In Youth We Trust: o alicerce dentro e fora de campo do Anderlecht

Buscando retomar os títulos na Bélgica, o Anderlecht aposta muito nas categorias de base

O Royal Sporting Club Anderlecht é o grande clube da Bélgica, sendo o maior campeão nacional com 34 títulos da liga conquistados, além de uma extensa lista de jogadores revelados pela academia do clube da região de Bruxelas. Dries Mertens, Adnan Januzaj, Alexis Saelemaekers, Leander Dendoncker, Dennis Praet, Youri Tielemans, Romelu Lukaku, Enzo Scifo e Vincent Kompany são alguns nomes que deram seus primeiros passos como atletas da equipe malva.

Entretanto, mesmo com tantos títulos conquistados ao longo de uma história de 112 anos, a torcida do Anderlecht está descontente, pois o clube de bruxelense “amargura” uma seca de três anos sem levantar um caneco da liga. Quanto maior a reputação, maior a cobrança. Certo?

Historicamente, o Anderlecht sempre apostou nas categorias de base para trilhar seu sucesso, tanto que o slogan da RSCA Academy é “Turn Your Passion Into Profession” (transforme sua paixão em profissão). O Sporting, como é carinhosamente chamado pelos torcedores, possui equipes que vão do sub-7 até o sub-21, pois o grande objetivo da agremiação é formar jogadores de alto-nível entre 18 e 21 anos para jogar partidas de Champions League ou Europa League. E, claro, para gerar lucro em futuras vendas.

Do sub-7 até o sub-11, as crianças têm liberdade para jogar da maneira como gostam e também são apresentados ao futsal. A partir do sub-13 eles já começam a fazer a transição para o campo maior. Ao contrário da maioria das equipes europeias, o Anderlecht incentiva a compreensão tática dos meninos a partir do sub-15, algo que geralmente é cobrado a partir do sub-17. É nessa categoria que os jogadores são apresentados aos dois esquemas táticos que imperam no clube: o 343 e o 433. É também no sub-15 que os famosos “rondos” são incentivados. Essa prática, que é bastante característica do futebol espanhol, visa aprimorar a velocidade de raciocínio, o jogo associativo e também os dribles.

Muitos dos que conseguem chegar ao sub-17 acabam virando jogadores profissionais posteriormente. O Anderlecht acaba adiantando as etapas devido ao enorme assédio que sofre de outros clubes europeus, e esse procedimento acaba por explicar a baixa média de idade da equipe principal, que há décadas alterna entre 23 e 24 anos.

Entre o sub-17 e o sub-21, que é a última fronteira da base, os treinos são mais longos, mais táticos e o fortalecimento físico dos atletas é tratado como prioridade, principalmente porque o 343 e o 433 são desenhos táticos que exigem intensidade, que é uma das marcas do futebol belga.

O ideal no Anderlecht é fazer com que os jogadores cheguem ao sub-21 no pico do profissionalismo, com conhecimento tático avançado e no auge da forma física. Com relação à parte técnica, o clube malva não tem preocupações excedentes, pois o corpo técnico dos belgas é um dos melhores na Europa Central. Já é de senso comum que os gestos técnicos estejam apurados nessa altura da carreira, especialmente pelo carinho dado no inicio da trajetória dos atletas na academia.

No futebol moderno, atualmente, para um jogador profissional ser considerado de alto-nível ele precisa combinar técnica, força e inteligência. Na seleção principal belga temos os exemplos de Kevin de Bruyne e Romelu Lukaku como jogadores que combinam esses três elementos. Se você parar para pensar, a maioria dos jogadores que competem em alto-nível na Europa aliam esses quesitos.

A RSCA Academy, que fica em Neerpede, possui campos de treinamentos apropriados para cada divisão, escola, acompanhamento psicológico e um centro de desenvolvimento para todos os atletas alojados.

Costumeiramente, o clube posta hashtags em suas redes com os dizeres “In Youth We Trust” (na juventude nós acreditamos) ou “Made In Neerpede” (feito em Neerpede) para valorizá-los.

É de suma importância para um clube como o Anderlecht, que não pode segurar suas promessas por muito tempo, revelar jogadores que preencham pelo menos duas dessas três qualidades, ao menos. Desta forma, o conjunto belga se mantém forte nacionalmente e consegue lucrar no maior mercado do futebol.

E visando aperfeiçoar sua operação para recuperar o tempo de seca, o Anderlecht acertou a contratação de um misterioso reforço que mudou a mentalidade de Gent e Club Brugge. Peter Verbeke, de apenas 37 anos, chegou ao gigante belga para ser o novo diretor esportivo em março de 2020 após sucesso no Gent, uma das equipes que melhor trabalha o scouting na Bélgica. Antes do Gent, Verbeke era o coordenador de scouting e recrutamento das categorias de base do Club Brugge, que fora duas vezes campeão nacional durante sua estadia por lá.

Verbeke é chamado de “O Especialista” na Bélgica devido à sua precisão em encontrar jogadores desconhecidos e torna-los em estrelas. O diretor esportivo possui mestrado em Direito, Direito da Saúde e Direito Esportivo. Além de ser um analista de dados, nos primórdios, Verbeke chegou a ser treinador de jovens num clube amador da região de Gent, que explica o alto conhecimento tático e técnico que ele tem do jogo.

Reservado, porém, ambicioso. Esse vídeo do planejamento da atual temporada do Anderlecht foi uma das poucas vezes que Peter Verbeke apareceu na mídia.

Com todos esses predicados, Verbeke ficou responsável pelo recrutamento de jogadores para a equipe principal, reserva e juvenil do Gent. No Anderlecht, ele tem desempenhado exatamente a mesma função e, ao contrário do que acontecia antes, o clube de Bruxelas tem sido mais criterioso e preciso nas contratações.

Sob o comando do novo diretor esportivo, a equipe malva contratou em definitivo Timon Wellenreuther, Bogdan Mychajlychenko, Ilias Takidine e Mustapha Bundu. Além dos empréstimos de Percy Tau (junto ao Brighton) e Lucas Nmecha (junto ao Manchester City).

Mychajlychenko, Tau e Nmecha são titulares absolutos e Takidine um “roubo” do antigo clube, o Gent, de onde Verbeke o conhecia, porém, um clube que o não valorizava profissionalmente.

O nome mais experiente dos novos jogadores é o de Percy Tau, de 26 anos. Apesar de ser ligeiramente acima da média de idade da política de contratação do clube, Tau preenche os requisitos técnicos e físicos requeridos no Anderlecht. Não só ele, mas como todos os outros nomes foram contratados após uma extensa e meticulosa análise de dados e filmagens de jogos. Verbeke coordena uma equipe de olheiros e analistas de big data, que levam em consideração estatísticas, proporcionalidades e adequação ao estilo de jogo da equipe principal. É necessário um grande agrupamento de profissionais dispostos a ficarem horas olhando filmagens de jogos, traçando paralelos entre dados, técnica e estilo.

Só depois de muita análise que os olheiros são enviados para observar os alvos presencialmente. Além disso, assim como na maioria dos clubes, o Anderlecht de Verbeke angaria informações pessoais do atleta que está sendo observado, como namorada, família, amigos e escolaridade.

O misterioso e jovem diretor esportivo costuma dizer que “as melhores contratações são aquelas que ninguém conhece”. Raramente Verbeke dá as caras, mas essas primeiras escolhas justificam a célebre frase. Mychajlychenko, por exemplo, foi contratado junto ao Zorya Luhansk, que passa longe de ser tradicional na Ucrânia. O lateral-esquerdo de 23 anos é titular absoluto da equipe de Vincent Kompany. Além de barato, ele é jovem, forte e capaz de marcar gols em bolas paradas. Mustapha Bundu, extremo de 23 anos, foi encontrado Aarhus, da Dinamarca. Ele é rápido, forte fisicamente e um ótimo finalizador. São parâmetros que batem.

A adição de Verbeke não é só importante por se tratar de uma jovem estrela no mundo do scouting. Apesar de historicamente gastar pouco e apostar muito na base, ultimamente o clube bruxelense gastou mal esse pouco montante disponível, além de ter ficado para trás no recrutamento de promessas de outros centros futebolísticos. A ampliação da rede de captação e a reestruturação do departamento de análise esportiva não só insere o Anderlecht num mundo vasto como também tira a pressão dos jogadores criados em casa.

Com esse apoio do setor de inteligência do clube, Vincent Kompany, que até o ano passado acumulava a função de jogador e treinador da equipe, ganha mais opções para montar o time ideal.

A juventude do agora treinador de 34 anos combina com uma safra impressionante de atletas revelado na RSCA Academy. Oriundo da mesma academia, e integrante da melhor geração que o país já viu na última década, Kompany entende melhor do que ninguém a importância e a qualidade dos jovens formados ali.

Os dois jogadores mais técnicos da atual equipe titular de Kompany são produtos da base do Anderlecht. Yari Verschaeren e Jeremy Doku, 19 e 18 anos respectivamente, já são referências técnicas na equipe principal, além de serem consideradas as duas maiores promessas a nível internacional da seleção belga, que ambos já frequentam mesmo com tão pouca idade.

Verschaeren e Doku estrearam no mesmo dia. Yari começou como titular e fora substituído por Jeremy no segundo tempo.

Yari Verschaeren é um meio-campista destro de enorme qualidade técnica, se notabilizando pela fineza nos gestos de jogo, como passe, dribles, precisão nos arremates de longa distância e cobranças de falta. Mentalmente, Verschaeren é um atleta muito frio, não sentindo a pressão de jogos importantes. Taticamente, o belga é excepcional lendo o espaço entre as linhas, podendo atuar como um meia-ofensivo próximo ao centroavante ou como um extremo-esquerdo mais criador. Verschaeren é habitue do último terço, mas devido a sua noção espacial do gramado, a joia de Sint-Niklass pode facilmente buscar o jogo na base da jogada também.

Entretanto, o que se debate quanto ao futuro de Yari Verschaeren é o seu porte físico. Com 1,72m de altura, o meia de 19 anos costuma sofrer com os confrontos pela possessão da bola. Como o meio-campo é um setor crítico e de muitos enfrentamentos, Verschaeren precisará evoluir ainda mais o seu jogo do ponto de vista tático para superar essa debilidade.

Por outro lado, Jeremy Doku, de 18 anos, não parece sentir algum problema. Forte, rápido e extremamente habilidoso com a bola nos pés, o extremo belga é um caso raro daquela combinação citada anteriormente de força física, técnica e inteligência. Ele é fatal no um contra um, porque conduz e dribla com facilidade e em alta velocidade, sendo capaz de mudar de direção num piscar de olhos. Doku também é um excelente assistente em cruzamentos, mas a sua tacada de mestre é justamente a finalização.

O pé direito é o forte de Doku, porém, o garoto de 18 anos consegue finalizar e bem com o pé fraco. Além disso, ele pode atuar tanto pelo lado esquerdo quanto pelo lado direito do ataque, isso pode variar de acordo com a estratégia do treinador.

Apesar de ser mais jovem que Verschaeren, Jeremy tem evoluído seu jogo com mais confiança e naturalidade. Ele não é tão alto para os padrões europeus, medindo apenas 1,71m de altura, porém, devido ao fato de ter uma qualidade técnica tão grande e comprometimento tático alto, Doku é observado de perto por gigantes europeus.

Assim como Verschaeren, Doku começou sua trajetória no sub-15 do Anderlecht e ambos os jogadores foram talhados para serem compatíveis com o sistema de jogo da equipe principal. Felizmente, o esquema tático e a estratégia de jogo da equipe de Bruxelas são idênticos ao da seleção. Verschaeren já deixou assistência e Doku um gol pelos Diabos Vermelhos recentemente.

Na última partida, contra o Waasland-Beveren, Verschaeren e Doku foram titulares na vitória por 4×2 do Anderlecht. Ambos os jogadores deixaram suas marcas. Na atual temporada, Yari participou de quatro partidas e marcou um gol enquanto Jeremy foi titular nos seis jogos e marcou dois gols.

Além dessa dupla de enorme potencial, é salutar acompanhar o desenvolvimento de Albert Sambi Lasonga, meia-central de 20 anos, Marco Kana, 19 anos, e de Killian Sardella, defensor de 18 anos. O primeiro já é titular da equipe principal, sendo o motorzinho da equipe de Vincent Kompany. O segundo também é um meia-central, porém, mais técnico e capaz de atuar como zagueiro. O terceiro renovou seu contrato recentemente e deve ganhar espaço com o ex-jogador do Man City por ter similaridades com seu estilo de jogo quando era jogador. Um defensor técnico e que consegue defender a grande área mesmo não sendo tão alto.

O passado do Anderlecht não mente: quanto mais jovem, melhor. No entanto, atualmente o clube está mostrando que a tradição jovial não precisa estar restrita ao campo para que o futuro seja promissor também.

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1 comentário

  1. Espetacular, Caio.
    Tenho um grande amigo que é treinador do sub12 do RSCA (começou no sub7) e o trabalho lá é realmente de excelência.
    Nao conhecia o diretor técnico. Realmente, um visionário.
    Parabens

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