30 anos da Copa do Mundo de 1990: da reunião à Itália
A Copa do Mundo da Itália influenciou as regras do jogo, viu a popularização dos três zagueiros e teve grandes nomes, como vimos nos três primeiros dias da série do Footure sobre os 30 anos da Copa do Mundo de 1990. Mas na parede da memória daquele Mundial ficaram as imagens de dois jogadores que não estavam entre os principais destaques antes de o torneio começar. Hoje, falaremos de Roger Milla e a surpreendente campanha de Camarões. Amanhã, sobre Totò Schillaci, eleito o melhor jogador daquela competição.
Quando a pandemia passar, e se você tiver uma boa quantidade de reais na sua conta, uma boa opção para as férias é a Ilha da Reunião. Território francês, aquele grande pedaço de rocha vulcânica localizada próxima de Madagascar, no Oceano Índico, é cercado pelas cristalinas águas do Oceano Índico. Conhecida como “o Havaí francês”, a localidade também atrai o turista que vai em busca de trilhas e cachoeiras. Um lugar agradável para sair da rotina, mas pouco propício para ir buscar um jogador de futebol para disputar uma Copa do Mundo.
O semiamador futebol reunionense contava em 1990 com a ilustre presença de Roger Milla. O camaronês jogava pelo Saint-Pierroise, maior vencedor da liga local. Sua carreira tinha praticamente acabado. Era um semiaposentado, por assim dizer. Seus jogos de despedida levaram mais de 100 mil pessoas aos estádios em Camarões. Então o telefone do centroavante tocou. Do outro lado da linha o presidente camaronês Paul Biya o convocava para a Copa do Mundo, passando por cima do técnico soviético Valeriy Nepomnyashchiy, comandante da Seleção Camaronesa. O atacante não pôde dizer não ao presidente e, assim, trocou o calor tropical pela efervescência da Copa da Itália.
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Mesmo nos tempos atuais, em que cada movimento em campo vira estatística, o que Milla fez há 30 anos ainda seria considerado espantoso. O camaronês tinha uma carreira digna, mas de pouca repercussão no mundo do futebol. Havia disputado a Copa de 1982, tinha sido eleito o melhor jogador africano em 1976 (voltou a ser agraciado em 1990) e uma passagem consistente, mas como coadjuvante, pelo futebol francês, defendendo Monaco, Bastia, Saint-Étienne e Montpellier. Mas comparando com africanos que brilharam na Europa neste século, como Yaya Touré, Drogba e seu conterrâneo Eto’o, Milla tinha um currículo modesto.
Os caminhos percorridos pelo camisa 9 camaronês ainda eram a exceção no país. Dos 22 jogadores que representaram os Leões Indomáveis no Mundial da Itália, metade ainda jogava em Camarões – em 2014, última vez em que o país foi à Copa do Mundo, um único integrante do elenco atuava no futebol local. Mais estrelas, no caso, não significam maior brilho. Em 1990, mesmo sem um jogador que se destacasse em uma grande liga, foi a primeira e única vez que os camaroneses passaram da fase de grupos. A ida até as quartas de final ainda não foi superada por nenhum outro país africano – Senegal, em 2002, e Gana, em 2010, igualaram a marca.
Antes da abertura da Copa, em Milão, era mais fácil encontrar alguém que soubesse soletrar o sobrenome do técnico Valeriy Nepomnyashchiy do que um lunático que apostasse na vitória de Camarões sobre a Argentina de Maradona, atual campeão mundial. O improvável não é impossível, e Omam Biyik, de cabeça na linha da pequena área, marcou o 1 a 0, em falha de Pumpido. A vitória por si só era inimaginável, mas ela se torna mais surpreendente ainda porque os africanos jogavam com um jogador a menos após a expulsão de Kana-Biyik, irmão de Omam. Milla entrou nos minutos finais da partida sem influenciar o placar.
Tão raro quanto encontrar um italiano que gesticule pouco é achar um reserva em Copas do Mundo como Milla. Aos 38 anos e prestes a pendurar as chuteiras, ele não foi titular em nenhuma partida do Mundial, entrando no decorrer das cinco apresentações de Camarões na Itália. Ao todo foram 234 minutos em campo e quatro gols. Como comparação, naquele Mundial, o Brasil jogou 360 minutos e marcou os mesmos quatro gols.
Contra a Romênia de Hagi, na segunda rodada, Milla foi à bandeirinha de escanteio requebrar os quadris dançando salsa para comemorar os seus dois gols na vitória por 2 a 1. Com carisma, passos de dança e vitórias, os camaroneses foram ganhando espaço nas manchetes e o carinho do público. Talvez a empolgação tenha contagiado o time e a fase de grupos foi encerrada com uma derrota por 4 a 0 para a União Soviética, o que não impediu uma das partidas mais coloridas da história das Copas nas oitavas de final, já que, apesar da goleada, Camarões terminou em primeiro lugar do grupo.
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Junte o molejo de Milla e a vasta cabeleira amarela de Valderrama e a inconsequência de Higuita e aquela partida contra a Colômbia pelas oitavas de final em Nápoles deve ter tido o maior teor de carisma da história dos Mundiais. Após 0 a 0 no tempo normal, Milla foi mais duas vezes à bandeirinha mexer as cadeiras para comemorar seus gols na vitória por 2 a 1 na prorrogação. No segundo gol, se aproveitou da lambança de Higuita. “Ele tentou me driblar e ninguém dribla Milla”, brincou o camaronês anos depois. A cena virou campanha no combate contra o coronavírus. “Se puder ficar em casa, não saia”, advertiu Higuita ao legendar a imagem icônica, no Twitter.
Mas geralmente na hora boa o sonho acaba. Foi assim com Camarões. Nas quartas de final contra a Inglaterra, um pênalti aos 38 minutos do segundo tempo, deu aos ingleses o empate por 2 a 2 no tempo regulamentar. Na prorrogação, Liniker, cobrando novamente pênalti, colocou os europeus nas semifinais e aquele time de Camarões na história.
Empolgado com o que aconteceu na Itália, Milla estendeu sua carreira por mais alguns anos. Na Copa dos Estados Unidos, já com 42 anos, se tornou o jogador mais velho a atuar em um Mundial e a marcar gol. Em 2014, o goleiro colombiano Faryd Mondragón superou a marca ao jogar no Brasil com 43 anos e três dias. Na Rússia, em 2018, o goleiro Essam El Hadary, do Egito, ampliou o recorde ao defender o seu país aos 45 anos e 161 dias.
Feita para os maiores jogadores do planeta bola brilharem, a Copa do Mundo não vive só deles. Às vezes, os craques estelares são ofuscados por pequenos operários da bola que naqueles dias especiais jogam como gigantes do futebol ao alinharem carisma, brio e determinação, como fizeram Milla e Schillaci na Copa de 1990, mas a história do italiano fica para amanhã.
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