Jogadores jovens, viagens longas, gramados ruins e baixo investimento: a Série D por João Carlos Ângelo

Em entrevista exclusiva ao Footure, o treinador João Carlos Ângelo do Bahia de Feira detalhou o desenvolvimento da sua carreira e os desafios presentes na Série D.

Após assumir com pouco tempo para o início da Série D de 2022 pelo Bahia de Feira, clube do agreste baiano com campanhas seguras nos últimos campeonatos estaduais (dois vice campeonatos e uma semifinal nos últimos 4 anos), João Carlos Ângelo fez uma grande campanha com o Tremendão no campeonato nacional. Deixando pelo caminho times grandes como a Ferroviária-SP e a Inter de Limeira na fase de grupos, e sendo eliminado por outro gigante do interior, o São Bernardo. Em entrevista ao Footure, João Carlos comentou sua trajetória no futebol e como ele enxerga o perfil e as dificuldades encontradas na Série D:

A gente começa falando um pouco da sua carreira, onde foi jogador aqui no Brasil e em Portugal (finalizando-a lá) e a partir disso iniciou sua carreira como treinador. Gostaria de saber como foi essa transição de atleta para treinador, os estudos, como se preparou, em quem se inspirou durante esse período…

Eu comecei nas categorias bases do Madureira, o bairro onde nasci e morei lá no Rio de Janeiro, com 18 anos fui transferido para o Fluminense, fui campeão da última taça São Paulo que o clube foi campeão. Em um time que tinha o Alexandre Torres, o Edgar e alguns outros jogadores que se consagraram. Acabei sendo vendido para o Pinheiros FC, que depois se tornou Paraná, fui campeão paranaense, depois retornei para o Fluminense já como profissional, trabalhei nas Laranjeiras nos anos de 1989 e 1990, tive a felicidade de trabalhar com treinadores como Evaristo de Macedo, Telê Santana, Procópio e Vanderlei Luxemburgo, que me ajudaram muito naquela minha fase inicial da carreira, onde eu aprendi muita coisa também, guardei pra mim e guardo até hoje.

Depois fui para o Figueirense, para América de Três Rios e pra Portugal, onde passei 11 anos da minha carreira. Um dos caras que trabalhei em Portugal é o Ricardo Formosinho, que hoje é auxiliar do Mourinho. Em 2003 finalizei minha carreira de jogador e retornei para o Brasil, onde fiz o curso de treinador no sindicato do Rio de Janeiro, trabalhei nas categorias de base do Madureira, onde fui auxiliar do Marcelo Cabo, trabalhei na base do Fluminense, fui analista de desempenho do Renato Gaúcho em 2007. Trabalhei no Catar, no Kuwait e na Árabia Saudita, onde cheguei a quartas de final da Champions League Ásiatica e retornei ao Brasil para Portuguesa-RJ. Pensando em abrir um leque maior de opções, aceitei trabalhar no América de Recife e no Maranhão, antes de assumir o Bahia de Feira.

A partir disso, eu queria perguntá-lo como as suas ideias de jogo, suas metodologias foram se desenvolvendo ao passar do tempo. Tendo em vista que pôde trabalhar com vários perfis de treinadores diferentes como Renato Gaúcho, Marcelo Cabo, Telê Santana etc, o que o João Carlos Ângelo trouxe na sua bagagem?

Acho que a vida é um eterno aprendizado, a gente tá aprendendo todos os dias e com todos, eu aprendi desde 1989 com o Telê Santana como aprendo hoje com os meus atletas. A gente não pode parar no tempo e achar que sabe tudo, o estudo é todos os dias, troco informações, assisto muitos jogos e como todo treinador eu tenho que ter minhas próprias convicções. Nós sabemos que o futebol é uma coisa que “todos entendem”, mas você como profissional que tá no dia a dia trabalhando os atletas e analisando aquilo que você pretende fazer, é necessário ter seu planejamento, a sua forma de trabalhar e as suas convicções.

Baseado nisso, eu criei a minha metodologia de trabalho, onde eu penso que cada jogo é um jogo diferente e você tem que estudar cada momento. Pra mim o futebol tem que ter uma estratégia de neutralizar os pontos fortes do adversário e também fortalecer os seus pontos fortes. As minhas convicções partem de mim, mas isso vai da análise de cada jogo, da disponibilidade dos atletas e do quanto você consegue mobiliza-los em busca do objetivo.

É uma boa observação, já que cada vez mais têm se falado que o jogo é dos jogadores, numa ideia que contrapõe o imaginário em que tudo que acontece no campo passa pelos técnicos. Em um mundo em que a responsabilidade é toda do treinador e o mesmo não é visto como “só mais uma” peça da engrenagem. Como você enxerga tudo isso?

Todas as peças tem sua importância, e nós sabemos, normalmente a cabeça do técnico é a que aparece, mas dentro de uma comissão técnica existe o auxiliar, o preparador físico, o treinador de goleiro, pessoas do staff que podem te dar o suporte, para que você possa fazer seu trabalho da melhor maneira.

Falando mais do atual contexto do Bahia de Feira, que também está inserido, queria saber como você enxerga a Série D, as maiores dificuldades, o que é necessário fazer para desempenhar e qual o perfil da competição?

Vou começar te respondendo pela sua última pergunta, a Série D é um campeonato de muito mais força que a Série A, por exemplo. É um campeonato de impacto, às vezes você vai jogar em determinados campos que não te dão a possibilidade de você praticar um bom futebol, mas você tem que ter uma equipe acima de tudo muito competitiva pra que você possa buscar os êxitos. Obviamente você vai jogar em grandes estádios, mas na grande maioria dos casos você vai jogar em campos peculiares com determinadas equipes que estão acostumadas a trabalhar ali. Na Série D você faz viagens muito longas e extremamente desgastantes, no jogo vs Costa Rica, por exemplo, foram seis dias de viagens, perdemos duas noites de sono, mas conseguimos vencer.

Em termos de clube, encontra-se muito situações em que nem todas as equipes pensam em fazer investimentos, já que o retorno é pequeno. E é um campeonato que não traz tanta mídia quanto as outras competições, onde acaba se tornando inviável. Todo nosso trabalho foi feito com os pés no chão, quando fomos jogar contra o Costa Rica, tínhamos 2 atacantes vindos de lesão, mas essa é a realidade. O clube procura cumprir com suas obrigações, se tivéssemos 4, ou, 5 atacantes teríamos dificuldades financeiras, é um campeonato deficitário, que não tem um retorno financeiro muito brando e esse é um grande problema das equipes. Já algumas equipes como o São Bernardo possuem um orçamento um pouco maior, e conseguiram manter a base da equipe que disputou o estadual e trazer alguns outros reforços. Porém a maioria das equipes não fazem um orçamento muito alto, porque não sabem até onde vão chegar nas competições.

Relacionado ao tema da qualidade dos gramados que a sua equipe costuma enfrentar, eu gostaria de saber se na sua visão o Bahia de Feira tem vantagens sobre os adversários por jogar há mais tempo e estar adaptado a um gramado sintético.

Sem dúvidas tem um diferencial, a gente leva vantagem aqui, mas também jogamos fora. Se fizermos uma análise, perdemos 2 jogos dentro de casa, onde tínhamos totais condições de ganhar, talvez uma das nossas melhores performances e não conseguimos conquistar a vitória. Mas que é um diferencial é um diferencial, foi uma das primeiras coisas que eu reparei, nossa intensidade de jogo é muito grande, se a equipe que vier não estiver preparada para isso com certeza terá problemas. Hoje em dia a maioria das equipes se preparam pra isso, o próprio São Bernardo que jogou aqui, o campo deles era sintético e hoje não é mais, mas com certeza eles treinaram em algum campo como o nosso e chegaram aqui na maior intensidade possível.

Falando um pouco dessa questão do calendário ainda serem apertados, as viagens, lesões e principalmente as montagens de elenco que os times com menos investimentos precisam fazer com maior frequência, como o treinador e a comissão técnica agem no processo de mapeamento, identificação e indicações de jogadores para contratações, dentro do clube?

Há clubes que trabalham de formas diferentes, eu sempre procuro trabalhar nessa área de montagem de elenco, acho que isso é um dos grandes detalhes pra fazer um bom trabalho. O Bahia de Feira já tinha um trabalho montado que a diretoria vem fazendo ao longo dos anos, com alguns atletas que estão aqui e já somaram e somam ao time, onde já tínhamos uma base e isso ajuda demais. Então conversamos sobre algumas peças e necessidades que poderiam ser interessante pra fazermos um grupo forte, procuramos avaliar não só o perfil profissional, como também o perfil extra campo do atleta, para vermos se ele se adapta. Eu sou bastante chato quanto a isso, eu e a diretoria tivemos um encaixe muito grande, pactuamos das mesmas ideais e formamos o elenco, indicamos 5, ou, 6 atletas que poderiam vir com a gente, alguns que já estavam comigo no clube anterior que eu trabalhei e casos de jogadores que eu enfrentei, como o Janderson e o Barata.

Como falamos de todos os pontos adversos que envolvem a competição, gostaria que você comentasse, por fim, como é encaixar, utilizar e desenvolver o jogo de jogadores jovens, que se encontram em período de maturação. Ainda mais no Bahia de Feira que possui uma quantidade relevante de atletas sub-23, como o próprio Barata, o Zé Oliveira, o Janderson e o Eduardo (todos 99′).

Eu acho que você tocou num ponto chave, voltando um pouco sua fala, você falou sobre dificuldades, chegamos aqui há aproximadamente 12 dias da competição, montamos uma equipe e fomos moldando-a no meio da competição, isso é muito complicado, porque as equipes se reformulam muito e aí você tem a oportunidade de trazer atletas jovens, como você citou: o Barata e o Janderson, que estavam no campeonato maranhense, um campeonato onde o nível competitivo é diferente do daqui. Todo atleta necessita de um período de adaptação, mesmo que ele já seja moldado e isso foi uma das coisas que buscamos: deixá-los o mais a vontade possível, tivemos uma vantagem em encontrar alguns atletas como o Diones, o Cazumbá, o Paulo, o Deon etc que são mais experientes e abraçaram eles. Então, tudo isso foi uma soma de situações que fizeram eles se adaptarem, foi como você disse, nós temos uma equipe nova, com o Wellison e o Alan, que já estavam aqui, e a gente tem procurado adapta-los da melhor maneira possível.

Eu tive a possibilidade de trabalhar como atleta e depois como treinador, trabalhei com jogadores como Dedé e eu falo sempre pra eles: o jogador com confiança faz coisas que nem ele acredita. Então na hora que entrar em campo não tenha medo de errar, porque o medo de errar é o primeiro obstáculo para o sucesso. O jogador do meio e da frente tem que ter criatividade, tem que acreditar. Ele vai errar? Vai errar, mas quando ele acertar é que vai surgir o extraordinário. Como no caso do Janderson, que no início da competição não vinha fazendo gols, e ele sabia que havia uma cobrança externa, e uma cobrança dele mesmo. Então eu disse pra ele: não se preocupe em fazer o gol, o que você está fazendo já me agrada muito, o gol vai sair com naturalidade. E assim ele foi recuperando a confiança, porque se eu começasse a cobrar muito ele por isso, eu iria perder o jogador e não iria valorizar o que ele vinha fazendo de bom.

Nesse aspecto eu tenho que exaltar também a participação da gestão do clube, o futebol como é no Brasil, se o resultado não vem de início já se fala em mandar embora e ninguém “vale nada” e aqui nós sempre tivemos uma gestão onde eles sempre procuraram me apoiar mesmo com as perdas, eles viam o trabalho dando resultado. A direção sempre acompanha todos os dias de treinamentos, viam os jogos e sempre disseram estar satisfeitos. O que acaba trazendo maior confiança para nós da comissão técnica e para os próprios atletas.

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