O futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo
"As jogadoras que foram minhas interlocutoras eram, essencialmente, negras, pobres, lésbicas e moradoras de bairros paulistanos considerados periféricos. Desvelar as violências vividas diariamente por elas serviu para apontar e denunciar que ainda há muito a ser feito para assegurar igualdade e segurança para essas mulheres", afirma Mariane Pisani, doutora em Antropologia Social pela USP
Mostrar como diferentes modos de opressão e preconceito incidem sobre mulheres jogadoras de futebol da cidade de São Paulo – e formas de resistência criadas ante essas situações – foi o objetivo de Mariane Pisani em sua pesquisa para a tese de doutorado em Antropologia Social, pela Universidade de São Paulo (USP). A análise trata, resumidamente, de como alguns marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, etnicidade, geração) se encaixam nesta questão.
Qual foi o seu principal propósito ao escolher essa linha de pesquisa?
Desde a graduação em Ciências Sociais – na UFSC – já me envolvia com a temática esportiva. Lembro que na época pesquisava a temática da migração (nacional e internacional) a partir da trajetória de vida de homens jogadores de futebol. Preciso dizer que, enquanto mulher e pesquisadora da temática futebolística, enfrentei algumas barreiras e preconceitos de inúmeros colegas dentro e fora da academia: “Como assim, uma mulher pesquisando futebol? Falando sobre futebol? Deve ser uma maria-chuteira”. Preconceito puro.
Essa postura me levou a questionar: se dentro do meio acadêmico – supostamente igualitário – já existem preconceitos na relação ao binômio mulher/futebol quais não seriam, então, os obstáculos que as mulheres jogadoras de futebol vivenciam em seu cotidiano.
Cai de cabeça nas relações de gênero e prática esportiva. É um caminho sem volta.
Por qual motivo este tema é importante?
A vida das mulheres brasileiras é, infelizmente, permeada de violências. No Brasil, os números de agressões domésticas e a taxa de feminicídio permanecem assustadoramente altos. A antropóloga Lélia Gonzalez já nos falava, na década de 1980, que as mulheres negras são as principais vítimas das múltiplas opressões na sociedade brasileira: sofrem com o racismo, pois são negras; sofrem com a misoginia, pois são mulheres; e sofrem com o classicismo, pois ocupam – vias de regra – as camadas mais pobres e carentes da população. Contudo, segundo Gonzalez, não há como hierarquizar essas opressões. Ou seja, elas se interseccionam, atuando de maneira conjunta ocasionando múltiplas formas de violência.
As jogadoras que foram minhas interlocutoras eram, essencialmente, negras, pobres, lésbicas e moradoras de bairros paulistanos considerados periféricos. Desvelar as violências vividas diariamente por elas serviu para apontar e denunciar que ainda há muito a ser feito para assegurar igualdade e segurança para essas mulheres É preciso pensar em políticas públicas que assegurem, de fato, uma vida livre de violências para essas mulheres.
POR DENTRO DA PESQUISA
Qual o recorte social das personagens da pesquisa? Elas têm origens semelhantes?
Ao longo da tese de doutorado transitei em diferentes equipes de futebol de mulheres da cidade de São Paulo. Tive a oportunidade de realizar a pesquisa em equipes de mulheres de diferentes classes sociais, cores e orientações sexuais. Na Antropologia, essa diversidade é muito importante, ela é desejada e muito valorizada. É a diversidade humana que nos permite – ao traçar alguns paralelos comparativos – indicar questões estruturais da sociedade que muitas vezes passam despercebidas aos olhares de gestores públicos. Penso que uma Antropologia verdadeiramente engajada pode – e deve – impulsionar políticas públicas em prol das mulheres, das pessoas LGBT, das comunidades indígenas e quilombolas.
Como era o relacionamento fora do futebol entre as jogadoras analisadas na sua tese? O que você observou do vínculo entre elas fora do campo?
O futebol, assim como qualquer outra prática esportiva, é uma atividade social. Logo, é humanamente impossível não haver relações (sejam elas de amizade, inimizade, afeto, desafeto, parceria ou mesmo amor) entre mulheres que treinam juntas, vivem juntas em momentos de concentração, jogam juntas e disputam campeonatos juntas enquanto equipe. O ser humano é um ser social, as relações estabelecidas entre elas – assim como entre nós que não somos jogadores/as – são variadas e múltiplas.
Que tipo de torcedor frequentava/frequenta os jogos? Como se comportavam e como as jogadoras respondiam dentro de campo?
A pesquisa de doutorado foi desenvolvida entre os anos de 2013 e 2016, sendo que 2017 foi dedicado exclusivamente para a escrita da tese. Entre os anos de 2013 e 2016, nós vivíamos no Brasil um momento bastante delicado no que diz respeito às questões políticas, é evidente que esse momento refletiu-se para todos os âmbitos da vida pessoal das pessoas que participaram da pesquisa que originou a tese de doutorado. Cabe dizer, também, que a história do futebol feminino é marcada por interdições e proibições – a modalidade foi proibida às mulheres, por lei, até o começo da década de 1980.
Momento político conturbado, falta de informação sobre a modalidade e altas doses de preconceito ocasionavam em comentários e fala homofóbicas, misóginas e racistas por parte de “torcedores”. Se a gente para analisar, não é nada diferente do que existe no futebol praticado por homens.
QUER SE APROFUNDAR NO TEMA?
– Elas e o futebol. Ano de publicação: 2019. Autora: Várias Autoras. Editora: Xeroca!. Páginas: 223.
– Mulheres Impedidas – A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo. Ano de publicação: 2017. Autora: Giovana Capucim e Silva. Editora: Drible de Letra. Páginas: 246.
– Mulheres na área – Gênero, diversidade e inserções no futebol. Ano de publicação: 2016. Autora: Cláudia Samuel Kessler (Organizadora). Editora: UFRGS. Páginas: 259.
Título da tese: “Sou feita de chuva, sol e barro”: o futebol de mulheres praticado na cidade de São Paulo
Autora: Mariane da Silva Pisani
Instituição de Ensino: Universidade de São Paulo (USP)
Mariane da Silva Pisani é professora Efetiva na Universidade Federal do Tocantins. É formada no curso de Ciências Sociais, com habilitação em Bacharelado, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2007-2011). Em 2011 ingressou no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Em 2013, ingressou como aluna de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP) onde desenvolveu pesquisa vinculada ao Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS) e ao Núcleo de Antropologia Urbana (NAU). Realizou Estágio de Pesquisa no Exterior (Jul a Dez de 2016) na Universidade de Amsterdam. Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Antropologia do Esporte, Antropologia Audiovisual, Antropologia Urbana, Estudos de Gênero e Educação de Sociologia. |
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