GUIA DA CHAMPIONS: Atalanta e Valencia

Com classificações surpreendentes, italianos e espanhóis chegam como franco-atiradores e ideias de jogo opostas dentro de campo

Surpresa? Depois de estarem por um fio da classificação, as chegadas de Atalanta e Valencia nas oitavas de final da Liga dos Campeões não chega ser algo que cause espanto. Dentro de campo, os italianos buscam o gol a todo instante comandados por Papu Gómez e Ilicic. No lado de los ches, Dani Parejo comanda as ações a partir do meio de campo, mas a força ofensiva de Maxi Gómez se tornou vital com o passar do tempo. Sonhar não custa nada, até porque uma das duas ditas “surpresas”, para muitos, estará nas quartas de final da UCL 19/20.

Para nos apresentar os detalhes táticos, esquemas e ideias de Atalanta e Valencia, convidamos Higor Leonardo e Edu Baptista para analisar as duas equipes.


ATALANTA, VERSATILIDADE E OFENSIVIDADE ITALIANA

Na quarta colocação da Série A com 45 pontos, a Atalanta não é mais uma novidade na Europa. Desde a temporada passada, suas atuações chamam atenção pela velocidade, verticalidade e muito jogo coletivo para buscar as vitórias. Em compensação, na Liga dos Campeões, os comandados de Gian Gasperini tiveram alguns problemas no grupo com Manchester City, Shakhtar Donetsk e Dínamo Zagreb. A classificação na última rodada inclusive fez a equipe retomar as boas atuações e, não por acaso, o time chega em excelente forma.

O projeto da Atalanta envolve formar e desenvolver jogadores – apesar de olharmos para o trio ofensivo e acompanhar a presença de “veteranos” como Papu Gómez, Ilicic e Zapata. De qualquer forma, o futebol atrativo aos olhares de muitos chega agora para dar um salto maior: as quartas de final da Liga dos Campeões da Europa.

A formação base da Atalanta (Arte/TacticalPad)

Saída de bola

Na primeira fase de construção em saída de bola, a Atalanta dirigida por Gian Piero Gasperini se trata de um conjunto versátil em suas iniciações ofensivas, com capacidade e intenção coletiva de sair de forma curta e elaborada enfrentando pressões altas frequentemente ou recorrendo a passes longos em jogo direto para eliminar a primeira linha de pressão e recuperar a segunda jogada já na metade contrária.

Como mostra o gráfico abaixo, que utiliza o critério de estatísticas dos últimos seis jogos da equipe de Bergamo, a Atalanta arrisca mais em fases de saída de bola desde seu goleiro através de construções curtas e realiza mais perdas em zonas de risco, uma consequência de sua ideia de jogo que consolidou-se após dois anos em que o time de Gasperini tinha seu estilo muito mais caracterizado por saídas diretas sobre a presença de um atacante físico que algo mais elaborado ofensivamente.

Com muito peso associativo de seu lado esquerdo com os apoios do argentino Alejandro Gómez em zonas entre as linhas do adversário, o time italiano consegue estabelecer seus ataques em campo rival e juntar passes para alcançar situações de finalização em organização ofensiva.

Ataque posicional

Após alcançar o campo de ataque estabelecendo suas peças no terreno inimigo, a Atalanta realiza uma ocupação de espaços que privilegia a amplitude e agressividade garantida por seus alas, habitualmente o alemão Robin Gosens – grandíssima temporada dentro do sistema de Gian Piero Gasperini, somando sete gols e cinco assistências em 20 jogos disputados – e o neerlandês Hans Hateboer, que possuem funções diferentes na estrutura do veterano treinador italiano: enquanto o ala pela esquerda assume maior protagonismo na construção ofensiva com a bola ao pé em associações curtas com Alejandro Gómez no lado forte de elaboração da Atalanta, o jogador que dá largura no lado oposto ataca a segunda trave, sendo que o próprio Gosens pode realizar este papel dependendo do cenário da jogada.

Com a mobilidade de Alejandro Gómez e Josip Ilicic que praticamente são os organizadores em campo rival e lideram o número de intervenções por jogo na equipe, sempre aparecendo por dentro nas costas dos meio-campistas rivais e recebendo entre linhas para colocar os companheiros em vantagem no último terço, configurando a organização ofensiva em um 3-4-2-1 na ocupação dos espaços nas zonas ofensivas em ataque posicional.

Recentemente o próprio Papu Gómez jogou mais recuado como um regista, recebendo dos zagueiros e ativando os alas com mudanças de orientação de flanco com passes longos, como contra a Lazio na capital há alguns meses ou nos jogos contra o Shakhtar na Liga dos Campeões, sendo uma variação muito utilizada (um 3-1-3-3 no melhor estilo Marcelo Bielsa, ademais) por Gasperini já que seus meio-campistas, normalmente Marten de Roon e Remo Freuler, incluindo o croata Mario Pasalic, estão muito mais relacionados com tarefas de pressão alta e agressividade sem a bola nas marcações individuais que com protagonismo na construção do jogo, enquanto o talentoso ucraniano Ruslan Malinovskyi se trata de uma peça para desequilibrar nos metros finais do campo e não na base da jogada no contexto dos italianos.

Entre Alejandro Gómez, Luis Muriel, Duván Zapata e o grande Josip Ilicic – assinante do Footure Club tem análise especial sobre o atleta aqui -, foram produzidos mais da metade dos 108 gols da Atalanta em 2019-20 considerando todas as competições incluindo os amistosos de início de temporada. Um time agressivo, que constrói com verticalidade exterior pelos lados do campo e que preenche a área com até seis jogadores para encontrar situações de remate no último terço. Como mostra o gráfico de passes e posicionamento médio da goleada por 5-0 sobre o Milan recentemente, muito dos mecanismos da Atalanta passam pelo jogo forte pelos costados e a posterior bola parada ofensiva (11 gols nasceram desta forma entre Liga dos Campeões e liga nacional, sem ir mais longe). Atenção ao posicionamento dos alas e as interações entre Alejandro Gómez e Robin Gosens.

Fase defensiva

Particularmente, como costumo relacionar questões de física com o futebol por um simples tema de que todos fenômenos no universo estão conectados com o estudo destas causas (no futebol não é diferente, desde as forças resultantes aplicadas na bola, a amplitude e outros aspectos como a palavra intensidade que na física nada mais é que uma agitação de partículas que provoca alteração na energia cinética média dos corpos), é impossível não dizer que a Atalanta quebra paradigmas e demonstra que a vida, assim como o esporte de bola redonda, é algo cíclico e que se transforma conforme as adaptações dos seus intérpretes as tendências do jogo.

Como já disse Albert Einstein com a teoria da relatividade geral que revolucionou a física e o porquê das coisas, não existe uma verdade absoluta e a única certeza que podemos ter é a própria dúvida. Vejo muitos analistas atualmente criticando a utilização das marcações individuais por lances isolados sem análise de contexto ou por pura falta de conhecimento e prestação de desinformação. Gian Piero Gasperini nos prova, semana a semana na Itália, que é possível sim defender com perseguições longas de forma efetiva e gerar pressão no portador da bola como argumento ofensivo. Porque a Atalanta, sem sua pressão alta com encaixes individuais que força o rival a sair de forma direta constantemente e permite domínio das ações territorialmente e com a posse de bola, basicamente não existiria a identidade do time que conhecemos tão bem, um dos melhores projetos da última década com um treinador fantástico que finalmente alcançou o prêmio de chegar as oitavas de final em um torneio continental de maior nível após seu fracasso profissional na Internazionale.

Abaixo, um gráfico que demonstra a intensidade sem a bola da Atalanta, utilizando o critério do PPDA (passes permitidos por ação defensiva, algoritmo que calcula a agressividade defensiva através de uma equação algébrica específica) no jogo contra o próprio Milan que já mencionamos anteriormente.

É um absurdo que um time permita ao rival em determinado momento do jogo apenas CINCO passes aproximadamente por ação defensiva. É uma demonstração de agressividade e intensidade sem a bola para pressionar e forçar erros impressionante, algo que exige muito fisicamente considerando as perseguições mais longas. Daniel Parejo e companhia não terão facilidades contra a pressão alta da Atalanta, que certamente competirá muito e terá possibilidades reais de alcançar as quartas de final do torneio de clubes mais importante do planeta. Esperamos um confronto cheio de gols, conteúdo tático e nível em geral. Por mais que não pareça, se trata de um dos melhores duelos em termos de estratégias das eliminatórias da UEFA Champions League.


VALENCIA, UM TIME RÚSTICO COM JOGADORES DE ALTO NÍVEL

O Valencia não é um dos times mais criativos do mundo na hora de propor o jogo. Assim que assumiu o clube após a demissão de Marcelino Garcia Toral, Albert Celades até tentou implementar um jogo mais ofensivo na equipe valenciana. Uma espécie de 1-4-1-4-1 que se transformava em 1-4-3-3 com a bola. Mas não funcionou. O time até conseguiu evoluir do meio pra frente, mas caiu demais no ponto de vista defensivo. Dani Parejo precisou mudar sua forma de jogar e passou a percorrer muito mais espaço se tornando um meio-campista área a área, o que foge completamente de sua característica de jogo.

A formação base do Valencia (Arte/TacticalPad)

Hoje, o Valencia de Albert Celades é muito mais semelhante ao de Marcelino Garcia Toral. Uma equipe que não tem a menor vergonha de jogar com ligações diretas explorando o tanque físico Maxi Gomez, as escapadas do “carrilero” Ferran Torres, além das boas subidas de José Gaya, aproveitando os movimentos interiorizados de Carlos Soler, cedendo o corredor esquerdo inteiro para o bom lateral espanhol. Rodrigo Moreno, principal peça ofensiva, flutua por literalmente todos os espaços do círculo central em diante. Oferece apoio a Maxi Gomez, atua entrelinhas contra adversários fechados, cai para as beiradas em busca de espaço e ainda encontra tempo pra brotar como centroavante e anotar gols.

A variação defensiva do Valencia

Defensivamente, a equipe atua no 1-4-4-2 em linha, como o Atlético de Madrid de Diego Simeone. Entretanto, o Valencia é um camaleão e alterna entre bloco baixo, médio e alto com uma facilidade que impressiona. No bloco alto, sistema de compensações: os dez jogadores de linha no mano a mano, forçando o erro do adversário desde o ataque com a intensidade de Maxi Gomez e Rodrigo Moreno sobre os zagueiros. Pressão absurda no portador da bola. Já no bloco médio, o Valencia é direcionado por Dani Parejo. Ele maneja o direcionamento e ritmo da equipe, balançando de um lado para o outro, no seu tempo. Sempre fechando a linha de passe.

A marcação alta do Valencia sempre induz ao passe para a lateral

E no bloco baixo, o Valencia vem pro estilo que mais o potencializa e é utilizado nas partidas em que enfrenta um adversário superior: o modo “teia de aranha”. Os dez jogadores de linha em vinte e cinco metros, fechando todos os espaços possíveis no centro do campo. Os comandados de Celades empurram o adversário pra ponta e sequer cedem a oportunidade de cruzamentos, pois os beiradas de campo são instruídos a sufocarem o portador da bola, o obrigando a recomeçar tudo de novo.

Nesse estilo de jogo, a posse de bola do Valencia é quase nula e o time vira refém de contragolpes e bola parada pra chegar ao gol do adversário. Em contrapartida, se torna um muro com uma defesa praticamente intransponível. O melhor exemplo desse Valencia ultra reativo na temporada, é a vitória sobre o Chelsea no Stamford Bridge por 1-0. Uma exibição de noventa minutos defendendo em campo próprio e sendo letal numa das pouquíssimas oportunidades em todo o jogo.

Pra uma equipe que joga de forma reativa, o Valencia vem sofrendo gols demais na temporada. Se serve de comparativo, os Morcegos sofreram trinta e dois gols na edição atual de La Liga, mesmo número do Celta, uma das piores defesas de toda a competição. Mas se a defesa anda devendo, o ataque faz questão de marcar em quase todos os jogos. São trinta e três gols, quinto melhor ataque de La Liga, campeonato que nessa temporada tem uma média de gols bem inferior, comparado as últimas edições.

Outro dado bem legal, é a quantidade de jogadores diferentes que balançaram as redes pelo Valencia nessa temporada: quinze jogadores diferentes, que se deve ao fato dos diversos gols de bola parada, vindo de três zagueiros do elenco. Talvez por isso, o artilheiro do Valencia em La Liga seja Dani Parejo, volante e cobrador oficial de faltas e pênaltis. A bola parada é fundamental para a equipe de Albert Celades.

Maxi Goméz é peça chave. No primeiro gol, ganha no alto para Soler; no segundo, faz o pivô e depois aparece para cabecear.

Em busca das transições

Diante da Atalanta, o Valencia estará mais que a vontade pra realizar seu jogo reativo e de contragolpes. O mesmo jogo que fez com que os comandados de Albert Celades, chegassem as oitavas de finais, nas vitórias contra Ajax e Chelsea fora de casa. A Atalanta tem um time extremamente criativo, com diversas variantes ofensivas, mas que deixa espaços na defesa. A transição, nem sempre é de forma coordenada e isso pode ser ouro puro pra uma equipe sonsa como o Valencia. Ferran Torres gosta de ter campo pra correr e pode ser cruel caso Dani Parejo tenha espaço para efetuar lançamentos.

Outro beneficiado por enfrentar uma equipe que propõe o jogo, é Coquelin: ama esse tipo de duelo, cresce em jogos onde é exigido ao extremo e auxilia muito Dani Parejo na proteção a zaga. Sua final de Copa do Rey contra o Barcelona, confirma a tese.

Fato é, que tanto no jogo Itália, quanto no Mestalla, o Valencia terá a oportunidade de jogar no seu estilo. A Atalanta propõe contra qualquer adversário e em qualquer ocasião. É uma equipe perigosa, mas que bate com a forma de jogo que botou o Valencia na fase crucial da Champions. A teia de aranha está pronta para pegar as formiguinhas venenosas de Gasperini.

Por mais tradicional que seja, oitavas de Champions não é coisa “natural” pro Valencia. Os morcegos roeram o osso pra chegar onde chegaram, e em tese, o nível de concentração para esses dois jogos tende a ser altíssimo. Digo isso, por conta do clube valenciano ser extremamente dependente de foco para competir de igual pra igual. Com a cabeça no lugar e executando seu plano de jogo, o Valencia duela em alto nível contra qualquer time europeu. Um pouquinho desconcentrado, os valencianos se auto sabotam e não passam de um clube mediano espanhol.

Em termos táticos, o Valencia deve em situações propositivas. É extremamente dependente de Rodrigo Moreno pra produzir jogo quando está atrás do placar ou apenas precisa assumir as rédeas de uma partida. Explora até demais os beiradas e os laterais ficam sobrecarregados na criação do jogo. Principalmente Gaya, que em diversas ocasiões tem que se dividir entre um lateral que cria e a principal válvula de escape da equipe pelo lado esquerdo do campo.

Com Gonçalo Guedes em má fase e Soler sendo um jogador com característica principal de passe, o excelente lateral tem mais tarefas do que deveria. Outro ponto importante, são as saídas de Gabriel Paulista na perseguição aos atacantes. Seu companheiro Garay é posicional, mas o brasileira, em diversas ocasiões, precisa dar combate direto aos atacantes inimigos para compensar erros de marcação dos jogadores de frente. Uma noite ruim do brazuca e o Valencia terá um problemão enfrentando jogadores do calibre de Papu Gomez e Josip Ilicic.

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