BRILHO, INTELIGÊNCIA E HISTÓRIA: OS INVINCIBLES DO ARSENAL
Por @FilusLucas A surpreendente notícia da iminente saída de Arsene Wenger do Arsenal trouxe da memória várias lembranças marcantes sobre o treinador. A revolução que proporcionou ao futebol inglês deixou um legado até hoje, mesmo considerando suas últimas campanhas pouco inspiradas. Há cerca de 15 anos, o francês comandava uma das equipes que entrou pra […]
Por @FilusLucas
A surpreendente notícia da iminente saída de Arsene Wenger do Arsenal trouxe da memória várias lembranças marcantes sobre o treinador. A revolução que proporcionou ao futebol inglês deixou um legado até hoje, mesmo considerando suas últimas campanhas pouco inspiradas. Há cerca de 15 anos, o francês comandava uma das equipes que entrou pra história do esporte britânico.
O termo Invincibles foi usado pela primeira vez em 1888/89, quando o Preston North End passou uma temporada sem derrotas sob o comando de William Sudell. Foram 27 jogos invictos na Liga e na FA Cup… o que não se compara ao feito conquistado pelos gunners depois de mais de um século. Fora do Reino Unido, três clubes venceram seus campeonatos nacionais sem sentir o gosto do revés: Milan (91/92 – Fabio Capello), Juventus (11/12, Antonio Conte) e Celtic (16/17, Brendan Rodgers).
Nenhum se aproximou do nível apresentado pelo Arsenal em 2003/04, principalmente no quesito estilo devastador e jogadas bem trabalhadas por atletas habilidosos. A campanha terminou ‘só’ com o título da Premier League e três eliminações nas Copas, diante de Chelsea (Champions League), Middlesbrough (League Cup) e Manchester United (FA Cup). Mas o tamanho do triunfo doméstico valeu muito mais do que o torcedor poderia imaginar.
Era um time baseado em movimentação constante, troca de posições e supremacia física – em força e velocidade. A começar pela proteção da meta, feita pelo novo reforço Jens Lehmann; o alemão dava imponência e a noção do que estava por vir à frente. Sua excentricidade ocasionava alguns momentos de tensão, mas o veredicto final foi positivo. O conjunto se posicionava inicialmente em um 4-4-2, mas na maior parte do tempo se via um 4-4-1-1. Chegaremos no ataque, a cereja do bolo, em instantes.
Lá atrás, a linha de defesa não se mexia tanto sem a bola e preferia manter a estrutura, esperando algum erro do adversário. E contava com duas tacadas certeiras de um Wenger no ápice da sua veia imaginativa. Lauren, meio-campista em sua passagem pelo Mallorca, havia se tornado lateral direito em Londres. Na dinâmica ofensiva, o camaronês era responsável pela amplitude e dava sua contribuição em forma de cruzamentos. Do outro lado, Ashley Cole também se encontrava esticando o campo, mas sendo incisivo com infiltrações diagonais.
Kolo Touré foi contratado para atuar como meia defensivo ou lateral, mas na preseason impressionou o chefe na zaga e ficou por lá. Enquanto Sol Campbell muitas vezes ficava na sobra, preocupado com lançamentos nas costas, o marfinense de vez em quando se aventurava com conduções pelo centro. Seu irmão, Yaya, chegou a fazer um teste no clube também na pré-temporada e não conseguiu chamar a atenção da comissão técnica. Outro meia dominante, então, foi peça fundamental nesse quebra-cabeça.
Patrick Vieira tinha praticamente tudo que você pode imaginar em um clássico box-to-box. O capitão era o motor da equipe, conduzindo a bola da defesa pro ataque quando possível e ativando tabelas rápidas na maior parte do tempo. Essa troca de passes contava com a ajuda de Gilberto Silva, uma ‘base’ sólida dessas construções que em alguns momentos participava efetivamente dos lances no campo ofensivo. Sem a posse, o time até fazia uso da pressão, mas sem a agressividade de alguns exemplos atuais (como o City de Guardiola e o Liverpool de Klopp).
Henry e Bergkamp começavam a marcação adiantada e tentavam sufocar a saída, mas se a bola chegava no meio a instrução era de retrair a postura e focar em eventuais transições. Com uma espinha dorsal tão combativa, essa era uma situação que se repetia frequentemente nas partidas, portanto os atacantes já se preparavam anteriormente para as jogadas. O francês já estaria caindo pela esquerda para puxar a investida com velocidade e o holandês procurava o melhor ângulo entre as linhas.
Em articulações seguindo um cenário estável – conquistando terreno pelo meio, até chegar no último terço e ativar o brilho dos jogadores -, Bergkamp em certos instantes saia totalmente de sua posição inicial e recuava para formar um trio com Vieira e Gilberto. Ou seja, no núcleo do gramado o Arsenal contava com estabilidade posicional, conduções perigosas e uma das mentes mais criativas da história.
Essas descidas do camisa 10 se somavam à imprevisibilidade de Thierry, que tinha movimentos bem difíceis de serem compreendidos e acompanhados pela marcação. Ele caia pelos flancos, alternava seu posicionamento conforme a bola corria e sempre era uma constante ameaça com suas corridas variadas para a área; guardadas as devidas proporções, podemos comparar esse estilo com o de Kylian Mbappé em 16/17 pelo Monaco.
A construção acontecia através de muitos ‘apoios’ – aproximações – e o uso inteligente das ‘corridas de terceiro homem’ (https://www.youtube.com/watch?v=H1utBfByX4c), atraindo um oponente e o tirando da jogada com uma simples sequência. Dessa maneira, a posse costumava chegar limpa para dois pontas que agiam como meias auxiliares. Pires e Ljungberg abriam o corredor para as subidas dos laterais e se concentravam em criar conexões com Bergkamp e Henry. Com esse desenho implantado na prática, o entrosamento e a qualidade técnica colocavam a maioria das defesas em situações impossíveis.
Todos os membros do quarteto eram ótimos finalizadores e usavam esse atributo de forma direta e indireta. Vários gols saíram dessa forma e muitos outros só aconteceram pela simples ameaça da finalização de média e longa distância. Ao segurar o esférico e dar a impressão de uma batida, conseguiam abaixar a guarda da contenção e consequentemente dar o ‘sinal’ para alguma infiltração decisiva.
A força da equipe estava no conjunto, mas é interessante notar como uma espécie de separação gerava interrogações na marcação. Para exercício de imaginação, em alguns momentos era possível dividir dois blocos: os quatro da frente (Pires, Henry, Bergkamp, Ljungberg) trocando de posição com os quatro que vinham atrás (Cole, Gilberto, Vieira, Lauren), alternando o ponto de referência da articulação e tornando a tarefa rival confusa.
Os comandados de Arsene não jogavam no contragolpe (tirando momentos esporádicos, como os confrontos fora de casa contra Leeds e Tottenham) ou buscavam chances através do counterpressing, mas devido ao perfil dinâmico e veloz do elenco muitos lances eram diretos e avassaladores. Ninguém tinha vergonha de lançar pelo alto – pelo contrário, usando da bola longa como artifício para pegar a sobra em posições perigosas e agredir com uma urgência que não é tão forte em criações mais controladas.
Existiam brechas e dias em que o pé não estava tão calibrado (tanto é que foram 12 empates no campeonato), mas é indiscutível a presença de um padrão de jogo minuciosamente arquitetado. E treinado diariamente com artifícios bem superiores aos dos rivais, considerando a época em que a Premier League ainda caminhava para se tornar a potência – como competição – que é atualmente. O resultado se viu nos espetáculos oferecidos para a torcida no Highbury. E para todos os rivais que, derrotados ou não por esse Arsenal, precisam admirar os Invincibles.
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