LIBERDADE, IGUALDADE E FUTEBOL

Não foi a primeira vez que estive em contato com o futebol feminino. Mas foi a primeira vez que pude observar tantas equipes distintas e as suas diversas escolas num curto período de tempo. Ao entrar neste desafio, percebi desde cedo que teria de clarear a mente para entender certas especificidades do futebol feminino, devido a ter passado […]

Não foi a primeira vez que estive em contato com o futebol feminino. Mas foi a primeira vez que pude observar tantas equipes distintas e as suas diversas escolas num curto período de tempo. Ao entrar neste desafio, percebi desde cedo que teria de clarear a mente para entender certas especificidades do futebol feminino, devido a ter passado uma vida inteira a consumir o masculino. É como se estivesse a entrar num outro universo futebolístico com outros intérpretes, outros estilos, outras ideias, outras formas de pensar o jogo. No fundo, o jogo é o mesmo, por isso é inevitável comparar o futebol feminino e masculino em certos momentos. Não é uma realidade paralela, porque se tocam alguns pontos, mas é um caminho diferente. E essa trilha diferente não é melhor, nem pior, apenas diferente.


O Primeiro Impacto

Inicialmente, a maior curiosidade que tinha era em relação à cultura das seleções na sua forma de jogar. Aqui pode ser casa de partida para as duas categorias, pois entram os fatores sociais que influenciam no desenvolvimento individual de um atleta: o futebol de rua. Posto isto, os jogadores masculinos e as jogadoras femininas de um mesmo país, acabam por ter características similares no que toca ao ‘’biótipo’’, uma vez que a conexão que têm com a bola é influenciado pelas mesmas figuras e condições sociais. Ainda assim, como todos sabemos, o futebol de competição não é somente rua e o desenvolvimento autónomo. Também necessita dos fundamentos básicos, que se aprendem nas camadas jovens através da orientação de responsáveis capacitados. Aqui que começa o diferencial das seleções que cedo investiram no futebol feminino desde a base, aquelas que começaram a investir nos anos recentes e as federações que ainda ”engatinham” neste sentido.

WWC
Women’s World Cup FIFA Cartoon.

Os países que não atribuem principal importância a esta questão, dificilmente terão retorno no que à qualidade técnico-tática diz respeito. O Brasil consegue a proeza de chegar a estas fases com jogadoras de grande potencial, mesmo colocando o futebol feminino em 3º ou 4º plano. Talvez pela relação próxima entre o país e a modalidade, faz com que, mesmo não havendo o investimento adequado, surjam jogadoras de alto quilate e algumas até de elite. Só que as consequências de não oferecer uma estrutura apropriada a uma seleção de valor ficam à vista quando a competição envolve as melhores do mundo. Durante toda a Copa, a seleção brasileira nunca foi capaz de casar a qualidade técnica com a tática e, por isso, em muitos momentos, não (se) convenceu. Quando persiste a ausência da simbiose entre as várias vertentes do jogo, uma equipe torna-se menos permeável e está mais próxima da derrota. Pior do que isso, ao fracasso. Porque a qualidade individual nem sempre irá mascarar os defeitos de um jogo que é coletivo.

O ambiente vivido no futebol feminino é agradável e isso não surpreende. As decisões tomadas pelas equipes de arbitragem raramente foram contestadas e casos de maior tensão entre jogadoras foram pontuais. A nível de consciência extra-campo, visivelmente, as jogadoras têm maior noção e sensibilização dos problemas comunitários, até por toda a discriminação e preconceito envolvido na sua modalidade, que as faz assumir posições de luta social pouco vistas no futebol masculino.


As Referências Individuais e a Distribuição no Espaço

Uma das evidências deste Mundial foram os imensos espaços livres que haviam para se jogar nos blocos defensivos. Isto acontece porque algumas seleções optam por se defender com referências individuais em todo o campo. Assim sendo, a primeira referência seria sempre o Homem, enquanto o espaço acabaria por ficar para segundo plano, resultando numa enorme exposição ao mínimo de mobilidade do adversário. Naturalmente, este tipo de defesa foi utilizado por seleções que dispunham de maior disponibilidade física, pois exige mais da intensidade individual das ações do que uma organização coletiva.

Marcações individuais – África do Sul vs Espanha

Como podemos observar na imagem, África do Sul marca com encaixes individuais contra uma seleção que abusa da mobilidade das suas jogadoras da frente. A Espanha, ao sabor da maestria de Jenni Hermoso, que desempenhou funções de falso 9 ou até mesmo enganche, procurava flutuar as suas pontas para zonas interiores e fazer com que as meio-campistas atacassem os espaços abertos por Jenni. Dentro disto, foi relativamente fácil para as seleções desmontarem os encaixes sul africanos e levarem a melhor nos respetivos encontros.

A Espanha encarou problemas de finalização ao longo da sua jornada. A ausência de jogadoras que marquem diferenças dentro da área fez com que todo o volume em posse não se traduzisse em chances perigosas. Às tantas, em momentos de desespero, abusaram nos cruzamentos via exterior, que não eram favoráveis às características das jogadoras que procuravam terminar os lances, sendo presas fáceis para as defensoras contrárias.

Drible corporal Nikita Parris vs Yvonne Leuko – Simulação 3D no TacticalPad.

Fazendo uma ponte com o futebol masculino, é um tipo de marcação que entrou em desuso na gigante maioria dos treinadores, talvez com exceção popular do Cardiff de Neil Warnock, que tem alguns conceitos complexos dentro disso. Na verdade, os encaixes individuais começam a reaparecer em peso no futebol atual, mas somente em fases de pressão alta, com o objetivo de anular opções de passe de forma eficaz. Isto deve-se ao facto das equipes procurarem cada vez mais construir o seu jogo a partir de zonas recuadas. É curioso observar que as marcações individuais ainda são vistos com bons olhos por alguns treinadores do futebol feminino, mas acaba por não ser surpreendente pelo contexto dos mesmos.

Contudo, não foram somente as seleções carecidas de qualidade técnico-tática que utilizaram este método defensivo. No primeiro jogo contra a China, a Alemanha surgiu também com encaixes individuais. Embora previsíveis na forma como finalizaram os ataques combinados no primeiro jogo, as germânicas dominaram o encontro em posse e, por isso, os momentos de organização defensiva duravam pouco tempo. Ainda assim, foi possível observar como buscavam as referências individuais próximas para impedir a progressão

Marcações Individuais – Alemanha vs China

Face às saídas rápidas das asiáticas, a Alemanha reagia de forma intensa e agressiva no pós-perda e protagonizou uma das transições defensivas mais sufocantes da 1ª ronda. Porém, Marina Voss-Tecklenburg acabaria por abandonar esta ideia nos restantes jogos e adotar uma postura mais conservadora e posicional com duas linhas de quatro.

Além das marcações individuais, quando se observava uma defesa à zona, a maioria preferia não suster as linhas e havia permissão para as jogadoras quebrarem o posicionamento e fazerem perseguições mais longas à portadora da bola – o que automaticamente acabava por gerar espaços preciosos a serem explorados, principalmente na ausência da compensação.

No Brasil vs Jamaica, as duas seleções destacavam-se pelas perseguições longas no momento defensivo. Na imagem, Dominique Bond-Falsza abandona a sua posição para ‘’caçar’’ Debinha e abre um buraco à invasão de Tamires. Novamente, o mínimo de mobilidade era o suficiente para deslocar jogadoras de posição e expunha a última linha.

Perseguição longa – Brasil vs Jamaica

Para esta forma de defender é necessário que os responsáveis orientem as suas jogadoras a terem movimentos coordenados de maneira a compensar a exposição. Fora isso, é preciso ter a garantia de que, a jogadora que irá realizar esta ação defensiva, ganhe o duelo no qual vai entrar, para poder tirar partido disso. Exemplos de França e Inglaterra, que tiveram melhores ligações neste sentido.

Virando a atenção para a Argentina de Carlos Borrello, a albiceleste apresentou um sistema defensivo de encaixe individual por setor. Tendo o bloco posicionado numa altura média-baixa em 1-4-5-1, a Argentina procurava estancar o adversário através da acumulação de pernas atrás da linha da bola e fazendo uma distribuição espacial rigorosa. As limitações técnicas das comandadas de Borrello fizeram com que o treinador construísse o seu modelo focado no equilíbrio defensivo e a partir daí procurar a baliza contrária de forma direta. Sole Jaimes ostenta uma capacidade física invejável, ganhando muitos metros sozinha. Contudo, a constante luta contra 2/3 defensoras e a falta de apoios próximos deixava a Argentina longe de criar perigo. Nota ainda para Estefanía Banini.

Encaixe individual por setor – Argentina vs Japão

O encaixe individual por setor consiste em encostar no adversário que invade a zona onde a defensora vigia. Quando a atacante abandona o setor da atleta que defende, passará a ser marcada por outra companheira. Observando a imagem, a defesa central, Agustina Barroso, persegue Kumo Yokoyama até esta sair da zona da defensora, passando depois a ser responsabilidade de alguma meio-campista.

São momentos de vigilância tão sincronizados, que levaram seleções como o Japão e Inglaterra a ter dificuldades para perfurarem o bloco das hermanas. Na última ronda, a necessidade de correr atrás de um resultado avolumado fez com que saíssem mais para o jogo, significando um encontro com 6 gols – que infelizmente não foram suficientes para passar à próxima fase.

No capítulo das seleções que têm intenções de realizar trabalhos de pressão em zonas adiantadas, destaque para o pressing posicional do Japão. Numa altura média-alta em 1-4-4-2, convidam o adversário a entrar na sua armadilha (zona de guerra) e depois apertar a portadora da bola, visando comprometer a decisão da oponente. A dupla de atacantes, Sugasawa e Iwabuchi, movimentam-se juntas conforme o percurso da bola, mas sem efetivar agressividade nas defesas, deixando esse trabalho à linha de meio-campo.

Pressing posicional – Japão vs Escócia

Revelando alguns problemas de criatividade em ataque posicional, o Japão de Asako Takakura apresentou argumentos nos pés de Mana Iwabuchi, que tinha tendência a cair nas entrelinhas (grande capacidade para criar em espaços reduzidos), utilizando Yuika Sugasawa como referência de área. A profundidade de Aya Sameshima no corredor esquerdo foi um ponto positivo nos lances nipônicos.

O facto de haver espaço entre setores de muitas equipes faz com que o jogo tenha indíces elevados de ‘’agressão’’, não o tornando tão mastigado ou horizontal. Não existe tanta necessidade das equipes procurarem mover blocos compactos, optando por um jogo mais vertical. Dentro disto, jogadoras com poder de explosão atacando espaços beneficiam deste cenário, tais como Kadidiatou DianiSvenja HuthNikita ParrisSofia JakobssonShanice van de SandenBeth Mead ou Debinha.


Desenterrar o Passado

Os conceitos antigos não se ficaram somente pelas marcações individuais. Surpreendentemente, no primeiro jogo da Alemanha, Voss-Tecklenburg vasculhou o baú da escola alemã e fez renascer consigo o líbero germânico. A tarefa estava entregue a Melanie Leupolz, que surgiu como jogadora livre entre o meio-campo e a defesa alemã. Ora se juntava à última linha no tradicional 1-5-4-1 alemão, ora defendia mais acima, variando para o 1-4-5-1. A intenção era clara: ter alguém que fornecesse os primeiros passes em zonas recuadas e conseguisse distribuir luz para todo o campo.

No entanto, Dzsenifer Marozsán viu o seu dedo do pé fraturado e perdeu o restante do torneio. Talvez por isso, Voss-Tecklenburg, além de diferentes abordagens aos jogos, tenha optado pela mudança para o 1-4-4-2 com Melanie Leupolz ao lado de Sara Däbritz (que inclusive começou a ganhar mais preponderância na área adversária). Para completar o sistema ofensivo, Alexandra Popp como referência e a sua companheira, Svenja Huth, descaindo nas alas, suportadas por uma jovem talento, Giullia Gwinn, infiltrando.

Julie Ertz como líbero – EUA vs Tailândia

No jogo mais desequilibrado do torneio, os Estados Unidos da América surgem com o líbero frente à Tailândia, puramente por uma questão de conforto. Sabendo de todas as fragilidades tailandesas, Jill Ellis ousa ao recuar Julie Ertz para a última linha em fase defensiva, mas no processo ofensivo a jogadora aparece com total liberdade para avançar no campo, inclusive finalizando os lances na área contrária.

Em ataque posicional, as laterais juntavam-se a Abby Dahlkemper para garantir o equilíbrio, Ertz ditando o ritmo com liberdade de movimentos, MewisLavelle completando os triângulos por fora com as extremas bem abertas na linha (HeathRapinoe, a última procurando zonas interiores nas nuances) e Alex Morgan fornecendo apoios frontais. Tudo isto resultou na maior goleada da história do Mundial Feminino, uns assombrosos 13×0.


Os Benefícios de um Jogo Integral

Quanto mais preparados estivermos para os diferentes momentos de jogo, maior domínio exercemos sobre o mesmo e, consequentemente, estaremos a diminuir a aleatoriedade de um encontro de futebol. Não é uma novidade. Por isto, foi visível como seleções que se estruturaram a partir de um modelo bem trabalhado tiraram melhor rendimento das suas atletas e chegaram longe na competição.

Como dito anteriormente, Vadão nunca foi capaz de confortar as suas atletas dentro de uma ideia. A falta de planos conjuntos levou a que tivessem combinações dessincronizadas, tomando decisões precipitadas nas duas fases. Neste Mundial, a qualidade individual por si só não carregou equipes às costas, nem disfarçou problemas estruturais, como por vezes chega a acontecer em torneios curtos.

Os EUA assombraram a competição inteira (à semelhança de outros anos) e os motivos disso advêm de uma aposta forte no futebol feminino num todo. Na liga nacional, em todas as categorias da sua seleção, nas condições que proporcionam às jovens… Na verdade, é curioso como um país que, popularmente, não define o futebol como prioridade, é rainha numa competição feminina.

Dentro de campo, soberania em todos os momentos de jogo. Em ataque posicional procuravam os ritmos de Julie Ertz, a criatividade nos pés de Rose Lavelle, as chegadas de Sam Mewis à área, os dribles em velocidade e mudanças de direção de Tobin Heath, os apoios de Alex Morgan ou as diagonais de Megan Rapinoe, acompanhadas por duas laterais competentes como Crystal Dunn e Kelly O’Hara. Apesar das suas centrais nunca terem estado em evidência em termos construção, a estabilidade e liderença de Abby Dahlkemper e Becky Sauerbrunn.

Pressing posicional médio-alto 1-4-3-1-2 – EUA vs França

Porém, os EUA tinham mais respostas àquilo que o jogo pedia. Ora se adaptando a uma França ou Inglaterra, procurando explorar contra-ataques nos pés do trio da frente (que em poucos toques finaliza jogadas), ora mudando o sistema para impedir a progressão adversária. As estratégias para cada jogo fizeram com que estivessem sempre um passo à frente das restantes, inclusive nos planos B e C no decorrer do jogo.

As vantagens começavam na postura corajosa e ameçadora com que realizavam o seu pressing alto. Nenhuma seleção teve intenções claras de pressionar agressivamente os primeiros passes na construção do adversário. Nenhuma, exceto os Estados Unidos da América. E foi neste momento que se descobriram os problemas de muitas seleções em ataque posicional. As limitações técnicas das defesas quando se depararam com menos tempo para decidir, levou a que se sentissem arrojadas e falhassem as ligações, optando por bater na frente sem nexo.

A França tem nas suas defesas centrais, duas jogadoras com grande capacidade de inverter o lado, procurando esticar em quem dá largura. Por isso, Jill Ellis orientou Heath-Rapinoe a pressionarem as centrais, sem a preocupação de marcar as laterais (Majri-Torrent), visto que não existia ‘’ligação via terrestre’’ dado à subida das mesmas, enquanto Morgan anulava linha de passe à principal organizadora, Amandine Henry. Como Élise Bussaglia é, essencialmente, uma jogadora de equilíbrios, tinham menor preocupação com a meio-campista francesa. Ellis ordenou que as pontas pressionassem à frente, libertando espaço nas suas costas. Tomada esta decisão, as vigilâncias cabiam ao trio do meio-campo, que jogavam juntas e balançavam a linha conforme a direção do ataque francês, cobrindo a não marcação propositada de Rapinoe-Heath.

Impedindo que as duas centrais pensassem durante muito tempo e estancando os movimentos de Henry, todo o progresso em organização ofensiva francês foi por água abaixo. Além disso, o jogo reativo dava campo aberto para as investidas de Rapinoe, Morgan e Heath.

Ação com bola de Stephanie Houghton – Inglaterra vs Argentina

No jogo seguinte, nas semi-finais contra Inglaterra, mais do mesmo. Phill Neville mudou o sistema para 1-4-2-3-1 com Jill Scott Keira Walsh como volantes e Nikita Parris entrelinhas, de maneira a ter duas linhas de passe interiores e não deixar que a equipe se tornasse previsível por uma questão de encaixe. Todavia, Jill Ellis aborda a 1ª fase de construção inglesa em 1-4-1-4-1, fazendo com que Lavelle-Horan encaixassem em Scott-Walsh e Ertz nas sobras.

Desta vez, as duas extremas marcavam as laterais, contendo especialmente os avanços de Lucy Bronze. A disponibilidade física e inteligência de Morgan para pressionar as centrais também entraram em evidência. Ao contrário do que vimos na imagem acima, Stephanie Houghton, a capitã britânica, que tem um poder de distribuição invejável encontrando companheiras entrelinhas, sentiu o vendaval inglês e fez a exibição mais insegura do torneio.

Os EUA subjugaram Inlgaterra. Ao conter o jogo apoiado inglês na 1ª fase de construção, as americanas sabiam que o Enlgish Team dificilmente teria continuidade em ataque posicional, desconectando todos os setores. A 20 minutos do fim, Nikita Parris passou a jogar como ponta direita (posição habitual) e a resposta imediata de Ellis foi recuar Ertz, formando uma linha de 5 e ter um maior controle da amplitude. Numa semi-final de Copa, a Inglaterra nunca esteve por cima de forma constante, o que é significativo. O mesmo cenário tinha sido verificado nas quartas contra as donas da casa.

A deficiência de estímulos das concorrentes americanas no capítulo ‘’saber (re)agir em espaços reduzidos’’, fez com que tirassem proveito dessas situações. No mais, a distribuição espacial dos EUA garantiram um controle integral das ações adversárias, que nenhuma equipe foi capaz de se aproximar. Não eram robôs, mas pareciam.

Envolvente e Atrativo

Ataque posicional 4-3-3 – Inglaterra vs Escócia

Inglaterra foi das seleções mais interessantes de se observar no Mundial. O treinador e ex-jogador, Phill Neville, dispunha de um elenco vasto, em termos de qualidade potencial, e não teve problemas em trocar peças de jogo para jogo. Mantendo a matriz do 1-4-3-3, um dos mecanismos a construir passava por fazer recuar a interior do lado onde vão desenvolver a jogada e mandar a interior contrária ocupar as entrelinhas.

O lado direito, o mais criativo, tinha a saída qualificada de Houghton, dando início às incursões de Bronze, Parris e Scott nas melhores associações, procurando verticalizar mais os ataques vindos do lado esquerdo com Mead em diagonal. Sobrecarregar uma zona e procurar inverter no lado débil, esta era a tónica, de maneira a servirem uma das atacantes mais mortíferas e silenciosas, Ellen White. A camisa 18 é pouco participativa em apoios, mas tem um cariz terminal invejável.

Finalização 3v4 – França vs Noruega

Nunca foi tão bom ser francês e gostar de futebol. Tendo uma base solidificada do Olympique de Lyon, tetracampeão da Liga dos Campeões da UEFA, a França de Corinne Diacre assumiu-se como uma das grandes candidatas ao título mundial. Da estatura das defesas centrais começou a sua caminhada fazendo estragos nas bolas paradas. A qualidade no jogo aéreo de Wendie Renard e Mbock Bathy deram a conhecer ao mundo o poder das torres francesas.

jogo exterior ficou em foco desde a 1ª rodada, quando a altura ofensiva de Marion Torrent deu sequência aos dribles eletrizantes de Delphine Cascarino e à mobilidade de Kadidiatou Diani. Um dos pontos notáveis das gaulesas foi a quantidade de jogadoras que apareciam em zonas de finalização, estando em condições favoráveis para terminarem cruzamentos e possíveis rebotes. O problema é quando o jogo pelos corredores se torna o único meio de ataque.

Ao longo da competição, a França não apresentou grandes variações, caindo no engodo da procura incessante pela profundidade, mesmo que não fosse a melhor opção. A entrada de Valérie Gauvin veio melhorar em termos de apoios, mas o baixo rendimento de jogadoras como Gaëtane Thiney e Eugénie Le Sommer, ou mesmo Amel Majri, do qual se esperava mais toques por dentro, não ofereceram soluções diferentes. Apesar disso, nota muito positiva para Amandine Henry, a capitã e faz-tudo de França encheu muitas vezes o campo e solucionou problemas da Le Bleu.

Passe longo acionando a profundidade – Suécia vs Alemanha

A Noruega e a Suécia representaram o futebol nórdico nesta Copa. Sem surpresas, sistema tático em 1-4-4-2 e uma organização defensiva sólida numa altura média. Ao contrário do que se possa pensar, a força física não foi o único argumento demonstrado por ambas as seleções. A qualidade de toque, principalmente das pontas, deram nuances às dinâmicas de Noruega e Suécia.

A Noruega procurou trabalhar o jogo entrelinhas de outra forma, Guro Reiten flutuava fora-dentro e combinava com os movimentos recuados de Caroline Hansen. Do outro lado, uma ponta aguda, Karina Sævik, agressiva no ataque à baliza. Tudo isto, claro, rondava atrás do 9 de referência que o futebol nórdico não dispensa, Isabell Herlovsen.

A Suécia comportava-se de outra maneira, mais autoritária, até por ser uma das seleções históricas do futebol feminino. Variando em alguns momentos para o 1-4-2-3-1, foi nas aproximações de Kosovare Asllani que as suecas elaboraram o seu jogo. A partir disso, agressividade das pontas atacando a baliza. Tanto Sofia Jakobsson, como Fridolina Rolfö, ou até mesmo Lina Hurtig, possuem uma grande qualidade técnica em condução. Novamente, tudo isto flutuando em torno de Stina Blackstenius, atacante muito poderosa fisicamente.

Dinâmica italiana em ataque posicional – Itália vs Jamaica

O mundo aprecia as camisas 10. O 10 é como uma figura charmosa e romântica da nossa vida, porque funciona como personagem principal de uma cena. Não falar de Cristiana Girelli (assim como Jenni Hermoso, por exemplo), seria uma calhordice. Numa das dinâmicas mais curiosas da Copa, a Itália jogou em 1-4-3-1-2, deixando claro a intenção de ter um 10 clássico.

Os bons primeiros passes de Sara Gama eram acompanhados pelas ações conjuntas de Manuela Giugliano e Valentina Cernoia. À frente delas girava Girelli, que via os avanços da meio-campista, Valentina Bergamaschi, completar os lances. A jogada era explícita: balançar a equipe para o lado esquerdo, Cernoia-Giugliano encontrarem Girelli entrelinhas e esta acionava em passe longo a profundidade de Bergamaschi, que servia as atacantes Valentina Giancinti e Barbara Bonansea.

peso associativo de Girelli dentro do modelo italiano é tão grande, que a ausência da 10 na equipe por lesão, causou sérios problemas contra a Holanda nas quartas de final, acabando mesmo por ser eliminada. O modelo está construído à sua volta, inclusive em fase defensiva, deixando-a livre. Com defendem em 4-3, em momentos pudemos ver alguma das atacantes fechando uma segunda linha, dependendo do lado dos ataques adversários.

Formação de triângulos em ataque posicional – Holanda vs Suécia

A desilusão é uma palavra que só poderá servir à 1ª pessoa. Afinal, quem nos mandou iludir com alguma coisa? Só que desilusão é um nome forte para uma seleção que venceu todos os jogos e sofreu somente 3 tentos até chegar à final. Ainda assim, seria mentira se não dissesse que esperava muito mais da atual campeã da Europa.

A Holanda figura um bom lote de jogadoras, ostentando algumas da elite em Lieke MartensShanice van de SandenVivianne Miedema ou Daniëlle van de Donk. Foi logo no primeiro jogo que se percebeu alguma inconsistência. O nervosismo das jogadoras do setor defensivo com bola surpreenderam por errarem, constantemente, passes simples e sem oposição adversária. O cenário seguiu nos restantes jogos, principalmente em Merel van DongenDominique Bloodworth e Desiree van Lunteren.

Ao observar a imagem acima, podemos ver a intenção das laranjas de Sarina Wiegmanformar triângulos por todo o campo em ataque posicional. Porém, tudo isto se torna ineficaz quando os três vértices pouco associam. No decorrer da Copa, a equipe foi subindo o seu nível e superando adversários, apesar de todos os problemas estruturais. A dependência dos raids individuais caíram bastante aos pés dos desequilíbrios de Martens, o poder completo de Miedema ou da explosão de van de Sanden.

As deficiências com bola de Sherida Spitse não forneciam uma boa distribuição. Jackie Groenen destaca-se pelo ataque à área e van de Donk tem índices de agressividade muito altos, efetuando perdas de risco. A camisa 10 protagonizou os seus melhores momentos na subida de pressão e lançando contra-ataques. Ou seja, a Holanda não tinha um relógio que gerisse os tempos de como jogar.

Não foi um torneio regular para as holandesas, prejudicadas pela falta de um coletivo que lhes fornecesse condições para atingirem o destaque esperado. Mesmo tendo sofrido pouco, não se pode falar em consistência defensiva, porque a Holanda, além de concessões individuais, por vezes expunha em demasia a sua frágil defesa. Como van de Donk e Greonen têm tendência a defender à frente, acabavam por ‘’abandonar’’ Spitse, que ficava em cobertura. A transição defensiva era dualista, com jogadoras a assumirem tarefas opostas. No pós-perda, as jogadoras mais avançadas tinham tendência a pressionar à frente, mas as de trás, dadas as limitações, acabavam por recuar com receio de não conseguir acompanhar o adversário na defesa da sua baliza, gerando imenso espaço para contra-ataques.

Sarina Wiegman falou à imprensa sobre as expetativas criadas pelo título de 2017, onde reconhece que não foi a melhor Holanda durante a fase de grupos. A Laranja Mecânica chegou à final apresentando pouca consistência naquilo que se propõe a fazer e isso deve ser levado em conta. No entanto, a vitória não é totalizada pelo fator sorte, pelo que houve competência na hora decisiva e uma grande Sari van Veenendaal.

No contexto da final, Wiegman abriu mão dos conceitos históricos holandeses. Surpreendeu os EUA com duas linhas de quatro, optando por suster mais as linhas ou orientando melhor as compensações aquando havia uma perseguição mais longa. Colocou van de Donk a fechar a ala direita, Martens com mais tarefas defensivas e Miedema atrás de Beerensteyn na tentativa de sair em contra-ataque. Porém, o posicionamento tão baixo nunca deu condições para que as laranjas puxassem saídas rápidas. Acabou por sofrer o 1×0 numa má abordagem de uma das suas defesas, o que acapou por desabar toda a estratégia, vindo ao de cima os problemas vistos durante a Copa.


Gigantes Não Necessitam de Outras Medidas

As críticas ao tamanho das jogadoras foi dos argumentos mais utilizados para justificar uma falsa narrativa sobre as guardiãs não terem o tamanho suficiente para proteger os ferros. Além de ser uma solução inviável e quase utópica pensar em diminuir balizas no estádios – até por questões financeiras – as guarda-redes deste Mundial puderam provar que estavam errados quanto a isso.

Não seria exagero afirmar que este foi o Mundial das Goleiras, onde em diversos jogos, as arqueiras foram consideradas as melhores em campo. Sydney Schneider, no jogo contra o Brasil, protagonizou momentos fantásticos defendendo uma penalidade, saindo por cima em duelos 1v1 por duas vezes, além do posicionamento e firmeza fora dos postes. 19 anos.

Defesa de Christiane Endler – Chile vs EUA

Não ficamos por aqui. Peng Shimeng, onde reza a lenda, que as espanholas ainda procuram furar a verdadeira Muralha da China, naquele jogou segurou o empate e apurou as chinesas para a próxima fase. Sandra Paños, finalista da Liga dos Campeões pelo Barcelona e a sua liderança no jogo de posse espanhol. Christiane Endler, que provavelmente fez a melhor defesa do torneio. Vanina Correa, prestes a fazer 36 anos, foi uma dor de cabeça contra a Inglaterra; entre outras como Almuth SchultAlyssa NaeherHedvig Lindahl ou Sari van Veenendaal.

Portanto, o problema não está nas medidas dos acessórios, mas sim, mais uma vez, na pouca preparação e investimento que muitas seleções têm em relação ao futebol feminino.

A infelicidade do término de uma Copa do Mundo impacta profundamente quem viveu de forma intensa este mês de futebol. Saio do torneio muito mais enriquecido do que entrei e isso é, obviamente, fantástico. O bichinho curioso que desperta em nós faz com que acompanhemos as carreiras de algumas das figuras do Mundial e por cá não será exceção.

Aprendi que o futebol feminino não deve ter o masculino como meta. Não sei se jogam futebol noutros planetas, mas tenho a certeza que, se isso acontecer, esses mesmos planetas terão as suas próprias versões do futebol. Dessa forma, o futebol feminino não poderá querer alcançar o masculino, pois não se trata de uma competição de duas categorias, mas sim de histórias diferentes. Mais uma vez, não quer dizer que não se possam tocar em momentos, mas a forma como sentem o jogo será sempre diferente. Pelo menos, é assim que eu acredito.

Estados Unidos da América sagram-se tetracampeãs da Copa.
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