Scouting, gestão de grupo e fator sorte: os métodos de trabalho de Monchi no Sevilla

Finalista da Europa League pela sexta vez, Monchi, pelo YouTube, gratuitamente, oferece aulas e disseca conceitos que o fez referência mundial

Se não for a maior, Ramon Rodríguez Verdejo, de 51 anos, está entre as maiores referências do futebol mundial na área em que atua. Ex-goleiro, Monchi, como é conhecido, atuou pelo Sevilla por quase uma década, mas somou apenas 115 partidas. Tudo isso porque o espanhol foi, durante boa parte de sua trajetória, reserva de Juan Carlos Unzué. Embora apresente uma passagem longeva e inspiradora, não foi unicamente como atleta que elevou o seu nome na história do clube.

Em 1999, depois de anunciar a aposentadoria aos 30 anos e ver o Sevilla rebaixado para a segunda divisão, Monchi foi nomeado como diretor de futebol do clube. Dentre tantos objetivos, a implementação de uma nova metodologia para as categorias de base e uma efetiva rede de scouting eram tratados com urgência. Desde então, mais sucessos do que fracassos.

De 2000 até 2019, ano em que aceitou fazer parte do projeto proposto pela Roma, Monchi, juntamente com sua equipe, seja através da base ou da observação, descobriu nomes como Sergio Ramos, Daniel Alves, Luis Fabiano, Ivan Rakitić, Seydou Keita, Jesús Navas, Diego Capel e Frédéric Kanouté. Com a ajuda destes e outros tantos nomes, conquistou a UEFA Europa League em cinco ocasiões, duas Copas do Rei, uma UEFA Super Cup e uma Supercopa da Espanha. Sempre montando plantéis jovens, chegando primeiro e revendendo por muito mais do que o investido. Como pede o manual.

Com todo o currículo, é natural que Monchi tenha se tornado exemplo para clubes de pequeno, médio e grande porte. Justamente por isso, entre os meses de abril e junho desde ano, o Sevilla, em um período onde a quarentena mostrava-se obrigatória e a pandemia se alastrava, resolveu presentear os fãs. Numa sequência de 13 vídeos com 13 minutos cada, número que remete à camisa utilizada enquanto jogador, Monchi lecionou sobre seu perfil e metodologia de trabalho.

Aula I – O fator sorte

Contexto: É sabido que Monchi, após anos na Espanha, passou duas temporadas na Roma, cujos frutos não foram colhidos como na trajetória anterior. Justamente por isso, o dirigente ressalta que, embora tenha sua metodologia, o contexto sempre falará mais alto. Nenhum clube é igual, seja por capacidade monetária, plantel ou cultura.

Lado humano: Dentre tantos métodos abordados por Monchi, o humano é um dos mais valorizados. Dirigentes podem contar com o conteúdo teórico e a linguagem acadêmica. Ninguém, no entanto, atinge o funcionário, seja ele jogador ou treinador, se não o valorizar como pessoa.

Modelos de planejamento: Em sua visão, existem três tipos: o presidencialista, que, como o nome diz, prioriza a principal figura do clube; o anglo-saxônico, que trata o treinador como o protagonista, algo visto nos anos de Alex Ferguson e Àrsene Wenger por Manchester United e Arsenal, respectivamente; e o misto, cujo modelo é adotado pelo Sevilla e privilegia a divisão de trabalho entre as principais frentes da instituição (presidente, diretor de futebol e técnico).

Acaso: Monchi faz questão de começar a série enfatizando que, quanto menos o clube depender do acaso e da aleatoriedade, mais próximo do sucesso estará. Deve-se trabalhar ao máximo para que todos estejam caminhando para o mesmo destino.

Scouting: Todo clube minimamente profissional e que preza pelo longo prazo tem um setor que analisa o mercado. Chegar antes, seja para revender o atleta ou para ter garantias desportivas, é a receita de sucesso para clubes que não se encontram no topo. Para Monchi, ninguém trabalha sozinho. Obter uma rede de scout é questão de sobrevivência.

Direção única: Conforme já citado, é crucial, para o sucesso do clube, que todos os envolvidos no projeto estejam no mesmo caminho. A ideia é que adversários sejam somente a equipe em campo contrário, e não os colegas de trabalho.

Aula II – Os pilares básicos

Planejamento: O futebol brasileiro está cansado de ouvir essa palavra. Não por estar ao lado dele, mas pela ausência. Monchi entende que, com clareza e sensatez, se pontue os objetivos a curto, médio e longo prazo. É importante que improvisos sejam evitados e rotinas sejam implementadas.

Divisão de trabalho: É comum (mas não correto) não darmos nomes a todos os que fazem parte do projeto. O próprio Monchi é exemplo disso, pois costuma levar todo o crédito das conquistas em que fez parte. Para ele, ninguém é super-herói e capaz de trabalhar sozinho. Compartilhar tarefas e valorizar os que estão ao seu lado é inegociável.

Aula III – Observação bruta

Acompanhamento dos jogadores: De julho a dezembro, período em que se dá a primeira parte da temporada europeia, a equipe de scouting do Sevilla, que conta com 12 observadores espalhados pelo mundo, assiste futebol de maneira geral, o máximo de partidas possíveis, sem colocar obstáculos ou objetivos. O intuito é incorporar a base de dados para, então, passar para a próxima fase.

Ligas observadas: Monchi e sua equipe separam as ligas em classes: Classe A (Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Portugal, Argentina e Brasil), Classe B (Áustria, Polônia, Suíça, Croácia, Peru, Colômbia, Chile, México e Estados Unidos) e Classe C (Copa Ouro, Conmebol, Copa da Ásia e Copa da África). Pela divisão de trabalho, cada scout trabalha, em média, com uma liga Classe A e duas ligas Classe B.

XI ideal: Para melhor acompanhamento, cada um dos observadores realiza uma seleção do mês. Assim é na Classe A (os melhores jogadores do campeonato de cada país), Classe B (os melhores jogadores da classe entre todos os países abordados) e Classe C (os melhores jogadores do torneio).

Aula IV – Observação pela internet

Acompanhamento dos jogadores: De janeiro a maio, na segunda e última parte da temporada, o scouting tem, como foco, apenas os jogadores selecionados na fase anterior. A não ser por um caso muito peculiar, ninguém entra, ninguém sai. Desta vez, os nomes colhidos são analisados por diferentes scouts e em diferentes contextos, como jogos dentro e fora de casa, por time e seleção ou postura em vantagem e desvantagem no placar.

Caso Dragutinović: Entre um assunto e outro, Monchi transforma a teoria em histórias que aconteceram durante a sua trajetória. Em 2005, o Sevilla acreditou que seguraria Sergio Ramos por mais um tempo e não se preocupou com um possível substituto. No entanto, o jogador foi vendido para o Real Madrid, e o dirigente contratou Ivica Dragutinović urgentemente. Deu certo. Mesmo com o acerto, Monchi garante que dependeu do improviso e da sorte e, desde então, se prepara para toda e qualquer possibilidade. Tornar-se refém do acaso não é tratado como pauta.

Caso Unai Emery: Pela longevidade no cargo, o clube foi de encontro ao modelo de planejamento para dar mais protagonismo às escolhas do treinador. Meses depois, Unai Emery se transferiu ao Paris Saint-Germain. Para o seu lugar, o Sevilla contratou Jorge Sampaoli, cuja ideologia apresentou mudanças significativas em relação ao antecessor.

Aula V – Afinando ao máximo

Físico: No momento de observação, os scouts consideram não somente o jogador, mas o contexto do Sevilla. Para atuar na equipe, é importante que se corra de 11 a 11.5km por jogo e que haja 800 metros de intensidade a cada ação.

Técnico-tático: Para melhor analisar o atleta, um ranking foi desenvolvido. Cada letra equivale a um nível, sendo A (precisa ser contratado), B (muito interessante), C (precisa continuar sendo observado), D (não precisa ser contratado) e E (não há muito o que fazer).

Adaptação: No futebol, existem dois tipos de jogadores: os que trazem resultado imediato, seja ele desportivo ou econômico, ou os que chegam a um determinado nível, mas, por algum motivo, não consegue ultrapassá-lo – o que leva o nome de Princípio de Peter.

Aula VI – Os perfis

Teoria da lâmpada e da mesa: Sendo coerente com o planejamento estratégico do clube, é necessário fazer o que estiver ao alcance. No momento em que a temporada vai se tornando decisiva e o papel do treinador na montagem do próximo elenco passe a ser crucial, entenda as necessidades do comandante, priorize suas opiniões e execute o plano.

Cumplicidade: O treinador deve ser melhor amigo do diretor de futebol. Se ele opinar sobre um determinado jogador, é possível que ele já o conheça, facilitando o processo de adaptação.

Aula VII – Negociação

Pluralidade: Embora Monchi garanta que não é um grande especialista no momento de negociar, a experiência o ajuda. Para ele, chegar às reuniões com alternativas e opções nos momentos de imprevisibilidade o favorece em momentos de pressão.

Principais fatores: É natural ter restrições e rancor de negociações passadas com o clube ou dirigente. Contudo, é mais do que preciso colocar o objetivo da instituição em primeiro plano. Não se desesperar, maximizar benefícios sem prejudicar o outro lado e preservar boas relações fazem parte do ideal.

Aula VIII – Adaptação

Pertencimento: É extremamente comum vermos jogadores totalmente capazes não darem certo em seus novos clubes. Isso se dá por diversos motivos, e a adaptação é um dos principais. Por isso, é importante que o atleta, seja pelo clube ou por conta própria, se interesse pela cultura, história e cidade pertencente.

Apresentação: De acordo com Monchi, o Sevilla prepara todo e qualquer jogador para a apresentação à imprensa e torcida. A ideia é que não se prometa quantidade de gols, assistências ou qualquer outro objetivo, o que o prejudicaria em campo.

Monchi entende que a gestão de grupo é um dos fatores essenciais para o sucesso coletivo (Foto: Getty Images)

Aulas IX e X – Gestão de grupo

Liderança: Entender de futebol é o fator principal para se trabalhar em um clube. Se engana, no entanto, quem pensa que é o único. Saber lidar com pessoas, sobretudo em grande quantidade, é uma virtude que poucos possuem. Ser um bom ouvinte, fazer com que o outro se sinta importante, fazer perguntas ao invés de ordenar e permitir que se sintam parte do projeto são táticas utilizadas diariamente por Monchi.

Resiliência: Usando a experiência com Antonio Puertas e José Reyes, ex-jogadores do Sevilla que faleceram precocemente, o diretor garante que o segredo está em como reagir às adversidades. É sobre transformar a dor em força, seja ela mental ou motora.

Aula XI – Big Data

Áreas utilizadas: Antes considerado um Small Data, como o próprio Monchi define, o Big Data passou a ser utilizado cada vez mais e melhor com o passar dos anos. Presente no scouting e na prevenção de lesões, o algoritmo tornou-se preponderante no esporte. Sabendo o dado que deseja explorar, tendo em vista que uma partida é capaz de gerar até 8 milhões, é uma ferramenta que só contribui diariamente.

Necessidade: “Quem não subir nesse trem, se distanciará do êxito.” O Big Data, há anos, deixou de ser o futuro para se tornar ferramenta diária dentro dos clubes. E nem sempre trabalhado por gente do futebol. Por fazer parte do departamento de Inteligência Artificial, Monchi abre as portas para matemáticos e engenheiros que tenham conhecimento na área. Toda ajuda é válida. Mesmo assim, afirma que, além de idiomas e do próprio futebol, dirigentes precisam, sim, entender do assunto.

Aula XII – A categoria de base como pedra filosofal

Departamento de Otimização do Rendimento: É, basicamente, o setor mais importante do centro de formação do Sevilla. Local onde priorizam a questão física dos jovens, com GPS e ferramentas de última geração, e criam padrões de força e intensidade.

Departamento de Desenvolvimento do Talento: É sabido que, para além da qualidade técnica, o jovem precisa se adaptar ao contexto para oferecer o seu máximo. Para isso, o Sevilla foca na captação dentro da cidade. Assim, o garoto não se distancia dos familiares e o rendimento se aproxima do ideal. Metodologia clara, conceitos táticos-técnicos, preparação física e personalização (trabalho em pequenos grupos) é marca característica da cantera.

Aula XIII – Resolvendo questões

O último vídeo da série se resumiu ao Monchi respondendo questões feitas sobre aulas anteriores e seu método de trabalho como um todo:

XI ideal: Ainda que se tenha pensado o contrário, a seleção dos melhores jogadores é feita de acordo com as condições econômicas do clube. De nada adiantaria, por exemplo, colocar Lionel Messi, por La Liga, e Neymar Júnior, por Ligue 1, nos relatórios semanais.

Planejamento: Da mesma forma que o scouting acompanha jogadores de todo o mundo, analisa-se perfis de possíveis treinadores para o Sevilla, sobretudo quando o cargo deixará de ser ocupado em um futuro próximo.

Coronavírus: A pandemia mudou todo o ciclo e organização dos clubes. Caminhando para mais uma janela com altas quantias e surpresas, dirigentes precisaram se reinventar com o surgimento do vírus. Além de focar em jogadores em fim de contrato e por preços aceitáveis, um protagonismo ainda maior será oferecido aos jogadores provenientes das categorias de base.

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1 comentário

  1. Terminei a aula 5.
    É um baita material de um clube que tem CLAREZA de objetivos (missão e visão).
    Sabe onde está no mercado e contra quem é a “sua liga”.
    Acaba de ganhar outra UEFA league … a sexta !
    Saúde e paz !

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