar a bola na frente ou esperar por uma equipe que construa de trás implica por sua vez uma adaptação de quem tem a bola, pois, afinal, o futebol é um jogo de confronto, e mesmo as intenções iniciais mais proativas devem fazer com que você conte com o escolhas do adversário. Com as linhas mais recuadas, os defensores se viram cada vez mais envolvidos em atrair o rival, tanto quando ele pressiona quanto quando espera, para que a posse não seja um fim em si mesma.

A Inter de Conte, por exemplo, foi uma das equipes que nos últimos anos enfatizou mais o uso de três zagueiros para atrair pressão em sua própria área, a fim de liberar espaços para os dois atacantes. Para isso, Conte trabalhou arduamente na capacidade de Skriniar, De Vrij e Bastoni de gerir a posse de bola, fato que gera reflexos até hoje com Inzaghi. 

O esquema funcionava assim: antes de começar a avançar mesmo sem a bola, os dois lados eram muitas vezes a principal referência de Handanovic, ou em qualquer caso, estavam diretamente envolvidos na atração de pressionar mesmo em momentos de grande congestionamento. 

Podendo contar com três homens próximos a seu goleiro, a Inter de Conte conseguiu manter seus jogadores de lado no alto e seus meio-campistas nas entrelinhas, de modo a garantir uma aceleração mais rápida da jogada assim que a bola saísse verticalmente, por exemplo, com combinações rápidas de entrada-saída ou frente-trás-frente. 

Sem a atração da pressão dos zagueiros, a Inter teria tido menos soluções no início acima da linha de bola. O texto de Dario Pergolizzi cita uma possível solução para problemas no quesito: 

Nesse caso, uma opção contra equipes que pressionam ferozmente a construção baixa pode ser elevar o zagueiro central sobre a linha da frente no início, com o resultado de abaixar um dos primeiros pressionadores adversários ou trazer um dos seguintes para a frente, criando espaços na frente ou atrás, ou — se ignorado — ao encontrar o jogador livre nas entrelinhas. Nesses casos, quando o zagueiro central recebe em uma posição mais avançada, ele exerce uma função de atração no corredor central.

A atração pode ocorrer de forma mais vertical, ou seja, quando o defensor é chamado a incitar o adversário que resta a defender uma área mais recuada, a fim de abrir espaços sucessivos que possam ser atacados, muitas vezes através de combinações com o terceiro homem. 

Nesses casos, os defensores ficam livres para jogar até uma certa altura e a pressão não começa até que ocorra um gatilho. O defensor, portanto, pode manipular diretamente essa atitude por meio de condutas decisivas, mais ou menos rápidas, que se dirigem ou passam para o lado da primeira linha adversária e se dirigem para a segunda, tentando em qualquer caso manipular a pressão para abrir novos espaços, ou para esmagar o oponente até que ele apareça.

A atração pode ser aquela que ocorre mesmo sem contato direto com a bola: quando, ou seja, o posicionamento de um ou mais jogadores à frente do adversário por si só influencia na decisão. No caso da defesa de três homens, a estrutura para a circulação é bastante sólida, pois as duas laterais estão posicionadas diagonalmente em relação ao central, de modo a dificultar que um ataque composto por um ou dois pontos perturbe ativamente a posse de bola, devendo optar por se orientar para os defesas exteriores e abrir uma brecha central, ou ficar para proteger o centro, dando ao defesa lateral potencialmente espaço para progredir.

A ocupação de espaços em campo

O futebol é um jogo de ocupação de espaço: independentemente do estilo de jogo de uma equipe, o objetivo principal continua a ser chegar ao gol adversário, e para alcançá-lo com mais facilidade é melhor entrar nela, no território adversário. 

O que uma equipe faz para reduzir as chances do adversário de chegar ao gol determina as possibilidades de ação, em especial a formação de espaços a serem explorados, não apenas nas áreas deixadas livres pela estrutura sem a posse da bola, mas também no interior. 

As possibilidades de trabalho de um jogador na defesa de três zagueiros são muitas, e como dito pelo texto de Pergolizzi, andam de mãos dadas com a inclinação da equipa para realçar ou não a atração da pressão e com a atitude do adversário.

Em circunstâncias em que as linhas são altas, a ocupação do defensor — que muitas vezes ocorre na lateral ou no meio-espaço, os chamados “half-spaces” — é uma arma essencial para influenciar as decisões defensivas do bloco baixo, servindo como solução de passe direto ou mesmo apenas movendo a atenção de um defensor por alguns metros ou por algumas frações de segundo. 

A ocupação de espaço que parte da linha de fundo é mais difícil de ler e trabalhar porque as condições numéricas de partida mudam no meio-campo adversário, e é muitas vezes acompanhada por movimentos compensatórios de cobertura por parte dos jogadores mais avançados, o que por sua vez pode tirar o tempo e desunir a equipe defensora.

Entre as equipes atuais mais virtuosas neste aspecto estão as de Gasperini e Juric, mas também a Inter de Inzaghi. A capacidade destas equipes, embora naturalmente diferentes umas das outras, de ocuparem as armas dentro do bloco adversário, seja para receber diretamente um passe progressivo ou para manipular a estrutura e favorecer a desmarcação de um dos companheiros mais avançados é um dos aspectos mais característicos de seu jogo de posse.

Aqui, Buongiorno (circulado), terceiro zagueiro do Torino, entra na área, tirando um zagueiro do Empoli e abrindo espaço para a centralização de Pjaca. (Foto: L’Ultimo Uomo)

Outro bom exemplo diz respeito às inserções do zagueiro central da defesa de três zagueiros da Atalanta, ainda que mais raras, especialmente nos tempos sem Toloi, talvez por serem mais complicadas de compensar através de rotações (que são favorecidas quando um dos lados é lançado para a frente) especialmente para isso. 

Por outro lado, isso implica do ponto de vista defensivo com tipos de marcações preventivas. Afinal, ao jogar em um contexto acostumado a explorar os espaços de uma certa forma, é quase fisiológico que até mesmo a disposição dos jogadores menos acostumados a começar, por posição ou características, mude.

Os movimentos dos defensores de Atalanta ou Torino tendem a ter uma influência principalmente “espacial” no desenvolvimento da ação, enquanto no caso da Inter de Inzaghi os avanços de Alessandro Bastoni se tornaram uma marca icônica também pela qualidade da gestão da posse pelo zagueiro, que muitas vezes aparece na entrada da área ou chegando pra finalizar.

Vale dizer também que o movimento de ocupação do zagueiro também pode ser útil para preencher a área em situações de grande dinamismo que podem ter afastado alguns atacantes da área adversária. Neste sentido, os movimentos dos laterais podem ser particularmente importantes quando o extremo ou o ponta tem a bola. 

Assim, se pode dar uma solução dinâmica de passe ou simplesmente para afastar um defesa e isolar o companheiro de equipa face ao adversário direto. Essas circunstâncias ocorrem principalmente ao longo dos corredores laterais, através do que se costuma chamar de sobreposições internas ou externas, movimentos que dão suporte avançado ao ataque posicional.

A correção de posicionamentos

Os defensores laterais da defesa de três homens também podem ser fixadores de amplitude em várias alturas do campo, através de movimentos de posicionamento que têm a função de desestabilizar a organização defensiva criando possíveis linhas de passagem abertas que podem “alargar” o adversário, ou seja, obrigando-o a optar por sair lateralmente deixando espaços no meio ou ficar, deixando livre a linha de passe externa. 

Este tipo de posicionamento é a demonstração de como se pode participar ativamente no desenvolvimento de uma ação ofensiva mesmo sem tocar na bola. Definir as linhas, assim como confundir o bloco defensivo, também pode servir simplesmente para permitir que outro jogador possa avançar, por dentro ou pelos lados.

Para que seja sustentável, a ampliação do avanço do zagueiro é muitas vezes acompanhada pelo recuo de outro companheiro de equipe que cobre o avanço. Com a defesa de três zagueiros este tipo de apoio pode ser realizado com bastante calma dada a presença de um central adicional na cobertura, que pode ser acompanhado pelo recuo de um meia ou de um volante.

Aqui, Danilo, que faz a função do terceiro homem de zaga pela esquerda ocupa a posição central do campo, em um contexto onde o volante recua. (Foto: L’Ultimo Uomo)

Porém, não existe apenas a amplitude lateral, existe também a vertical, que é a extensão em profundidade do conjunto: mesmo posicionando-se verticalmente, atrás de uma linha de pressão, ou mesmo em profundidade, na última linha, a função do fixador pode servir para bloquear um ou mais adversários.

Sendo uma tarefa que normalmente ocorre muito longe da zona de bola, as circunstâncias em que um zagueiro pode estar envolvido são menos frequentes, por exemplo, do que aquelas em que os mesmos jogadores propõem um passe direto correndo para a frente.

Apoiar e prevenir

Participar da posse de bola no futebol contemporâneo não significa, portanto, apenas receber a bola ou movimentar-se para recebê-la, mas também ter uma utilidade funcional por meio de outros posicionamentos e movimentos relacionados aos companheiros ou adversários, que em qualquer caso influenciam a ação. 

Dario Pergolizzi cita no texto que zagueiros podem ter a sua utilidade na posse de bola mantendo-se atrás de quem tem a bola, antes de mais nos casos em que possam atuar como solução de descarga para trás para aliviar a pressão, reciclar a posse, para assim encontrar um momento de pausa no jogo em progressão para permitir o reposicionamento do resto dos companheiros de equipe. 

Estando em média em uma posição mais recuada do que o resto de seus companheiros, os defensores muitas vezes podem se envolver em dinâmicas de jogo que exigem sua movimentação para apoiar o goleiro, circunstância que pode ser frequente, por exemplo, quando um atacante recebe a bola e é ativado, o gatilho da pressão do rival, e talvez não encontre soluções progressivas.

Este tipo de posicionamento não tem apenas uma função de envolvimento direto, não necessariamente resultando em passe para trás, mas também de prevenção, de cobertura em relação ao companheiro de posse, no caso de perder a bola por qualquer razão. 

E este último aspecto permite-nos explorar a última nuance da defesa de três homens em circunstâncias ofensivas, função que efetivamente “fecha” o ciclo do jogo e liga indissoluvelmente as chamadas fases, ou seja, a da defesa preventiva.

Mesmo sem atuar como apoio direto aos companheiros, os três zagueiros podem ter uma funcionalidade direta no aumento do nível ofensivo da equipe por meio de sua influência na guarnição preventiva da zona central, tanto por ficarem próximos aos atacantes adversários como antecipá-los em caso de transição defensiva. 

E isso acontece tanto por reduzir a distância com o resto dos companheiros de equipe de forma mais confortável em comparação com uma zaga composta por dois jogadores, podendo ter os “braços laterais” prontos para soltar no meio-espaço ou fazer densidade no corredor. 

Em suma, a defesa de três zagueiros, outrora identificada como uma escolha conservadora por excelência, ligada ao imaginário da linha baixa, do catenaccio e da guarnição da área, pode sim ser a mola que desencadeia um posicionamento ainda mais agressivo da equipe, tudo por conta de se pensar em funções.

Pensar por funções e não por papéis nos ajuda a perceber e estudar as possibilidades de ação de todos os jogadores em campo. No caso das alternativas de jogo ligadas à defesa com três zagueiros, podemos destacar as escolhas táticas que se baseiam sobretudo na necessidade de manipular ou limitar o adversário. 

Se colocarmos esses pressupostos em perspectiva com as exigências do futebol moderno, na realidade não muda muito: a contribuição ofensiva dos zagueiros também é uma arma adicional para manipular o adversário ou limitá-lo das mais diversas formas. 

Se pode fazer isso criando uma superioridade numérica ou dinâmica frente à primeira linha de pressão, ocupando a área ou a ala, ou posicionando-se de maneira alta. Por fim, os zagueiros não atuam ativamente sobre o adversário nas únicas circunstâncias defensivas, mas também nas ofensivas, bem como para o resto seus companheiros. 

Essa mudança de paradigma traz inovação tática, mas também um desenvolvimento natural de novas qualidades técnicas, bem como o nascimento de interpretações e estilos de jogo peculiares, inclusive individuais. 

Atualmente o uso de uma primeira linha de três está tendo certa popularidade porque, como vimos, se abordado com certa fluidez interpretativa, pode ser algo eficiente para montar uma equipe competitiva, e atualmente na Serie A, muitos treinadores acreditam que esse sistema é o caminho para as vitórias.

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