O futebol chileno e a voz da sociedade

Jogadores, treinadores e clubes se unem em momento conturbado da história do Chile, e demonstram como futebol e política andam de mãos dadas

A América do Sul segue com suas veias abertas. Em 2019, o caos político e social tomou conta do continente, levando vários países a testemunharem cenas de protestos e violenta repressão diante das reivindicações da população. Toda essa convulsão refletiu também no futebol do continente ao longo deste ano.

Praticamente metade dos países sul-americanos tiveram seus campeonatos paralisados em algum momento da temporada, devido ao ambiente de insegurança gerado pelos confrontos entre população e governo, ou pela falta de infraestrutura funcional por greves. Equador, Bolívia e Venezuela foram algumas das nações que registraram interrupções em seus calendários devido a manifestações. Entretanto, nenhuma delas demonstrou tanto a mistura entre futebol e política como o Chile.

Às margens do pacífico, o povo outrora abençoado pelos zurdazos de Marcelo Salas e pelos cabeceios letais de Iván Zamorano voltou a enxergar a temível sombra da opressão militarizada. Desde meados de outubro, os chilenos se mobilizam em uma onda de protestos que começou pelo aumento das passagens do metrô e acabou englobando itens mais profundos para reduzir a desigualdade, que cresce no país comandado por Sebastián Piñera.

Com o exército nas ruas, toque de recolher decretado e mortes registradas, as recordações da sanguinária ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) vieram à tona. Época, esta, que está registrada no coração do Estádio Nacional, em Santiago. Um setor de arquibancadas virou memorial para relembrar os horrores entranhados no cimento frio do local, utilizado como centro de detenção e tortura em 1973. A icônica frase “Un pueblo sin memória es un pueblo sin futuro” é marco na cancha, podendo ser vista sempre acima do Portão 8.

Explorando a suspensão do Campeonato Chileno, instituições e jogadores aproveitaram para justamente valorizar a memória, discutir o futuro e promover um exercício de cidadania a fim de evitar que essa história seja reescrita.

Um dos exemplos mais marcantes foi dado pelo Colo-Colo. O clube realizou audiência públicas – popularmente chamadas de cabildos – para debater a situação política, social e econômica do Chile, utilizando seu estádio como sede e contando com seus atletas não apenas na divulgação, mas também nas atividades promovidas.

Cerca de 1500 sócios colocolinos participaram das conferências, que ao final gerou uma lista de requisições endossada pelo presidente dos albos, Edmundo Valladares. Entre as exigências feitas, estiveram a criação de uma nova constituição, a mudança do sistema econômico vigente, o reconhecimento e a proteção aos povos indígenas, a condenação à violações dos Direitos Humanos e, no âmbito esportivo, a revogação do modelo de sociedades anônimas na administração do próprio Colo-Colo e de outros clubes chilenos.

Esteban Paredes, capitão e goleador da equipe, se mostra um dos jogadores mais enfáticos em suas falas tanto na imprensa quanto nas redes sociais. Consciente de seu alcance, mobilizou o elenco e decidiu tomar frente ao liderar um posicionamento favorável à população do país:

“Somos seguidos por muitas pessoas e também poderíamos ter um porta-voz. Dar luz às nossas inquietações e também chegar a alguns pontos. Se nos juntarmos em massa, o futebolista pode ter uma boa voz e pode ser um apoio para a nossa gente” – Esteban Paredes, capitão do Colo-Colo

Os protestos ainda geraram imagens marcantes de união entre torcidas rivais, buscando fortalecer a participação popular e fomentar o futebol como meio de expressão política. Adversárias ferrenhas, as barras Los de Abajo, da Universidad do Chile, e La Garra Blanca, do Colo-Colo, se juntam há algumas semanas em Santiago para fazer parte das manifestações. O monumento ao General Baquedano, na Plaza Itália, se tornou o epicentro da articulação das organizadas dentro deste cenário.

Os reflexos das mobilizações populares no Chile não se limitaram apenas às partidas domésticas. A primeira final em jogo único da Libertadores, prevista para ocorrer no Estádio Nacional de Santiago, precisou ser transferida pela Conmebol, que levou a decisão entre River Plate e Flamengo para Lima, no Peru. Como justificativa, a entidade máxima do futebol sul-americano disse que a alteração se motivou pelas circunstâncias insegurança para jogadores, público e delegações oficiais.

Inclusive, uma megamanifestação havia sido programada para o dia da grande final em Santiago, aproveitando os holofotes da cobertura mundial para dar maior visibilidade à insatisfação e aos abusos sofridos pela população. Marcelo Gallardo, técnico do River Plate, já havia colocado a possibilidade de seu tricampeonato como treinador em segundo plano diante do que acontece em território chileno:

“O mais importante é que os chilenos possam se organizar e ter paz, muito acima da nossa partida” – Marcelo Gallardo, técnico do River Plate

A Seleção Chilena não passou incólume por esse ambiente. Liderado por Charles Aránguiz, os jogadores convocados por Reinaldo Rueda entraram em acordo e decidiram não levar adiante o amistoso programado contra o Peru, na próxima terça-feira (19).

Tal atitude eclode após vários atletas da roja expressarem seu descontentamento com as ações do governo chileno desde o começo dos protestos. Gary Medel, Arturo Vidal e Claudio Bravo foram alguns que deram declarações neste sentido.

“Existe um ambiente difícil. Na minha opinião não deveria se jogar (o amistoso contra o Peru), respeitando o que acontece no Chile” – Charles Aránguiz, meia da Seleção Chilena e do Bayer Leverkusen

Jean Beausejour, um dos atletas mais engajados em pautas sociais, também fez coro. Já aposentado da seleção, não deixou de manifestar sua opinião, como sempre fez ao longo da carreira, dizendo, entre outras coisas, que o Exército lhe desperta temor. Recentemente, o lateral-esquerdo utilizou na camisa seu sobrenome de origem indígena, Coliqueo, em amistoso contra Honduras. O ato se deu como protesto pelo assassinato de Camilo Catrillanca, líder do povo mapuche – uma das descendências de Beausejour – por policiais durante uma operação.

Por mais que a negação sempre apareça, o fato de que futebol e política convergem é incontornável. Não apenas a história, mas a atualidade nos mostra que o esporte é um espaço para potencializar o debate social e dar voz a quem costuma não ser ouvido no cotidiano. O Chile oferece uma preciosa lição de como fazer valer esse espaço e utilizar o futebol para promover mais do que emoções a cada bola na rede de Alexis Sánchez, estimulando provocações capazes de despertar o anseio por cidades, estados e países mais justos.

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