Os anônimos do futebol profissional
"Não há lugar nesse mercado (futebol) para todos e, ao mesmo tempo, todos são educados, até onde interessa ao clube e aos seus investidores, como muito especiais – até não interessarem mais mercadologicamente", explica Marina Dantas, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP
Saindo da nata do esporte, onde estrelas acumulam rendimentos com uma boa quantidade de zeros à direita, a realidade da grande massa de futebolistas é de salários modestos. A tese de doutorado em Ciências Sociais de Marina Dantas se debruça nisso, com um recorte nacional – a produção do futebol no Brasil e os seus impactos na vida de atletas que até se profissionalizam, mas não ocupam lugares de visibilidade no mercado que os proporcionem viver apenas como jogador.
Qual foi o seu principal propósito ao escolher essa linha de pesquisa?
Tenho estudado temas referentes ao futebol e relações de poder desde 2007. Então essa escolha veio de uma caminhada profissional e de estudos. Eu queria entender o que acontecia com esses rapazes que saíam das categorias de base, não deixavam de ser jogadores, mas também não encontravam uma colocação em clubes que fosse suficiente para viver de ser atleta.
Por qual motivo este tema é importante?
É importante pois contribui para entendermos como são produzidas “verdades” no futebol e quais “verdades” se engendram como produtoras/sustentadoras do esporte no Brasil (e na Argentina) atualmente. Pensar sobre essas verdades e seus efeitos é importante para compreendermos a formação dos jogadores e seus percursos como trabalhadores. Quais formas de vida essas verdades produzem e como produzem? Foi isso que busquei trazer à tona em meio a outras pesquisas que colaboram para entendermos essa questão.
Quais as conclusões do estudo?
Tentando resumir, posso dizer que a saída do jogador das categorias de base rumo ao mercado profissional e a atualização da regulamentação do esporte à lógica neoliberal demarcam, dentro das várias formas possíveis de fazer/jogar futebol, as diferenças sociais entre o modelo hegemônico de jogador da atualidade – representado pelos famosos – e os jogadores anônimos – que diz das outras inúmeras possibilidades de ser jogador e de se produzir futebol. Mesmo anônimos, os jogadores têm a possibilidade de serem celebridades locais; com ou sem almejar voos maiores, estão atravessados pelos mesmos discursos da racionalidade neoliberal.
Na história do futebol brasileiro, várias práticas e disputas o instituíram, criando efeitos de poder como o jogador-peça, descrito por Florenzano (2008) como um soldado a serviço da equipe máquina, disciplinado para obedecer e servir; o jogador-produto/mercadoria, compreendido por Damo (2007) como efeito da formação do atleta que, simultaneamente, converte-se na produção de uma mercadoria para o mercado de jogadores; e, nos últimos anos, como jogador-empresa. Esse último, o empreendedor de si, é produto e empresário de si mesmo, correspondendo a certo efeito de poder produzido no encontro do futebol com a racionalidade neoliberal.
O jogador pode ficar desempregado, mas se pretende continuar na profissão não deve permanecer parado por muito tempo. É comum mesmo os jogadores mais ou menos famosos “prestarem contas” em suas mídias sociais sobre como cuidam de seu corpo e o que fazem durante as férias para se manter em forma. Muitos ainda trabalharão simultaneamente em outras atividades para complementar a renda no período durante o qual não estão se dedicando a atividade de atleta.
Os atletas profissionais, sem acesso aos grandes clubes, convivem mais próximos à fronteira entre ser e não ser profissional e se veem constantemente refazendo essa escolha. Eles circulam mais no mercado, assinam contratos de menor duração e contam com menos garantias de que esses contratos sejam cumpridos. Por diversas vezes, esses jogadores atravessam longos períodos sem encontrar um clube que os empreguem. Em relação àqueles que se projetam nas grandes vitrines, esses jogadores são anônimos colaboradores para a competitividade de mercado.
Por abarcar um grupo heterogêneo de jogadores que vai desde o jovem recém-saído das categorias de base até os mais experientes, já em vias de se aposentar e que podem em algum momento ter saído desse circuito do anonimato, pensa-se o jogador anônimo como um território existencial, um momento na vida do atleta que, não raras vezes, pode se estender por toda a vida.
Quais fatores ainda impulsionam o futebol como garantia de estabilidade financeira mesmo havendo ampla difusão de que mais de 95% dos atletas acabam sendo remunerados com valores de mais ou menos cinco salários mínimos?
Há uma grande desigualdade nessa distribuição que não corresponde a essa média estatística, pois a distribuição nesse conjunto não é uniforme. Precisamos considerar que há jogadores que ganham muito mais do que o salário da CLT e outros muitos que recebem (quando recebem) salário mínimo. Então não podemos pensar que essa média corresponda à realidade do salário da maioria dos jogadores no Brasil.
Não há lugar nesse mercado para todos e, ao mesmo tempo, todos são educados, até onde interessa ao clube e aos seus investidores, como muito especiais (até não interessarem mais mercadologicamente). Soma-se a isso o investimento familiar, tanto em termos financeiros, como de desejo. Muitas vezes um atleta está ali realizando desejos de pais, tios, avós que foram “penhorados” nele, digamos assim. Pesa também nessa conta as fantasias sobre a vida onipotente e de prazeres ilimitados de um jogador de futebol “bem sucedido” em sua carreira, e também a romantização de uma vida de abusos e sofrimentos que um dia será recompensada.
Os clubes formadores têm se preocupado mais com aspectos psicológico dos jovens que não conseguem se profissionalizar?
Em parte, sim. Mesmo porque, se o clube pensa no retorno financeiro sobre a formação do atleta, ele precisa da chancela de clube formador para garantir isso. E para conseguir essa chancela é preciso demonstrar-se como uma empresa responsável. As equipes multiprofissionais ajudam nisso.
Por outro lado, essas equipes multiprofissionais – que trabalham às vezes mais e às vezes menos integradas – são compostas por profissionais que se vêem constantemente em um dilema ético entre a produtividade, o resultado a qualquer custo e o cuidado com o atleta. Em meio a isso, nos últimos dez anos, percebo a preocupação desses profissionais, principalmente de psicólogos e assistentes sociais, com os atletas a serem desligados dos clubes.
Em quais instituições/movimentos os anônimos do futebol brasileiro têm encontrado suporte?
O apoio é muito pequeno frente o tamanho da questão a ser enfrentada. Os sindicatos prestam alguma assistência, mas há também pouca organização dos jogadores em termos de classe, o que é característico da forma como o trabalhador é pensado no capitalismo neoliberal – cada um é uma empresa em si e empresário de si mesmo, minimizando o pensar coletivo sobre as condições de trabalho, pois a culpabilização do não sucesso na carreira recai sobre o sujeito individualizado. Em meio a isso, o suporte encontrado é muito ínfimo e frágil.
QUER SE APROFUNDAR NO TEMA?
– DAMO, Arlei Sander. Do dom à Profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo & Rithschild Ed., Anpocs, 2007.
– FLORENZANO, José Paulo. Afonsinho e Edmundo: a rebeldia no futebol brasileiro. São Paulo: Musa Editora, 1998.
– (Artigo) RIAL, Carmen. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 14, n. 30, p. 21-65, Dez. 2008
Título da tese: Cartografias de um campo invisível: os anônimos do futebol profissional
Autora: Marina de Mattos Dantas
Instituição de Ensino: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Marina de Mattos Dantas é psicóloga e professora, mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutora em Ciências Sociais (ênfase em Política) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Realizou doutorado sanduíche na Universidad de Buenos Aires e estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na Universidade Federal de Minas Gerais. É pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG) e no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG). |
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1 comentário
Em relação a chegar na elite, não é apenas no futebol, mas em qualquer profissão: o próprio nome “elite” já auto explicativo. É um lugar para poucos. E os “anônimos” estão também em todas as profissões. A base da pirâmide está cheia de gente em qualquer profissão.
A Dra Marina deu um pequeno raio X da situação nessa bela entrevista, explicitando alguns problemas. Quais seriam as soluções?
Parabéns por abordar um tema tao relevante.
Saudações