Playbook de Roger Machado: obsessão por formas geométricas, responsabilidade coletiva, bobinho e rachão

Nesta primeira parte da entrevista exclusiva concedida ao Footure, Roger Machado conversou sobre a construção da metodologia de treino, os conceitos do jogo apoiado, o funcionamento da periodização de treino e quais são os indicadores de desempenho mais utilizados.

Completando 10 anos de carreira à beira do gramado, Roger Machado iniciou o processo de construção do treinador que é hoje muito antes de comandar o Juventude — seu primeiro clube. Mais precisamente, isso iniciou na década de 1990, quando realizou alguns testes como ponta e não deu certo, pois não obtinha os traços de personalidade necessários à posição.

“Os primeiros testes que realizei com o objetivo de me tornar jogador foram como ponta-esquerda. Mas foi como lateral esquerdo que as coisas aconteceram. E, por consequência disso, a posição me escolheu. Pelo traço da minha personalidade, e por ser um cara extremamente responsável com o contexto coletivo”, afirmou Roger Machado.

Roger Machado nos tempos de Grêmio
Roger Machado atuando como lateral esquerdo no Grêmio (Imagem: Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense)

Lançado ao profissional do Grêmio por Felipão, e jogando em um contexto do futebol brasileiro no qual os pontas direitos sumiram antes dos pontas esquerdos, Roger teve de moldar as suas características ao estilo de jogo da época.

Uma vez que os pontas esquerdos viraram meias e as equipes passaram a jogar com um quadrado no meio, naturalmente, os técnicos procuravam ter um lateral mais defensivo, enquanto o outro tinha vocações mais ofensivas. No Grêmio, Roger exercia a função mais defensiva, enquanto Arce apoiava mais o ataque.

Como consequência, Roger passou a desenvolver a capacidade cognitiva, reconhecer a si mesmo, seus pontos fortes e fracos, o apego ao detalhe e o entendimento da importância do indivíduo dentro do coletivo. Esses elementos nortearam o processo gradual da construção da personalidade, que exerce influência direta na forma com que o treinador enxerga a vida e o jogo de futebol.

“A nossa personalidade está inserida nas ideias com as quais enxergamos o jogo de futebol. Sou um cara que tem uma obsessão por formas geométricas e simetria. Se eu for na sua casa e houver um quadro meio centímetro torto, isso vai me incomodar até chegar ao ponto de ir mexer nele e alinhá-lo. Com isso, sou uma pessoa muito perfeccionista nos aspectos táticos e de modelo de jogo. Por isso, vejo a minha personalidade totalmente ligada à forma com que enxergo o jogo. Um jogo de oposição e de conquista de território. Um jogo tático com decisões técnicas e físicas”, explanou o treinador.

Mesmo que estereotipado como técnico de “fala difícil”, que muitas vezes não consegue conversar o mesmo idioma do boleiro, a ideia de jogo desenvolvida por Roger Machado demonstra totalmente o inverso. É um técnico que utiliza bem a experiência como ex-atleta para tornar simples a transmissão do conceito de jogo idealizado.

“Quando chego em um clube e converso com os atletas, afirmo que eles vão adorar o meu conceito de jogo. Na sequência, pergunto o que mais esperam para fazer em uma semana cheia e o que mais fazem nos momentos que precedem aos treinos. Explico que o meu conceito é simples: bobinho e rachão! O bobinho que eles fazem, onde tem 8 jogadores na roda e 2 por dentro, é o jogo de futebol. Como é o rachão no fim de semana? É o jogo apoiado com dois toques, onde os atletas entram na área driblando e buscando o gol, e buscando, através de passes rápidos, desestruturar o sistema defensivo adversário com mudanças de lado. É dessa forma que busco trabalhar”, explicou.

Você confere outros trechos da entrevista abaixo

O que é o jogo apoiado?

O jogo apoiado consiste na ideia de manter a bola em movimento para, nas alternâncias de ganhar e perder campo, desestruturar o adversário tendo muitos jogadores próximos à região da bola. Sempre falo aos meus atletas que a bola precisa sempre estar em movimento, pois a bola é o objeto do jogo. E, sendo o objeto do jogo, a bola precisa ter alternância de velocidade, direção, distância e ritmo, para que, com as trocas de passes, consigamos desestruturar o adversário e encontrar os espaços.

À medida em que a bola está em constante movimento, o individuo não consegue prestar atenção, ao mesmo tempo, em dois lugares. Ou ele presta atenção ao objeto se movendo, ou gira a cabeça para ficar atento à movimentação do seu companheiro para estabelecer uma distância saudável e que não gere espaços a serem explorados pelo adversário.

Após uma leitura de um livro de 200 páginas, é difícil lembrar de tudo. Mas, se conseguir memorizar apenas uma página, ao final da vida teremos o nosso próprio livro de 200 páginas.

Roger Machado

Como foi o processo de construção da sua metodologia de treino? Quais as suas referências?

Iniciei a faculdade de Educação Física para entender o futebol do ponto de vista energético e mecânico. Em seguida, me veio o anseio de entender o futebol do prisma tático e estratégico enquanto oposição de dois sistemas. Dessa forma, comecei a adquirir literatura de todo lugar do mundo. Toda semana chegava livro da Inglaterra, Itália e Portugal.

Quando fui auxiliar do Renato Gaúcho, no Grêmio, nos dias de jogos eu ficava posicionado estrategicamente, lá em cima, para enxergar o jogo de uma perspectiva diferente. Ao realizar algumas fotografias durante as partidas, por ser fissurado em figuras geométricas, acabei percebendo um círculo. E esse círculo era composto por 7 jogadores pela periferia e 3 jogadores por dentro.

Após isso, comecei a identificar alguns padrões. Por exemplo, quando esse círculo não estava bem montado em campo por questões de distâncias ou ausência de uma das peças, sobretudo para a manutenção da posse, ocorria uma mudança do desenho geométrico – e as chances de perder a bola eram maiores.

Em seguida, percebi que dentro desse círculo não se tinha um 11 contra 11. Por quê? Porque a última linha do adversário, composta pelos dois zagueiros e os dois laterais, não ficava dentro do círculo. Isto é, não estavam dentro do espaço efetivo do jogo e geravam um 10 contra 6.

E o que é isso? Uma grande roda de bobo. Com uma única diferença: a roda de bobo que os jogadores fazem no aquecimento é estreita e não necessita de jogadores por dentro para fazer a conexão e inversão de jogo. Se der um passe atravessado, a bola chegará no lado oposto. Pelo fato de o campo de jogo ser muito maior, o círculo, por consequência, é maior, e se faz necessário ter jogadores por dentro para fazer as conexões de um lado a outro.

Por isso, ao perceber que o meu centroavante ou ponta querem medir força ao encostar no zagueiro ou lateral, rapidamente falo para que eles não façam isso. Dessa forma, estão trazendo o jogador adversário para o círculo, quando o melhor é jogar no espaço por preservar a estrutura do círculo e, ao mesmo tempo, criar espaços. Por quê? Se o lateral esquerdo quiser casar no ponta, o espaço gerado é nas costas da defesa. Caso opte por não casar, o meu ponta ficará com espaço na entrelinha.

Roger Machado explicando ao Felipe Melo, o posicionamento pretendido no treino (Imagem: Sociedade Esportiva Palmeiras)

Os conceitos de jogo, por vezes, são mostrados com um grau de complexidade. Por ser um ex-atleta e, agora, estando na posição de treinador, como avalia o desenvolvimento cognitivo dos atletas?

Do ponto de vista da teoria, parece complexo. Mas, quando é materializado no treinamento, é muito simples de compreender. O jogador é sinestésico. Ou seja, aprende através do movimento, uma vez que possui memória muscular. Peço frequentemente para o jogador não realizar algo no treino que não deseje reproduzir no jogo.

Tenho uma história que sintetiza bem isso. A minha equipe passou a semana inteira treinando na chuva, e um atleta começou a dar carrinho pois estava gostoso de deslizar no gramado molhado. E eu falei: ‘não faça isso, pois vai gerar comportamento e levar para o jogo’.

No dia do jogo, a gente estava vencendo a partida, mas o lateral adversário estava afundando o meu lado esquerdo, porque o jogador titular estava desgastado. Aí o chamei para fechar melhor os espaços no lado esquerdo e empurrar o lateral adversário para o seu campo, e trouxe o jogador desgastado para o outro lado. Ele entrou em uma falta do lado contrário. A bola girou e, no mano a mano, sabe o que ele fez? Deu um carrinho e tomou amarelo. Aí tive que reorganizar a equipe e posicionar o jogador desgastado novamente no setor esquerdo.

A capacidade cognitiva do jogador vai acelerar esse processo de entendimento do jogo. Mas não será um impeditivo para que assimile. Pois os momentos são muitos marcados. E a gente costuma dar referências para que os jogadores se escorem durante a partida. Por que se não há um modelo, fica-se muito refém do talento individual. Agora, se tem um modelo bem trabalhado, a capacidade individual vai desenvolver. Mas se o individual não resolver, tem o modelo para que sirva de suporte às resoluções dos problemas do jogo.

Dentro desse tema, percebo que muito se fala a frase “o jogo é dos jogadores”. Mas essa frase, no sentido puro, nos levar a crer que é uma coisa anárquica. Não seria totalmente ao contrário, já que existe uma ideia por trás?

Para mim, é o seguinte: está vendo essa tela aqui? A pintura, as cores e os traços que o jogador vai utilizar, aqui dentro, não interfiro. Mas é preciso que se respeite a delimitação da moldura. O modelo é a moldura. Dentro desse espaço, o artista vai utilizar o que julgar necessário. O desejo é sempre de potencializar as características e o talento individual do jogador. Muito se fala que a tática engessa o jogador, e é o contrário. A tática liberta, uma vez que o jogador terá a compreensão da função que irá executar e ter liberdade para atuar.

Você é um técnico que se adequa ao contexto e aos atletas, ou que tenta implantar o modelo e moldar a característica do atleta?

No futebol, de modo geral, é muito difícil conseguir partir do zero e contratar 30 jogadores. Talvez se consiga ter as características dos atletas mais consolidadas ao modelo de jogo dentro de um ciclo de 3 ou 4 temporadas. O Brasil é uma grande escola para os treinadores brasileiros, pois, invariavelmente, ao chegar em um determinado clube, se faz necessário entender as características do grupo e, sobretudo, as da individualidade e qual modelo de jogo irá melhor se adequar ao elenco.

Não dá para partir do inverso. Porque, talvez, incorra em estabelecer um modelo de jogo incompatível com as características dos atletas. Se eu for bom e tiver ciência e consciência, ajudo em 30%. O talento individual sempre vai definir os jogos. Afinal, enquanto um jogador precisa dar 5 dribles para se sobrepor ao marcador, o outro, sem tocar na bola, ao abrir as pernas, consegue passar pelo oponente. Entretanto, se não tiver ciência e sabedoria do método que estou aplicando, passo a atrapalhar em 50%. E, dessa forma, além de não ajudar nos meus 30%, atrapalho o talento dos atletas.

Roger Machado comandando treino no Juventude (Imagem: Esporte Clube Juventude)

Como você busca periodizar a semana de treinamentos?

Durante muito tempo, a periodização do futebol obedeceu à periodização russa, com Verkhoshansky, que foi idealizada para o atletismo. Ela consiste em um período de base, outro pré-competitivo, um competitivo e, no fim, um período de transição. Esse ciclo de um ano no atletismo acontece praticamente em uma semana no futebol.

Nós temos, na segunda-feira, uma preparação. A terça é voltada para o pré-competitivo. Na quarta, chegamos ao pico por realizar uma atividade mais forte. Depois, damos uma descansada na sequência, uma subidinha, e descansa novamente porque no domingo tem jogo.

Atualmente, a periodização específica do futebol é mais ondulada. Antes, na periodização russa, traçava-se um momento da temporada que o jogador estaria no ápice. E no futebol não é assim. O jogador terá de estar no ápice no primeiro jogo, e não vai conseguir. Com o tempo de preparação que está disponível, não é possível.

A estruturação dos treinos muda conforme as necessidades e os novos contextos submetidos. Se você me perguntar o que existe dos treinos que comandava no Juventude, meu primeiro clube, vou lhe dizer que mantive uns 30%. Para executar o jogo apoiado, preciso criar estruturas de treinos que potencializem essas dinâmicas. Vejo o jogo de futebol como uma grande roda de bobo, com 7 jogadores pela periferia e 3 por dentro. E o bobinho reproduz fielmente o que praticamos nos jogos e treinamentos.

Criei uma metodologia que me permite traduzir os aspectos desse bobo gigante, com muitos condicionamentos e a geração de comportamentos através das regras do jogo. Por exemplo, se quiser exacerbar o jogo rápido, terei que restringir o número de toques no campo. Por outro lado, tenho que tomar o cuidado para não tirar a espontaneidade e criatividade do jogador, pois não é uma regra do jogo. Através dos princípios que tenho do jogo, transfiro para os auxiliares a criação do trabalho. Existem dias que vamos trabalhar jogo apoiado, transição ofensiva, transição defensiva, etc.

Vamos imaginar que a gente jogou no sábado e no domingo demos folga ao elenco. Na segunda, iniciamos a semana de treinos com o objetivo de, gradativamente, atingir o pico, que é um trabalho mais forte, na quarta-feira. Depois, baixamos novamente a intensidade para que a véspera do jogo se restrinja apenas a refinar e detalhar alguns aspectos, como bola parada, e oportunize ao atleta acumular combustível para o jogo.

O ambiente externo, por vezes, não entende que há muita ciência envolvida dentro do jogo. Dá para fazer de qualquer forma? Dá! Mas a garantia de que não irá ocorrer problemas é baixa. Na minha ótica, é preciso estar sempre em alinhamento com os diversos setores do clube, tais quais os departamentos de fisiologia e fisioterapia, para minimizar perdas. O futebol é um esporte que tem a aleatoriedade muito aflorada, mas tem algumas situações que podemos controlar. E são essas questões que não podemos abrir mão, já que podem ser cruciais para ter ou não um jogador durante toda a temporada.

O que a gente busca é colocar, o mais rápido possível, “o avião no ar”, para que, ao longo do curso e à medida que algumas variáveis tenham uma baixa, consigamos corrigir e buscar o equilíbrio.

Gosto muito de falar dos aspectos fisiológicos do jogo. É uma pena que são aspectos de mais difícil compreensão, e, por vezes, nós profissionais não conseguimos explicar de forma simples. E é um pouco culpa nossa.

Roger Machado orientando jogadores do Bahia no CT Evaristo de Macedo (Imagem: Esporte Clube Bahia)

Como você busca treinar o grupo que não é titular? Você partilha os conceitos de forma uniforme ou adota as características do adversário?

Vou lhe contar uma história para você entender como penso. Quando era jogador, o técnico pediu algo a um colega e a execução não saiu como o esperado. Quando indagado, o jogador respondeu que não sabia, pois, no momento em que a equipe titular estava fazendo um trabalho tático, ele estava chutando bola atrás do gol.

Por isso, trabalho da mesma forma com todos jogadores. Inclusive, não tenho dificuldade em trabalhar com elencos maiores, uma vez que trabalho em forma de rodízio.

Por exemplo, digamos que conte com 32 atletas no elenco. Vou ter dois grupos de 11 e outro de 10 jogadores, com cada um trabalhando um princípio de jogo diferente. Em um período de tempo pré-definido, eles trocam de posição e iniciam o treino de um novo princípio de jogo, para que todos compreendam quais são os conceitos do modelo de jogo.

Com relação ao adversário, trabalho 30% do tempo em cima de suas características. Porque, ao jogar, alguns treinadores trabalhavam em sua totalidade em cima das características do adversário. Só que quando o oponente mudava do 4-4-2 para o 3-5-2, a semana inteira de trabalho era jogada fora, já que partia-se do imaginário de que a equipe viria de tal forma.

Por isso, muito mais de que analisar a estrutura tática da equipe rival, busco analisar comportamentos. Esses comportamentos ou são treinados ou podem acontecer devido à combinação de características dos jogadores de determinado setor. E esse último fator é muito recorrente, uma vez que o técnico pode treinar diversas situações, mas, diante da composição das características de alguns jogadores, ocorrem soluções que fogem do padrão.

Quando analiso o adversário, claro que observo a estrutura e as nuances diferentes ao jogar com um tripé de meio no 4-3-3, no 5-3-2, com um losango torto, em linha baixa ou alta. Tudo isso nós analisamos. Mas, sobretudo, o que me interessa são comportamentos gerados pelos conceitos do treinador. O que por vezes me deixa descontente é uma análise baseada no erro ou acerto individual, esquecendo o contexto e a influência que o adversário exerce sobre comportamento da outra equipe.

Por vezes, utilizo a memória de curto prazo dos atletas para fazer esse treino de estratégia mais próximo ao jogo. Através do treino tático 10-0, realizamos algumas dinâmicas de jogadas para explorar as debilidades do adversário. Por exemplo, identificamos que o Jonatan, que é lateral-direito, compra a marcação encaixada no ponta e desce na linha. Assim, nós estabelecemos que o Pedrinho vai atrair o Jonatan para que outro ataque o espaço deixado em diagonal, de dentro pra fora.

Outro exemplo: quando um jogador se locomove para o espaço entrelinhas e o zagueiro não vai junto, mantendo posição. Essa bola dá para entrar. Mas esse passe tem de ser rápido, para realizar um jogo apoiado. No mesmo instante, alguém precisa realizar um movimento de ruptura para que, no momento em que o zagueiro sair atrasado para dar o bote, a gente consiga explorar a quebra da linha adversária. Vai acontecer igual ao treino? Umas duas ou três vezes durante o jogo.

Mais um exemplo. Ao perceber que o time adversário preenche a área com 3 ou 4 jogadores, busco trabalhar de véspera o preenchimento da área defensiva, para que a equipe tenha o número de jogadores no mínimo igual. O ideal é com uma sobra. Outro detalhe: o meia-atacante do rival, no momento em que há a batida, ele infiltra na área. Por isso, um jogador de outro setor tem de acompanhá-lo. Em suma, esses são os comportamentos que a gente analisa no adversário.

Treino comandado por Roger Machado no Atlético-MG

Durante os treinamentos como ocorrem as correções? A tecnologia se faz presente nesse processo?

Ao chegar em um clube, por estar iniciando a estruturação do modelo de jogo, utilizo o treino como uma referência para corrigir comportamentos e condutas dos atletas. Mas, depois, os jogos viram a principal ferramenta de trabalho. Mesmo assim, uso bastante o apoio dos drones para auxiliar na correção de movimentos ou espaços gerados por aqueles que jogam menos.

Os que jogam menos apresentam uma tendência de ficarem sub-treinados do ponto de vista físico, técnico e tático, caso o processo não seja bem controlado. Ao abrir o campo para os suplentes e lançar o drone no alto, consigo corrigir os comportamentos dos atletas e deixá-los no mesmo nível dos demais.

Essas correções acontecem em tempo real?

Algumas coisas, que conseguimos perceber, corrigimos ainda no campo de treino. Imagina cumprir toda sessão de treino, e somente depois, observar que estava tudo errado e ter de fazer um novo treino apenas para corrigir?!

É bom as pessoas saberem que, às vezes, montamos um treino e nem sempre flui da maneira que esperávamos. Os jogadores não estão desenvolvendo os comportamentos que a gente esperava. Com isso, temos que rapidamente encontrar soluções. Por exemplo, encurtar o campo ou aumentar o campo; aumentar ou reduzir o quantitativo de jogadores; colocar alguns escapes. Tudo isso com o objetivo de ter a geração de comportamentos mais próxima da idealizada.

Na maioria das vezes, após a sessão de treino, a gente sobe para a sala e busca analisar a execução. Por exemplo, tal espaço constantemente apareceu no jogo e, amanhã, vamos realizar um treinamento com foco em suprimir esse comportamento, que pode ser apenas um vício do modelo anterior.

O drone é manipulado pelo treinador-analista. Quais as atribuições dele na comissão técnica?

O Jussani desempenha essa função de treinador-analista. Ele participa da escolha e a montagem dos treinos. Lá na beira do campo, ele controla o processo de implementação dos nossos princípios de jogo com o auxílio do drone. Ele é o link entre o campo e o centro de inteligência, uma vez que é um conhecedor do nosso modelo e adapta o departamento de análise do clube às nossas necessidades de modelo de relatório e de estatísticas.

Como funciona o processo para estabelecer a plataforma e a relação entre companheiros ideais para transformar em uma ideia de jogo?

O futebol é um jogo de conquista de território. Pode ser considerado, do ponto de vista do simbolismo, uma batalha de campo. Existem os ataques terrestres e os aéreos, e o objetivo é colocar a bola dentro da meta do adversário. Esse objetivo pode ser alcançado através de um ataque rápido, de um jogo apoiado ou contra-ataque. Mas, sobretudo, entendendo o que o elenco pode oferecer.

Cheguei no Bahia com a ideia de fazer um jogo apoiado, ter mais tempo de posse e controlar o adversário por meio dela. Mas, rapidamente, identifiquei que, pela característica dos jogadores que tínhamos em mãos, podíamos desenvolver um jogo de transição rápida. Possuía 4 ou 5 volantes com boa capacidade de retenção de bola e boa técnica. À medida que fossem cansando, poderia realizar a troca e manter a estrutura.

O mesmo se aplica aos jogadores de lado, que eram muito rápidos. Os laterais, muito bons na linha e protegendo os zagueiros. Além disso, apresentavam um ótimo ataque à profundidade, com os zagueiros ficando mais nas zona central para se resguardarem e proteger melhor a área, e, consequentemente, evitarem o dilema do jacaré e do urso.

O que é o dilema do jacaré e do urso?

Geralmente, o zagueiro é alto e tem uma diferença de 20kg em comparação com um jogador de beirada. Então, se eu fizer a todo momento o meu zagueiro sair do eixo central para fazer cobertura lateral, a chance dele ganhar é menor em relação a um cara menor, mais baixo e habilidoso.

Quando estou chegando em um clube que possui um modelo de jogo diferente do meu, e percebo que os zagueiros costumam sair muito no corredor lateral, costumo brincar e perguntar aos atletas: em uma briga entre o jacaré e o urso, quem vence? Aí eu digo que depende de onde ela aconteça. Daí falo ao meu zagueiro (urso): não vai para água, espera o jacaré sair dela.

Para isso, preciso estruturar o time para não cair nessa armadilha. Tenho um mecanismo que chamo de “cinturão de defesa”. Ou seja, quando o meu lateral esquerdo está em amplitude, o volante do setor da bola encosta para ser o suporte de retorno, e, também, o jogador responsável por entrar na linha e manter o zagueiro no eixo central caso perca a bola. O mesmo ocorre no lado oposto. Se eu perder a bola, tenho o 4-1 formado e dificilmente tomo gol em transição.

Isso é uma construção diária, que se dá através do treino, mas também por intermédio de vídeos, mostrando a importância aos atletas de executar bem. Por exemplo, converso com o volante e digo: ‘quando você está no corredor, olha a estabilidade que conferiu à linha. Mas, nesse lance, você partiu do corredor central em direção ao lateral, e é muito mais difícil de impedir a progressão, uma vez que já chegou desequilibrado’.

O zagueiro não vai sair nunca? Claro que vai. De 10 ocorrências, o zagueiro vai sair três vezes com a distância bem mensurada para terminar a jogada e possibilitar a reorganização da equipe. Mas, se tiver um zagueiro rápido, potente e que saia bem em diagonal, claro que vou procurar explorar as suas valências.

Armazenamento de dados (Imagem: Reprodução Internet)

Quais os indicadores utilizados por você para mensurar o nível de implementação das suas ideias?

Alguns a gente cria, pois têm caráter mais imediato. E tem uma outra vertente que a gente trabalha em conjunto com o Andres, da Kin Analytics. O produto dele nem todo clube está disposto a contratar, seja por questões ideológicas ou por aspectos financeiros.

Dentro das métricas que utilizo bastante está a velocidade da bola. Citando um exemplo do período em que estava no Grêmio, poucas equipes passavam a bola abaixo dos 3 segundos por jogador. Naquela época, o Corinthians do Tite era a única equipe que tocava abaixo desse parâmetro, com 2,9 segundos por jogador. A partir das métricas da Kin Analytics, desenvolvemos trabalhos específicos e baixamos em 3 segundos a circulação da bola por jogador.

Sabe quando os mais antigos falavam algumas vezes que tal equipe perdeu o meio? Esse empirismo tem uma relação verossímil quando olhamos os dados.

Por isso, busquei desenvolver, em conjunto com o Andreas e o Kin Analytics, o indicador de controle de meio-campo. Ao dividir o campo em três partes e analisar as métricas geradas pelo Kin Analytics, tendo como parâmetro as competições no Brasil, América do Sul e Europa, percebeu-se que o maior controle era do Manchester City, que apresentava um índice de 350%. Ou seja, a cada bola que a equipe perdia no meio-campo, recuperava 3,5 vezes bolas nessa faixa de campo específica. E isso aumenta as chances de vencer os jogos. As equipes que se sagraram campeãs da Copa Libertadores tinham um controle de meio-campo na faixa de 170%. Isto é, a cada bola perdida, recuperava-se 1,7 vezes a bola no setor.

Outra métrica desenvolvida tratou da proporção ideal de ações defensivas, onde os jogadores de ataque tinham que contribuir. Afinal, não dá mais para abrir mão de dois jogadores no momento defensivo, e, ainda, se recebia o contra-argumento dos atacantes de que, se participassem do processo defensivo, não estariam inteiros para finalizar as jogadas.

Com isso, solicitei à Kin Analytics que olhasse os principais campeonatos internacionais e quantas ações defensivas as equipes tinham em uma partida. E quando falo ações defensivas, trato de interceptações, quando a bola é cortada, mas ainda fica com o adversário, e roubadas de bolas, quando o domínio de bola troca de lado. E, também, quanto os quatro atacantes (meia-atacante, os pontas e o centroavante) participaram do processo defensivo: se eles fizeram o gol, se participaram do processo defensivo e se isso impactou no desempenho individual.

Sabe o que a gente descobriu a partir disso? Quando os quatro jogadores de frente participavam em 30% das ações defensivas, a equipe tinha 70% de chances de vitória e de eles decidirem a partida. Quando eles não participavam em um volume de 30% e a equipe vencia, o jogo era decidido pelos volantes, laterais ou zagueiros.

Então, dentro desse universo, se buscou convencionar o que seria ideal do ponto de vista das ações defensivas. Por isso, ao perceber que o protagonismo das equipes grandes é maior nos campeonatos regionais, há uma menor necessidade de ações defensivas. Lá, girava em torno de 50% e 65% de ações defensivas. Quando se chega no Campeonato Brasileiro, Libertadores e Sul-Americana, por ter um sarrafo mais alto, já se faz necessário no mínimo uma proporção entre 75% e 80% ações defensivas para vencer os jogos.

Outra variável importante é a da posse de bola, mas é preciso lembrar que a posse é meio, e não fim, já que é possível ter o controle do jogo a partir do espaço. Tanto que tem equipe jogando com 30% da posse de bola e vencendo. No Bahia, a gente amadureceu as variáveis para que atendessem as minhas necessidades.

A posse de bola por si só não serve como parâmetro. Naquele contexto do Bahia da temporada passada, tínhamos uma equipe que não buscava ter o controle do jogo a partir da posse. Por isso, desenvolvemos uma relação da posse de bola com as entradas no último terço de campo. E, aí, a gente vai ver quem foi mais contundente. Quem teve 70% de posse de bola e entrou duas vezes no último terço ou quem teve 30% e conseguiu entrar oito vezes?

Nesse contexto de menos de posse de bola a equipe controlou o meio? Não, porque a gente estava marcando em bloco baixo. Essa variável não serve para determinado modelo, e isso é muito legal, pois não é uma coisa fechada e a gente vai adaptando. Utilizo alguns softwares que mostram o comprimento da equipe no sentido vertical e horizontal, para ter uma noção se está mais largo no sentido da lateralidade ou do gol. Assim, tenho uma dimensão da formatação do círculo, visto que ele mostra a média do posicionamento dos jogadores.

Roger Machado em coletiva de imprensa no Bahia (Imagem: Esporte Clube Bahia)

A figura do treinador ganhou notoriedade no futebol nos últimos anos. Com isso, veio a crença de que possui todas as respostas para solucionar os problemas do jogo. Como você observa esse status adquirido?

Se atribui ao treinador uma inteligência e uma importância absurda, e que ninguém pode contribuir mais com o futebol. Aquele que pensar dessa forma vai ficar estagnado. Existem coisas que os jogadores vêm me perguntar e sou humilde em dizer que não sei. Os convido a pensar juntos, para encontrar uma solução. Afinal, eles estão dentro do campo e são agentes do processo. Fico na beira do campo, na linha do horizonte, e muitas das vezes não percebo e não sinto a dificuldade que o jogador está sofrendo dentro de campo. Me municie das dificuldades e vou tentar encontrar soluções.

O que ocorre muitas vezes é que a minha memória sinestésica como atleta ainda está bem viva, já que tenho 18 anos como profissional dentro do campo. Isso facilita a perceber falhas. Por exemplo, como o adversário conseguiu finalizar essa bola na marca do pênalti? Tenho a indução através da memória como jogador que o meu lateral saiu atrasado, que o volante não conseguiu chegar, que o zagueiro saiu junto à cobertura, que fiquei sem o preenchimento da área e que o adversário conseguiu finalizar.

Depois, no vestiário, com o auxílio das imagens vivas, fico à par do que realmente aconteceu. Ao acontecer algo que julgo relevante dentro da partida e do meu campo de visão, peço ao analista que fica nas cabines para marcar na linha do tempo, e, depois, seleciono três imagens para mostrar nos vestiários com o objetivo de corrigir problemas ou explorar determinada fragilidade do adversário.

Aguarde a segunda parte da entrevista, que sairá na próxima semana, na primeira quinzena de novembro.

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