O jovem em vulnerabilidade e o futebol como luta por reconhecimento

"Está na hora de desconstruirmos certos valores e buscar minimizar a máquina de gastar e excluir gente que se tornou o futebol". afirma Daniele Seda, doutora em Psicologia Social pela UERJ

“O futebol ensinado sob pressão de resultados, enquanto imerso no imaginário do esporte de rendimento, só pode fomentar vivências de sucesso para uma irrisória minoria e de insucesso para a grande maioria (tanto a que participa quanto a que não consegue se incluir nas equipes). As vivências de insucesso para crianças são no mínimo uma irresponsabilidade pedagógica por parte de profissionais formados para serem educadores e contratados para trabalhar o esporte como ferramenta para mudança social.

O trecho acima faz parte de uma entrevista realizada com Daniele Seda, mestre e doutora em Psicologia Social pela UERJ. Abaixo, um mergulho em sua tese de mestrado, que se debruçou na questão da invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade, utilizando o esporte como luta por reconhecimento. O futebol é, então, o que for feito dele. Pode servir para potencializar virtudes ou discriminações, para criar abismos e muros ou construir pontes e escadas. O material é o mesmo. No universo do futebol, a bola que gira e encanta pode unir ou criar círculos cada vez mais fechados”.


Qual foi o seu principal propósito ao escolher essa linha de pesquisa?

Inicialmente, busquei entender o imaginário social que sustenta o jogador de futebol profissional, como categoria socialmente construída e sustentada pelo imaginário heroico como primeiro movimento para abordar os sentidos – que servem como modelo para a modalidade e que acabam por interferir nas formas de fazer e pensar a iniciação esportiva e os trabalhos socioesportivos.

Quais as conclusões do estudo?

Em suma, a pesquisa aponta o futebol como instrumento para análise da dinâmica social, conectando-se ao contexto esportivo, por meio de uma construção teórica crítica visando uma possível contribuição de efeito prático-social para os profissionais que trabalham com iniciação esportiva. Principalmente em políticas públicas, ao problematizar a abordagem aparente majoritária da práxis do futebol profissional de rendimento, cada vez mais precocemente.


POR DENTRO DA PESQUISA

O quão prejudicial é a pressão por resultados esportivos em adolescentes em situação de vulnerabilidade, ainda que dotados de notável talento? 

O futebol, como espelho da dinâmica social, reflete a lógica da sociedade contemporânea, onde a vitória é válida a qualquer custo e somente ela leva ao reconhecimento social, à ascensão social e ao sonho da permanência, prevalecendo sempre e somente o mais forte, habilidoso e vitorioso para a imortalidade.

A aventura de ser criança e participar de um campeonato de futebol é conviver com cobranças cada vez mais cedo e de se incumbirem de encarnar essas demandas performáticas, ao mesmo tempo que diminui progressivamente o tempo para aprendizagem e desenvolvimento de habilidades motoras e a aplicação prática das mesmas para fins de rendimento esportivo. Tão logo aprendam a chutar com a parte interna do pé, tão logo terão esse aprendizado testado em fazer gols em equipes adversárias em campeonatos, atrapalhando a assimilação e acomodação dos aprendizados e principalmente a criatividade, pois esta só surge com liberdade para experimentar.

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O alto preço a ser pago são sentimentos de culpa e vergonha, uma vez já incorporados valores do futebol competitivo. Incorporação que ocorre coletivamente, em equipe, mas se manifesta de forma individual dissociada e deslocada dos sentidos que a incorporaram, restando assim a busca de uma satisfação egoísta ou a evitação da vergonha de um fracasso pessoal (erros individuais, mas derrotas da equipe também). Afinal, no futebol, tão precocemente enaltecem jogadores mirins como “promessas”, “com estrela” e “super craques”, também tão cedo colocam etiquetas como “frangueiro”, “perna de pau” e “sem talento”. Os meninos sabem disso e “desde cedo submetidos às demandas de velocidade, rapidez e eficiência que caracterizam seu cotidiano, têm que aprender sem se permitir errar…”.

A concepção de sucesso atrelada somente a vitórias e profissionalização se configura nesse recorte, o que parece ser uma tendência ao trabalhar com futebol (e em outros setores de nossa sociedade), um desprezo pelo social, desprezo pelos aspectos transformadores (sociais) do esporte em prol de uma roupagem imediatista e espetaculosa de rendimento esportivo.

Assim a pressão por resultados impossibilita projetos exequíveis e que possam contribuir para mudanças sociais e promover bem-estar, colaborando para a saúde mental dos indivíduos. Inspirar, brincar, humanizar, contribuir para experiências positivas que possam ser transferidas para outros âmbitos da vida. Contribuindo para a cidadania e inclusão. Além de não contribuir para um país melhor, também não contribui para um futebol mais bonito e efetivo, pois tolhe a criatividade e não respeita as fases de desenvolvimento infantil.

Quando o futebol competitivo entra em ação – no sentido predatório, da vitória a qualquer preço – outras práticas perdem a dimensão e em um projeto social encerram por produzir exclusão dos que seriam seu público-alvo. Seguir uma lógica voltada ao rendimento esportivo impede que os (então) menos talentosos (porque aprenderam a jogar futebol na rua e não futebol formal das escolinhas, podem comprar chuteiras, ir treinar de carro em vários lugares e participar de várias competições) usufruam do esporte, de forma pedagógica, como acúmulo de capital cultural e como uma forma de promoção de mobilidade social indireta. Parece ser promovida uma inversão, gerando consequências como exclusão dos que antes faziam parte das equipes e vêm perdendo espaço.

Ouso insistir em realizar algumas recomendações para treinadores: que extrapolem as práticas mimetizadas de miniaturização da práxis adulta: sejam criativos, apoderem-se da cultura local, utilizem-na, ressignifiquem, potencializem. Cultivem vínculos significativos com as crianças, conectem-se, sejam comprometidos e tomem responsabilidade por contribuir na formação moral, abram espaço para diálogo sobre treino, futebol, esporte, sobre a vida. Arrastem pelo exemplo de bons comportamentos, mostrem-se interessados em conhecer as crianças com quem trabalham e a instituição, e ligar as duas histórias de forma positiva; transmitam valores e competências de vida, planejem treinos que tenham como objetivo desenvolvimento individual e coletivo, e não resultados. Sempre incluam jogos, proporcionando condições de serem criativas no jogo. 

O desafio de todo profissional que trabalha com esporte que mais mobiliza material simbólico no imaginário do brasileiro é de utilizar seu apelo e atratividade para conectar o contexto esportivo ao social para não reproduzir desigualdades, mas sim contribuir para equalizar condições dos sujeitos de direito, e sempre ser vigilante para não se deixar levar pela práxis comum, ter uma prática cuidadosa que vá além de uma lógica do rendimento esportivo do ensino técnico e dissociado de habilidades motoras. 

“Está na hora de desconstruirmos certos valores e buscar minimizar a máquina de gastar e excluir gente que se tornou o futebol”

Daniele Seda

Você enxerga uma evolução dos clubes no monitoramento psicológico e extracampo de jovens atletas? Qual seria o cenário ideal?

Muito suave, longe da demanda e do ideal. O melhor cenário seria que em cada local que o futebol fosse ensinado existisse um psicólogo do esporte e uma equipe multidisciplinar comprometida para além do esporte, com a cultura local, com a saúde mental e bem estar social de todos envolvidos. Assim, em projetos sociais, trabalhar com esporte-educação e desenvolvendo habilidades de vida, na iniciação esportiva, respeitando as individualidades, a maturação, proporcionando experiências variadas, lúdicas e que a competição seja sadia e composta por valores éticos. E, no profissional, salvaguardando a saúde mental dos jogadores, pautando a responsabilidade que representam para muitos, possibilitando um desempenho esportivo pleno.


QUER SE APROFUNDAR NO TEMA?

– SEDA, D. M. Futebol: da invisibilidade ao reconhecimento social 

– WISNIK, J. M. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 

– RUBIO, K. O Atleta e o mito do Herói: o imaginário esportivo contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 225p.– POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro. Grafhia Editorial, 1999.


Título da tese: Por que você não olha pra mim?: Invisibilidade social de jovens em situação de vulnerabilidade: o futebol como luta por reconhecimento
Autora: Daniele Mariano Seda
Instituição de Ensino: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Daniele Mariano Seda possui graduação em Psicologia e Educação Física pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre e Doutora em Psicologia Social pela UERJ. Primeiro-Tenente (T) da Marinha do Brasil atuando no CEFAN com diversas equipes de alto rendimento. Membro da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP). Autora do livro “Futebol: da invisibilidade ao reconhecimento social, pela Ed. Appris. 
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