Wallace Reis: “Precisava o Floyd morrer para nos posicionarmos sobre racismo?”
Em entrevista ao Footure, o zagueiro falou sobre política, racismo e as consequências dos posicionamentos adotados durante a carreira
Dono de uma postura que surpreende até mesmo os capitães mais experientes, Wallace Reis sempre foi um atleta que não teve medo de se posicionar. Enquanto atuava no Brasil, intencionalmente ou não, sempre esteve entre holofotes e microfones para apresentar visões que, até onde entende, se aproximavam da sensatez.
Aos 32 anos, o baiano de Conceição do Coité, revelado no Vitória, onde é ídolo e pretende voltar, atua pelo Göztepe, da Turquia, há dois anos. Com passagens por Corinthians, Flamengo e Grêmio, o zagueiro ficou marcado por episódios, sejam eles dentro ou fora de campo, positivos e negativos.
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Em uma conversa de 46 minutos, realizada em 05 de junho, o jogador abriu o jogo. Ao Footure, analisou sua experiência no futebol turco, opinou sobre política e abordou o racismo no esporte.
Footure: Como analisa a trajetória na Turquia, especialmente no Göztepe?
Wallace Reis: Cara, tem sido legal. Foi bom, foi produtivo para mim em vários aspectos. De leitura, de entendimento de jogo, cultura de jogo, em como isso afeta a cultura das pessoas. O comportamento das pessoas de cada cidade reflete muito no jogo de cada equipe. Aqui, eu tenho essa sensação. As cidades são mais abertas a um jogo mais para frente. A cidade que é um pouco mais fechada, culturalmente, é um jogo mais defensivo. Eu achei bem engraçado e até peculiar. Mas, em relação à minha passagem, tem sido basicamente isso. De aprendizado, de entendimento do jogo.
A Turquia está entre os 10 países com mais casos de coronavírus, mas o 3º com menos morte entre eles. Como o país e você, particularmente falando, encara a pandemia?
Aqui tem muito caso, mas o nível de mortos é baixo, se a gente for falar em questão até estatística. Em proporção, o Brasil é muito mais gritante. Eu não sei se isso também afeta muito porque, como o governo controla muito a mídia aqui, a gente não sabe realmente o que, de fato, é verdade. Mas o que, dentro da cidade, eu tenho visto, algumas informações de amigos turcos, é que as coisas estão fluindo naturalmente. Houve lockdown de realmente as pessoas não saírem na rua, ou seja, praticamente The Walking Dead.
Aqui, na cidade, quando o presidente determinava que tinha que ter lockdown, ninguém desrespeitava as ordens. Quando teve lockdown e a gente estava treinando esses dias, a gente saía com uma autorização do clube e do governo, do Ministério da Saúde, para apresentar aos policiais que estavam na rua, fiscalizando.
Está lendo algum livro atualmente?
Estou. Estou lendo ‘No Jardim das Feras’.
Como começou o hábito pela leitura?
Eu fui formado nas divisões de baixo do Vitória e, lá, tinha uma pequena biblioteca. E tinha um jogador que, por sinal, tem uma relevância na França, que chama Felipe Saad, ele me deu um livro e falou “Cara, você pega três ônibus para ir e três ônibus para voltar. Aproveita esse tempo de ociosidade e vai lendo um livro”, que foi o livro ‘O Homem que Matou Getúlio Vargas’, do Jô Soares, e eu me encantei com o livro. Daí em diante, eu fui buscando coisas que me interessavam, coisas que também não eram do meu interesse e passaram a ser, e fui descobrindo o quão rico e o quão importante é ler e tentar entender um pouco do mundo.
Se fosse para indicar, hoje, um livro para algum companheiro, qual seria?
Sinceramente, eu indicaria meu livro preferido, porém, sei que muitos não entenderiam e não gostariam, que seria ‘1984’, de George Orwell. Mas, para os amigos e, principalmente, aqueles que iniciam a leitura, eu, geralmente, indico e dou, de presente, o ‘Abusado’, do Caco Barcellos, que é um livro que fala sobre a temática e o mundo que boa parte dos atletas já viveram, ainda meio que de uma forma indireta.
Você chegou a criar um projeto na internet para incentivar a leitura, mas não está mais disponível. Por que?
Faltou tempo, e acho que o brasileiro não consegue separar o atleta da pessoa, é tudo um só. O torcedor não entende que eu tenho uma vida paralela fora do campo, e eu achei melhor dar um tempo. Também não estava do jeito que eu queria, estava fazendo de uma forma meio amadora. Quem sabe lá na frente a gente volta.
Eu acho que só lamento isso, porque a gente vive esse paradoxo. Ao mesmo tempo em que a gente quer que o atleta se posicione, quando ele se posiciona ou quando ele demonstra alguns atributos que vai além do campo, isso incomoda. Eu acho que é natural porque, ao longo da história do futebol, o atleta é rotulado e, quando a gente quebra esse paradigma, é uma mudança e você não tem mais como fazer aquelas críticas que você costumeiramente fazia. Diversas vezes eu fui criticado por ler livro e não pelo que eu jogava ou deixava de jogar. As pessoas vivem dessa dualidade, dessa ambivalência de sentimento, que não consegue encontrar o equilíbrio.
Mas faz parte da sociedade, do ser humano, e eu entendi que, naquele momento, não era válido manter o blog aberto, mas foi bom porque eu tive a oportunidade de ajudar algumas escolas lá no Rio com doação de livro, ajudei algumas escolas em Nova Iguaçu, que as crianças acabaram criando o hábito de leitura. Pude, também, ajudar atletas em relação a buscar conhecimento até para começar a se entender e entender todo o processo que o futebol tem até na questão básica. Porque se o cara não tem gosto por ler seu contrato, dificilmente ele vai ter vontade de ler um livro.
Quais os benefícios e os prejuízos de se posicionar?
Benefício, não vi nenhum. Sinceramente, eu só me tornei um homem mais forte, a lidar com a pressão. Eu costumo dizer que o jogador de futebol é pago não para jogar bem, ele é pago para suportar a pressão. Os malefícios é, justamente, essa contradição que a sociedade vive. Eu me expunha muito em momentos delicados que minhas equipes enfrentavam e eu virava o alvo. No Flamengo, diversas vezes eu era o interlocutor da equipe. No Grêmio, em alguns momentos, também. Isso acaba gerando, sim, uma antipatia no momento ruim. A questão é que eu tento ser ponderado e sensato, mas, talvez, o cara não esteja preparado e o ouvido dele não esteja educado para ouvir o que eu quero passar e o que ele queira ouvir. Isso, para mim, foi um aprendizado. Acho que eu tive mais de 80% de malefício do que benefício.
Por que acha que o jogador é considerado mimado?
Eu discordo dessa tese de jogador mimado. Ele é educado para ser dessa forma. O atleta ele não tem culpa porque o modus operandi da coisa funciona assim: eu sou atleta, tenho talento, meus pais me bajulam. Consequentemente, o treinador me bajula. Consequentemente, a equipe também me bajula e fazem tudo para mim. Isso vai dando uma espécie de comodismo, e é natural do ser humano.
Você considera ter uma ideologia política?
Eu poderia dizer que eu sou em cima do muro, porque é o lugar onde eu consiga ver melhor. Consigo ver a direita e consigo ver a esquerda. Acho que os dois são a mesma coisa, só mudam os extremos. No fundo, o autoritarismo que um tenta exercer é o que o outro também tenta exercer, só muda a linha. Eu me definira como um anarquista, oposicionista de direita e de esquerda.
Acho que a população pega essa questão que a gente traz para o futebol e é o seguinte: “Olha, eu vou defender essa bandeira como fosse time de futebol, independente de estar errado. Eu tenho que defender essas cores, essas ideias. É assim que eu penso e eu não vou mudar”. Talvez, isso crie essa polarização exacerbada que está, hoje, no país. Não é uma discussão, não é um debate racional, é uma coisa muito mais passional da coisa. É um torcendo para morrer mais, outro torcendo para morrer menos, outro torcendo para a cloroquina funcionar, outro torcendo para a cloroquina não funcionar, e a gente não consegue chegar em caminho nenhum. Então, eu sou um cara que não tem nenhum tipo de ideologia. Eu vejo todo mundo de direita, de esquerda, e ninguém é do povo.
Em 2016, você disse a seguinte frase: “Aqui, a gente também vai vendo alguns Trumps se formando. O Bolsonaro está aí, ganhando força porque a população está um pouco desacreditada desse conservadorismo”. Por que? Você já imaginava o que aconteceria em 2018?
Eu acho que é porque eu sou do povo, eu sou pobre, sou da classe C, vivo na favela. Eu vivi isso e a gente vê os discursos. Eu tenho muito amigo que é de esquerda e eu falava assim: “Não caia nessa asneira de você achar que a população brasileira sabe o que é direita e esquerda. Não sabe. Esse termo é recente”. Isso aí só sabe quem tem educação boa, que teve a oportunidade de estudar em escola particular. Mas, para quem vem de onde eu vim, da escola pública, a gente não tem noção nenhuma.
A gente vai vendo que a população está falando: “Poxa, vamos ver se a gente vai para outra linha”. O povo queria uma mudança, e o que elegeu o Bolsonaro não foi a oratória dele, a ideia dele, mas acho que o antipetismo que se criou no país foi muito grande. Qualquer outro que não fosse o Haddad, no segundo turno, talvez tivesse ganho.
Agora, diga-se de passagem, Bolsonaro não está fazendo nada a mais do que ele já fez ao longo desses 30 anos em que ele ficou na Câmara dos Deputados. Ele está sendo ele. Por mais que a gente não goste, que a gente ache um comportamento agressivo, ele tem sido bem autêntico. Ele tem tido a conduta que ele sempre teve. Talvez a gente se assuste porque a gente não via com tanta frequência a Câmara dos Deputados e nem o acompanhava, até porque ele era do baixo clero.
O movimento antirracista ganhou força depois do assassinato de George Floyd. Por que começar a se posicionar apenas depois de acontecer, nos Estados Unidos, o que acontece todo dia nas favelas brasileiras?
É justamente isso. Eu acho muito louco esse comportamento. Eu fico extremamente incrédulo com algumas coisas que eu vejo. A gente sabe que é racismo, eu sou negro. Mas, ao longo dos anos, não se comenta isso dentro do ciclo do futebol que, majoritariamente, só tem negro. Ninguém se posiciona como ativista ou defensor da causa racial – que eu acho que é válida –, porém, a galera tem a mania de ir na onda, de seguir o caminho do outro.
Eu acho trágico o que aconteceu com o Floyd, mas a gente precisava esperar acontecer isso para se posicionar? É só no extremo que a gente opina? A gente não tem outros momentos para pensar e se olhar como sociedade? Eu quero tentar entender e compreender o porquê de alguns atletas também se posicionarem agora, haja visto que racismo, preconceito, há todo dia, toda hora. Eu tenho uma tese que eu costumo dizer que, além do racismo racial, existe o racismo social no Brasil. O atleta de futebol, quando transcende da classe média e dá esse salto, ele vive num mundo à parte, ele não tem mais noção do que é racismo, do que é preconceito.
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O que eu vi foi, justamente, muito atleta, muita gente pegando o bonde e indo junto. E até faço uma ressalva que acho um absurdo criticarem o Neymar por ele não se posicionar, por exemplo. Onde é que está a democracia? Democracia também é eu não me expressar, eu não me posicionar. Eu acho que é todo mundo interesseiro no final da história. Todo mundo está interessado em construir sua imagem, em se manter para a sociedade como bonzinho. Acho que tinha que ter, sim, uma manifestação, mas não precisava esperar para fazer agora.
Quando no Grêmio, você chegou a dizer que o Roger Machado te surpreendeu positivamente e que foi o melhor treinador com quem trabalhou. O que ele tem de diferente?
Eu costumo dividir técnicos e treinadores. Tem cara que é treinador, tem outro que é só o técnico. Tem cara que é o treinador, ele simplesmente vai te treinar e vai você com que você evolua, que você cresça. E tem o técnico, que é o cara que escolhe os onze para escalar. O Roger, junto com outros também que eu trabalhei, são técnicos. Acho a parte didática do Roger excelente, talvez tenha sido melhor junto com o Luxemburgo e o Tite. A forma como eles passam a informação é acessível para o atleta, e acho que o Roger tem a questão que ele vê a limitação do atleta e tentar fazer com que ele compreenda de um modo mais tranquilo. Ter trabalhado com o Luxemburgo, também, me deu uma outra visão, porque, realmente, ele tem coisas que outros treinadores não têm, que é a percepção do que vai acontecer, de antever algumas coisas.
Quais os treinadores brasileiros da nova geração que chamam a sua atenção?
O Diniz eu tenho muita curiosidade, ao menos de conversar com ele. O Tiago [Nunes]. Tive a oportunidade de conhecer o Tiago, acho que daqui a pouco ele vai implementar o jogo dele no Corinthians. [Vagner] Mancini é um treinador que eu gosto bastante porque ele joga para frente. O Roger é um cara muito bom de se assistir ao jogo dele, mas o meu único incômodo em relação ao que se fala de futebol é que todo mundo quer padronizar o modelo de jogo. Isso é impossível de acontecer. Está todo mundo jogando do mesmo jeito no Brasil. Quem é que não joga, no Brasil, num 4-2-3-1? Muito raro.
Seu contrato acaba ao final da temporada e você não chegou a um acordo com o Göztepe. Está recebendo sondagens e propostas?
Tive algumas sondagens, mas estou num momento da carreira em que eu não posso errar. Tem que tomar a decisão de uma forma bem técnica e tranquila porque, como eu falei, eu não fui um cara que ganhou muito dinheiro no futebol. Quando eu saí do Vitória, eu recebia três salários mínimos. Fui para o Corinthians e melhorou um pouco o salário, consequentemente, aí, no Flamengo, deu uma melhorada. Foi aí que eu comecei a me organizar financeiramente. Eu preciso, nesse momento, tomar decisão de uma forma bem sensata para que as pessoas que dependem de mim não sejam afetadas.
Tem algum time do Brasil que você jogaria? Por ser seu time de coração, voltaria ao Flamengo? O Flamengo foi a realização de um sonho de criança, né. Eu sou bem tranquilo em relação ao que eu vivi no Flamengo. Mas o meu desejo, quando retornar ao Brasil, é jogar no Vitória. Eu irei voltar para o Vitória e vou fazer o Vitória ser campeão nacional. Não digo campeão brasileiro, mas uma Copa do Brasil. Não estou dizendo como jogador, mas o fato de eu ter me frustrado em 2010, contra o Santos, na final, isso ficou um resquício, e essa dívida eu quero pagar.
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