30 anos da Copa do Mundo de 1990: olhos selvagens

A Copa do Mundo cria ícones, muda regras, traz tendências táticas e se alimenta daquilo que os grandes nomes do futebol fazem ou deixam de fazer durante os seus jogos, como apresentado nos quatro primeiros textos da série que comemora os 30 anos do segundo Mundial sediado pela Itália. Para arrematar a pentalogia, o Footure conta a história de Totò Schillaci, eleito pela Fifa o melhor jogador do torneio.

Quando não há palavras que descrevem um sentimento, os olhos falam e não mentem. Poucos jogadores foram tão eloquentes com um olhar quanto Salvatore Schillaci.

O inusitado melhor jogador da Copa do Mundo da Itália viveu uma das histórias mais singulares da história dos Mundiais. Em um período de poucos meses, ele deixou de ser um quase desconhecido para se tornar o artilheiro e melhor jogador do principal torneio de futebol. Nem em sonhos, ele poderia imaginar o que foi vivido naqueles dias de 1990. 

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Nascido na Sicília, sua carreira começa no futebol amador no Amat Palermo. Até mesmo para o futebol não-profissional os seus rendimentos eram baixos. Sua minguada carteira recebia o equivalente na época a R$ 10 por gol marcado. Logo chamou a atenção do Messina, modesto clube da ilha localizada no sul italiano, aquele pedaço de terra que a bota está louca para chutar. Mesmo em um clube mais estruturado, Schillaci não fez nenhum feito digno de nota na Gazzetta dello Sport entre 1982 e 1988. 

Mas um técnico ofensivista captou a sua essência na temporada 88/89. Sob a tutela de Zednek Zeman, Totó foi o artilheiro da Série B italiana em um voo que levou ele, Zeman e os biancoscudati para a elite do futebol do país. O técnico tcheco foi para o Foggia e o atacante chegou em Turim para jogar pela Juventus.

Em março de 1990, ganhou sua primeira e única chance com a maglia azzurra antes da Copa. Seus gols pela Velha Signora e os minutos disputados em amistoso contra a Suíça foram o suficiente para que o técnico Azeglio Vicini lhe incluísse na sua squadra de 22 nomes para o Mundial.

Vicini optou por levar seis jogadores de maior poder ofensivo ao invés dos esperados cinco nomes. Ainda assim, era improvável que o atacante parlemitano fosse ser utilizado em algum momento importante da Copa. Na hierarquia do ataque, não necessariamente nesta ordem, Gianluca Vialli e Roberto Mancini (Sampdoria), Andrea Carnevale (Roma), Aldo Serena (Inter) e Roberto Baggio (da Fiorentina em vias de ir para a Juventus) estavam à sua frente na briga por um lugar entre os titulares.

Nos treinos em Coverciano, Schillaci foi ganhando espaço e, para sua própria surpresa, foi selecionado para ficar no banco de reservas na estreia contra a Áustria. As chances de ser utilizado se tornaram um pouco mais palpáveis, mas ainda era improvável que ele foi escolhido antes de Baggio, seu companheiro de suplência. Em um momento de necessidade, Il Divin Codino era a opção óbvia. Na hora do aperto, entretanto, Schillaci foi o escolhido para o lugar de Carnevale, incapaz de fazer um carnaval na defesa austríaca.

Ainda incrédulo, o camisa 19 foi incentivado pelo goleiro reserva Stefano Tacconi, seu companheiro de Juve. “Entre e marque de cabeça”, foram as palavras estimulantes de Tacconi antes da substituição ser efetivada.

Como um Vesúvio prestes a entrar em erupção, Schillaci entrou no gramado do Olímpico de Roma. Nunca antes – nem depois – daquele Itália e Áustria um papa foi a uma partida de Copa do Mundo. João Paulo II, um goleiro nos seus tempos de juventude, saiu do Vaticano, atravessou as  borbulhantes ruas romanas para se sentar nas tribunas, em um prenúncio de que a página a ser escrita ali, uma história de um jovem pobre do sul que ganhava uma miséria por gol marcado nos seus primeiros dias como jogador, seria um milagre proporcionado pelos deuses da bola.

O papa João Paulo II esteve presente na partida de abertura entre Itália e Áustria (Getty Images)

Vialli, três minutos após Schillaci ter entrado no jogo, recebeu de Donadoni e cruzou. Da linha da pequena área, Schillaci marcou de cabeça o gol solitário da noite. Nenhum dos seus 15 pela Juventus naquela temporada tinha sido marcado dessa maneira.

O agito frenético dos braços lhe dava ares de polvo, a boca escancarada entregava a sua incredulidade, mas foi o seu olhar que conquistou a Itália. Olhos esbugalhados que transformavam a comemoração em um expressão da essência da louca vida italiana. Até hoje ao andar pelas ruas, os tifosi pedem para que ele faça aquele olhar selvagem.

Aqueles olhos estrelados voltaram a saltar em comemorações mais cinco vezes naquela Copa. A última vez, cobrando pênalti na decisão do terceiro lugar contra a Inglaterra, uma cortesia oferecida pelo seu futuro companheiro de clube Roberto Baggio. A situação lhe rendeu críticas por sua ausência na lista de cobradores da decisão por pênaltis na semifinal contra a Argentina, justificada com cãibras e cansaço.

Artilheiro e melhor jogador do Mundial de 1990, Schillaci foi um personagem improvável na Itália (Getty Images)

A ardência do futebol de Schillaci, entretanto, se apagou tão rápido quanto o fogo de uma vela soprada. Aquelas atuações nunca mais se repetiram na sua carreira, ainda com passagem pela Inter de Milão e futebol japonês. Em certas situações não importa quantas vezes se faça algo, mas quando se faz. Schillaci fez quando as atenções estavam voltadas para o mesmo lugar, o que o torna inesquecível.

Schillaci foi a essência daqueles dias. A Copa da Itália era para ser jogada com o coração como os selvagens olhos do melhor jogador do torneio mostraram.

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