O DEBATE (VAZIO) SOBRE POSSE DE BOLA

Por Téo Benjamin O Grêmio abriu 3×0 contra o Fluminense na sua Arena em 35 minutos e muita gente se apressou em criticar a “doutrina da posse de bola”. O argumento é sempre o mesmo: posse de bola não ganha jogo e quem a valoriza demais não entende nada de futebol. Há quem diga que […]

Por Téo Benjamin

O Grêmio abriu 3×0 contra o Fluminense na sua Arena em 35 minutos e muita gente se apressou em criticar a “doutrina da posse de bola”. O argumento é sempre o mesmo: posse de bola não ganha jogo e quem a valoriza demais não entende nada de futebol. Há quem diga que prefere “posse de taças à posse de bola”, como se fossem coisas excludentes.

Fernando Diniz, treinador do Flu, força seus times a saírem jogando com a bola no chão até mesmo em condições extremas, gerando riscos para a própria equipe. Por isso, acabou personificando a ideia da posse no Brasil. É como se ele representasse a filosofia por aqui. Mais do que isso, é como se ele fosse a própria filosofia. Atacar Diniz é atacar uma ideia.

Há, claro, aqueles que valorizam demais esse aspecto do jogo e consideram que ter a bola é a única forma correta de jogar futebol. Estão errados. Mas o contrário disso, torcer contra equipes e treinadores que gostam da bola, é tão vazio quanto.

Vale lembrar, inclusive, que o Grêmio de Renato Gaúcho – que acabou perdendo o jogo por 5×4 para desgosto de quem comemorou cedo demais – foi o time com maior média de posse de bola no último Campeonato Brasileiro. Aliás, construiu o resultado com três gols de movimentação, ultrapassagem e bola no chão. Usar esse time para atacar Diniz parece ser um contrassenso.

O debate sobre a posse dominou o mundo nos últimos dez anos, mas o mundo inteiro já superou essa questão que parece efervescer as mesas redondas por aqui. Um spoiler: jogar bem aumenta as chances de vencer – e existem diversas formas de jogar bem.

O Guardiolismo

Pep Guardiola é certamente o símbolo maior da transformação que o jogo sofreu na última década.

Como jogador, decidiu deixar o Barcelona com apenas 30 anos de idade para encerrar a carreira sem brilho algum, passando por Brescia, Roma, Al Ahli (Doha) e Dorados (México). Depois de dez anos no time profissional do Barça, o capitão deu adeus dizendo que “o futebol está se modificando, aumentando muito a carga física do jogo”. Guardiola sempre foi extremamente talentoso, mas havia se tornado obsoleto no futebol dos anos 90.

Guardiola conquistou 25 títulos em sua carreira, todos com equipes que gostavam de ter o domínio da posse de bola
Guardiola conquistou 25 títulos em sua carreira, todos com equipes que gostavam de ter o domínio da posse de bola

O próprio Pep preparou a sua vingança. Ao assumir a equipe principal do Barcelona em 2009, iniciou uma revolução a partir da posse de bola e ganhou tudo. Tudo mesmo. Aquele time assombrou o mundo e foi a base da Seleção Espanhola campeã da Copa do Mundo em 2010.

Quando contratou Xabi Alonso para o Bayern de Munique, Guardiola o definiu como “o pior jogador do mundo na defesa”, mas extraordinário no trabalho da bola. Um elogio estranho para um volante. O fato é que o mundo agora via a importância de se controlar a bola e esse tipo de jogador, praticamente descartado há vinte anos, se tornou peça-chave nos melhores times do mundo.

Xavi e Pirlo se tornaram lendas do futebol mundial mais para o fim da carreira. Não apenas porque evoluíram como jogadores, mas porque o jogo em si mudou. Até mesmo Paul Scholes, um pouco mais velho que os dois, se notabilizou sendo o homem da saída (e da manutenção da posse) no Manchester United, mas iniciou sua carreira em 1993 como meia-atacante, substituindo Eric Cantona, pois esse era o espaço natural a ser ocupado por um meia talentoso com a bola nos anos 90.

Andrés Iniesta, Toni Kross, Bastian Schweinsteiger, Michael Carrick, Luka Modric, Ivan Rakitic, Thiago Ancântara, Cesc Fabregas e Miralem Pjanic talvez não fossem considerados estrelas mundiais em um futebol de muito vigor físico, bolas longas e disputas aéreas.

Mais do que um treinador de futebol, Guardiola se tornou inspiração para uma legião de apaixonados por futebol que passaram a usar suas filosofias (muitas vezes de maneira mal interpretada) quase como uma tábua de salvação, a única forma “pura” do futebol. Nascia o Guardiolismo.

Mourinho, o anti-herói

O auge do debate (vazio) sobre a posse aconteceu em 2010, quando a Inter de Milão comandada por José Mourinho eliminou o Barça de Pep Guardiola, Xavi e Messi.

Muitos entenderam então que a solução para enfrentar times que valorizavam a posse era defender em bloco baixo com um time muito compacto e contra-atacar com bolas longas. Nesses times, os pontas velocistas eram as peças-chave: precisavam defender perto da própria área e saber marcar gols lá na frente.

Mourinho ficou marcado por esse tipo de estratégia. O tal “park the bus”, literalmente “estacionar um ônibus na frente do gol”, ficou associado para sempre ao português. Não deixa de ser irônico que ele tenha cunhado a expressão em uma entrevista coletiva justamente reclamando da postura do adversário, o Tottenham de Jacques Santini, que se limitou a defender contra o Chelsea e levou Mourinho à loucura.

A era da posse de bola extrema trouxe junto consigo a não-posse extrema. Times passaram a ativamente se livrar da bola e tentar atrair os adversários para suas armadilhas defensivas. É mais fácil defender do que atacar no futebol e enquanto uns se especializaram em gostar da bola (às vezes de maneira exagerada), outros passaram a jogar sempre sem ela.

O valor da posse

Há dez anos, ninguém saberia dizer quantos passes um time trocou durante um jogo. As transmissões da Globo até mostravam o número de passes errados, mas passes certos? Nem pensar.

Agora, todos sabem e querem saber. Esse tipo de estatística é usada até como objetivo por alguns treinadores, analistas e jornalistas. O Vice-Presidente de Futebol do Inter, Roberto Melo, lamentou a derrota para o Palmeiras por 1×0 argumentando que sua equipe teve mais de 60% de posse de bola e trocou quase 400 passes, enquanto o adversário não trocou nem 150.

De fato, a era da valorização da posse mudou as coisas. Na Premier League, por exemplo, o percentual de acertos de passes aumentou de 70% para 81% em apenas dez anos! Cresceu seis pontos percentuais entre 2009 e 2012, nos três anos  seguintes à primeira temporada de Guardiola no Barça. Coincidência?

Mas, como colocou Carlo Ancellotti: “Albert Einstein já dizia que nem tudo que pode ser contado conta, e nem tudo que conta pode ser contado. A posse de bola sozinha não vence o jogo.”

Só o número percentual de posse de bola não absolutamente vale nada.

Para começar, ele é percentual. Então quando dois times reativos, que não gostam da bola, se enfrentam, um deles pode acabar tendo muito mais posse – exatamente como aconteceu no jogo entre Palmeiras e Inter. Por outro lado, quando jogam dois times que querem o controle da bola, a posse pode ficar empatada. O Grêmio teve 51% de posse contra o Fluminense, mas isso não significa que o time é mais reativo que o Inter com seus 60%.

Além disso, é importante entender o que se faz com a bola. O Swansea chegou à Premier League em 2011/12 e alcançou um impressionante 11º lugar. Foi o time que menos cometeu faltas e menos venceu duelos aéreos, mas teve a terceira maior média de posse de bola. O objetivo, no entanto, era defender. Se o adversário não tem a bola, não pode marcar gols, e a equipe de Brendan Rodgers entendia isso melhor que ninguém. O Swansea levou 51 gols, apenas dois a mais que o Arsenal (3º colocado) e cinco a mais que o Chelsea (6º colocado).

A maioria das equipes, é claro, usa a posse de bola para controlar o jogo e atacar. Trocar passes ajuda a quebrar as linhas defensivas do adversário, mas só se esses passes forem envolventes e ofensivos. Martí Perarnau relata em seu livro Guardiola Confidencial a obsessão do treinador catalão para retirar do Bayern de Munique o “movimento de U” – a bola que sai de um lateral, volta para o zagueiro, passa ao outro zagueiro e só então ao lateral do outro lado -, pois é uma posse de bola (cheia de passes) absolutamente inútil. Um jogo estéril. Exatamente o movimento relatado pelo lateral Rafinha, do Bayern, em recente entrevista citando os clubes brasileiros.

A Espanha foi eliminada da Copa do Mundo em 2018 tendo trocado mais de 1.100 passes (isso mesmo, mil e cem!) em 120 minutos de futebol contra a Rússia, que não acertou nem 200. A avalanche de posse de bola, no entanto, não representou um controle real da partida.

Imposição e controle

Há um detalhe importante naquele Inter de Milão 3×1 Barcelona que marcou o confronto entre Mourinho e Guardiola: o time da Inter era muito pior e sabia disso. O próprio Mourinho admite que o ponto de partida de sua estratégia era parar Messi. A partir daí, poderia jogar.

Se tivesse Messi em seu time, possivelmente a estratégia seria diferente.

É raro o melhor time não gostar da bola, não querer a bola. Esse é, inclusive, um problema enfrentado pelos times de ligas mais fracas quando chegam na Champions League. O melhor time da Suíça, por exemplo, joga o ano todo contra adversários recuados e reativos, que lhe entregam a bola. Treina o ano todo para usar a posse a seu favor e furar retrancas. Quando chega ao cenário europeu, se vê na situação oposta: agora precisa fechar os espaços contra adversários muito superiores. É natural que passem dificuldades.

José Mourinho ficou marcado pelo "park the bus", mas suas equipes sempre souberam o que fazer quando recuperava a bola.
José Mourinho ficou marcado pelo “park the bus”, mas suas equipes sempre souberam o que fazer quando recuperava a bola.

O que causa estranheza no Brasil – e é natural que cause, ainda mais no Brasil – é que um clube como o Palmeiras, o mais rico do país, atual campeão e detentor do elenco mais qualificado, jogue de maneira tão reativa. Não porque está errado ou porque é pior, mas porque em geral – e ainda mais no nosso tempo – é mais comum ver o melhor time tentando controlar o jogo através do controle da bola.

Afinal, mais do que manutenção da posse de bola, o debate é sobre controle das ações. Ter a bola permite controlar o ritmo, controlar o tempo, ter a capacidade de deixar o jogo mais lento ou mais rápido, mais curto ou mais longo dependendo da sua necessidade, não da necessidade do adversário. Futebol é um jogo de imposição estratégica.

Controlar o jogo não significa apenas amassar os adversários. Ainda hoje poucos times no Brasil fazem pressão alta de maneira eficiente, uma alternativa mais rica do que estacionar o ônibus. Pouquíssimos sabem usar a posse de maneira defensiva. O Palmeiras de Scolari é extremamente proativo na defesa e consegue, em geral, induzir os adversários a atacarem de uma forma que o favorece. Fernando Diniz, com seu elenco questionável, usa a posse para atrair o adversário e criar espaços na frente para seus atacantes velozes, não para pressionar o outro time o tempo inteiro.

Isso tudo só deixa o jogo mais rico e interessante, mais corajoso e bonito. A bola é meio e não fim. O debate não é sobre quem tem a bola por mais tempo, mas sobre saber usar esse objeto mágico, encantador de multidões, a seu favor, da maneira que você desejar.

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