A importância da torcida Coligay para o futebol brasileiro

Surgida em 1977, a Coligay foi tema da tese de doutorado de Luiza dos Anjos, que analisou o impacto de uma torcida gay num futebol "historicamente estruturado em consonância com valores alinhados à masculinidade viril"

Discutir gênero e sexualidade no esporte é a principal proposta de Luiza do Anjos, doutora em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS, desde o início da carreira acadêmica. A fim de tornar o debate mais específico, escolheu a Coligay, histórica torcida gay do Grêmio que permanecera em atividade entre 1977 e início dos anos 1980, como objeto de estudo em sua tese de doutorado. Num ambiente predominantemente masculino, mergulhar na organizada gaúcha “é um marco importante nas experiências de sociabilidade LGBT+ no futebol”, afirma a autora.


Qual foi o seu principal propósito ao escolher essa linha de pesquisa?

A discussão sobre gênero e sexualidade no esporte e, mais especificamente, no futebol é algo a que me dedico desde o início da minha trajetória acadêmica. É aquilo que me mobiliza enquanto pesquisadora. São temas que me permite questionar o que está posto, visibilizar existências rejeitadas, analisar lacunas, margens, desestabilizações. Isso tudo me move. E me parecem vislumbres de um esporte mais plural, inclusivo, democrático.

Escolhi a Coligay, em específico, pois a existência de uma torcida gay soava como algo improvável ou mesmo impossível no futebol que conhecemos. Algo sobre o que havia muito a se descobrir e discutir. Era até surpreendente que houvesse tão poucas pesquisas sobre ela. 

Por qual motivo este tema é importante?

O futebol foi historicamente estruturado em consonância com valores alinhados à masculinidade viril. Se como pesquisadoras(es) buscamos entender melhor esse fenômeno, é fundamental que haja quem se dedique a discutir sobre os atravessamentos de gênero e sexualidade. Trabalhos focados na homossexualidade e na homofobia no futebol têm crescido, mas ainda são raros. A Coligay é um marco importante nas experiências de sociabilidade LGBT+ no futebol. 

Quais as conclusões do estudo?

Uma contribuição importante do trabalho é compartilhar uma história da Coligay. Quem eram essas pessoas, como se uniram, como eram seus rituais, como era sua performance na arquibancada, como era o convívio com as/os demais gremistas e com outras torcidas. Assim como entender as dificuldades que encontraram e como as superaram. 

Entre outros elementos que poderia destacar, foco no que chamo de um deslocamento do significado da Coligay. Explico isso a partir da referência a duas expressões encontradas na pesquisa: de “São bichas, mas são nossas” para a “Diversidade da alegria”. 

“São bichas, mas são nossas” – uma frase utilizada no jornal Zero Hora em 1977 – define o reconhecimento de uma homossexualidade indesejável, mas aceita em função do reconhecimento daqueles torcedores/as da Coligay como “um de nós, gremistas”, verificado e conquistado a partir de seu apoio dedicado e fiel. E legitimado sobretudo a partir do titulo estadual daquele ano (após 8 anos de jejum), que lhes trouxe também a fama de pé-quentes.

A “Diversidade da alegria” – título de um painel dedicado à Coligay exposto no Museu do Grêmio, aberto em 2015 – desloca a homossexualidade: de um defeito a ser tolerado para um valor a ser exaltado. Essa afirmação ilustra o esforço recente do Grêmio em se afirmar como clube plural, inclusivo, diverso. Na tese, discuto como o estigma de racista que o Grêmio carrega como desdobramento de uma identidade de clube elitista e germânico, intensificado após o “caso Aranha”, contribuiu para que percebesse a necessidade de ressignificar suas tradições, visando provar-se não apenas um clube não-excludente, mas uma agremiação plural e inclusiva. Lembrar e valorizar a Coligay ocorre nesse contexto.


POR DENTRO DA PESQUISA

Além de ser uma torcida gay, quais outras características diferenciavam a Coligay das outras organizadas do Grêmio?

Ser uma torcida gay para a Coligay se desdobrava em uma diferença na manifestação na arquibancada. Mais do que explicitar a homossexualidade de seus integrantes, ela fazia de tal identidade sexual o norteador da performance estética do grupo em ação. Usavam longas batas com as cores do Grêmio, chapéus extravagantes, acessórios com plumas e paetês. Rebolavam, gritavam de forma estridente, cantavam músicas em que elogiavam a beleza de atletas. 

Mas além disso, há o reconhecimento de que eles também se diferenciavam por sua animação e pelo apoio ininterrupto. 

Como a Coligay se localiza historicamente no surgimento de torcidas gays? Ela influenciou o mesmo movimento em outros estados e clubes brasileiros?

Quando ocorre o surgimento da Coligay, Telê Santana (que treinava o Grêmio no momento) afirma que já conhecia um grupo semelhante do Cruzeiro. Assim, é possível que outros agrupamentos que reuniam homossexuais torcedores(as) a tenham antecedido. Mas a dimensão que ela alcançou a coloca num lugar de inegável pioneirismo.

Nas notícias que fazem referência a existência de outras torcidas gays na época, é comum que a Coligay seja citada como referência. Acredito que ela tenha servido sim de inspiração, mas qual o grau de influência exerceu não tenho como precisar pelos dados que encontrei. São possibilidades para estudos futuros.

Como era a convivência da Coligay – e outras organizadas LGBT’s – com a ditadura militar?

Parece surpreendente, mas os integrantes da Coligay que entrevistei não mencionam ter sido diretamente impactados pela ditadura. Alguns aspectos podem ter contribuído para isso. Nenhum deles se engajava em manifestações de oposição ao governo, nem frequentavam espaços nos quais debates políticos e de crítica eram frequentes. O líder do grupo, Volmar Santos, também parecia ter uma boa relação com agentes da polícia, o que garantia que a boate que servia de sede da torcida – o Coliseu – não fosse alvo de ações repressivas. Segundo conta, também tinham acesso a “gente importante”. Sobre as outras torcidas, não tenho como responder.

Como está o cenário atual no Grêmio e no Brasil? Tem havido mais liberdade para esta parcela de torcedores?

Me parece claro que a discussão de pessoas LGBT+ nos esportes está em pauta. A mídia tem dado atenção a isso e torcidas, jogadores, clubes e federações, que durante tanto tempo ignoraram a existência de tais sujeitos – e mesmo contribuíram com sua invisibilidade – têm sido convocados a responder e agir sobre alguns dos processos que os mantém à margem e em especial sobre manifestações de preconceito. O Grêmio se insere nisso. Como alguns clubes, já realizou posicionamentos no Dia Internacional contra a Homofobia e no Dia do Orgulho LGBT+. E, em seu museu, dá visibilidade à Coligay, se apresentando como um clube com uma trajetória de pluralidade. 

Apesar disso, não diria que há mais liberdade para tais torcedores(as). A maior evidência disso é que hoje em dia não temos uma torcida gay em atividade, como ocorreu na década de 1970. Nesse sentido, fica evidente que as manifestações públicas de rechaço à homofobia que alguns clubes têm feito não são suficiente para promover essa inclusão. Precisamos ir além. 


QUER SE APROFUNDAR NO TEMA?

Primeiramente, aproveito para divulgar o livro baseado na Tese, com ajustes e acréscimos, que lançarei em agosto. Se chamará: Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay, e será publicado pela Dolores Editora.

Outras indicações são:

– Uma história do torcer no presente, de Gustavo Andrada Bandeira, publicado pela editora Appris, em 2019;

– Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. organizado por James Green e Renan Quinalha, publicado pela EdUFSCAR, em 2014;

– Educação Física e Sexualidade: Desafios Educacionais, organizado por Priscila Gomes Dornelles, Ileana Wenetz e Maria Simone Vione Schwengber, publicado pela Editora Unijuí, em 2017.


Título da tese: De “São bichas mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay
Autora: Luiza Aguiar dos Anjos
Instituição de Ensino: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Luiza Aguiar dos Anjos é professora de Educação Física e mestre em Estudos do Lazer pela UFMG e doutora em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS. Suas pesquisas abordam as questões de gênero e sexualidade no campo das práticas corporais, envolvendo contextos de lazer e da escola. Em especial, pensar esses temas no futebol e nas torcidas. 
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