A LÚCIDA LOUCURA DE LISCA

Por Jonatan Cavalcante “Saiu do hospício, tem que respeitar. Lisca Doido é Ceará!”. A música entoada a plenos pulmões pelos torcedores do Ceará no Castelão ou Presidente Vargas, traz um recorte de como é a relação entre a torcida e o técnico Luiz Carlos. Uma relação verdadeiramente intensa e insana. O “doido”, que acompanha o já […]

Por Jonatan Cavalcante

“Saiu do hospício, tem que respeitar. Lisca Doido é Ceará!”.

A música entoada a plenos pulmões pelos torcedores do Ceará no Castelão ou Presidente Vargas, traz um recorte de como é a relação entre a torcida e o técnico Luiz Carlos. Uma relação verdadeiramente intensa e insana. O “doido”, que acompanha o já apelido Lisca, não se dá apenas pelo jeito de extravasar as emoções ao conseguir uma vitória ou comemorar um gol. É ocasionado também pelos desafios que aceita. Em 2015, o Ceará estava na lanterna da Série B, 12 pontos atrás da primeira equipe fora do Z4 e com 98% de chances de ser rebaixado. Lisca assumiu e em 9 jogos conseguiu 6 vitórias e 1 empate. Um aproveitamento de 70% que livrou o Vozão da queda à Série C. Em 2018 a missão era similar. Tentar transformar uma equipe virtualmente rebaixada em ao menos competitiva na Série A. Há 5 meses à frente do comando técnico, Lisca não só trouxe o Ceará para a briga contra o rebaixamento, mas também tornou a equipe competitiva e dona de um futebol consistente. Antes da chegada de Lisca, em 9 rodadas o Vôzão não tinha vencido ninguém, somava apenas 3 pontos e estava na lanterna. Sob a tutela do treinador, a equipe conquistou 34 pontos e está fora do Z4. O trabalho realizado por Lisca ganha proporções gigantescas quando analisa-se o segundo turno. Na mesma sequência (Santos, São Paulo, Flamengo, Corinthians, América-MG, Vitória, Grêmio, Chapecoense e Cruzeiro) em que somou 3 pontos com os técnicos Marcelo Chamusca e Jorginho, o Ceará com Lisca conseguiu 17 pontos (5 vitórias, 2 empates e 2 derrotas). Além disso, o time cearense é detentor da 5º melhor campanha.

Para ir além do personagem folclórico e entender os motivos que levaram o Ceará a esta arrancada na Série A, o Footure elaborou uma análise das principais ideias e plataformas de jogo do técnico Lisca.


Lisca encontrou a plataforma de jogo que melhor potencialize as características dos jogadores.
Lisca encontrou a plataforma de jogo que melhor potencializa as características dos atletas.

Com pouco tempo para trabalhar e com a necessidade imediata de estancar a sangria (maus resultados), Lisca adotou um sistema tático mais conservador e que não expusesse a defesa. Ou seja, o famoso “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Por isso, contra o Botafogo atuou no 3-4-1-2 e conseguiu não sofrer gols e pontuar. No Castelão, diante do Palmeiras, abriu mão dos 3 zagueiros e colocou o time no 4-5-1 para tentar impedir as triangulações e o jogo entrelinhas. Não obteve tanto êxito, porém conseguiu empatar. Na Arena Independência, contra o Atlético-MG, voltou a optar pelos 3 zagueiros para tentar tirar amplitude do Galo e aumentar a estatura na bola aérea. Fez um ótimo jogo. Mas em dois vacilos tomou a virada e saiu derrotado.

Ceará reativo e eficiente nas finalizações.
Ceará reativo e eficiente nas finalizações. (Fonte:Footstats)

A pausa na disputa do Campeonato Brasileiro para a Copa do Mundo, permitiu que o Ceará realiza-se contratações para suprir as carências encontradas e desse início a intertemporada. Com cerca de 30 dias, Lisca teve tempo para inserir as suas ideias de jogo, criar uma identidade, recuperar a parte física e principalmente o aspecto mental. No reinício da Série A, o Ceará voltou com uma ideia de jogo cristalina: ser reativo. O modelo de jogo foi centrado no 4-2-3-1. O lado direito enriqueceu no jogo curto e em infiltrações com a chegada de Samuel Xavier. Edinho ao lado de Richardson melhorou a proteção da defesa e a saída de bola (transição ofensiva). O quarteto ofensivo formado por Calyson, Juninho Quixadá, Leandro Carvalho e Arthur, deu agressividade, dribles, finalizações e eficiência a um setor que não tinha engrenado. A média de gols da equipe cresceu cerca de 240% na “Era Lisca” comparada ao período em que Marcelo Chamusca e Jorginho foram técnicos.

ORGANIZAÇÃO OFENSIVA

No momento ofensivo, a equipe de Lisca possui três caminhos de como iniciar, desenvolver e executar a jogada. Tanto pode ser através do ataque direto, pelo ataque rápido ou através dos contra-ataques.

ATAQUE DIRETO

O ataque direto ou jogo no pivô é uma forma de atacar considerada por alguns escritores, analistas táticos e jornalistas como rústico e simplista. Pois se baseia em passes longos direcionados aos atacantes em profundidade para que no duelo físico ganhem a 1º e a 2º bola e deem continuidade a jogada retendo para si ou passando para quem está próximo. Neste modelo de jogo, o processo de construção é suprimido. No vídeo abaixo é possível ver a influência de Arthur dentro desse modelo. O camisa 40, que, é um dos destaques do Ceará na temporada, faz uso da boa estatura (1,86m) e porte físico avantajado para ganhar os duelos de 1º e 2º bola. Seja retendo a bola para si e saindo em velocidade, com toque de primeira para algum jogador próximo ou realizando o pivô e esperando a aproximação e/ou ultrapassagem dos outros jogadores. Arthur tem se destacado pela imposição física, poder de arranque, condução, capacidade associativa (tabelar), boa impulsão, dribles curtos e longos. O atacante possui uma “patada” de perna direita que lhe rende uma média de 1 gol a cada 7 finalizações. Além disso, é o sétimo atacante com melhor aproveitamento de finalizações certas (46,20%). A evolução da inteligência de jogo é outro ponto a ser ressaltado. Arthur tem conseguido tomar a melhor decisão, no tempo certo e com boa execução de movimentos e gestos técnicos.

https://youtu.be/DpOD2di-Kec

CONTRA-ATAQUE

O contra-ataque é um dos 4 tipos de ataque existente. É conhecido basicamente pelo seu início após a recuperação da posse de bola e a progressão rápida pelo campo de jogo face ao espaço aberto pelo adversário dada a desorganização defensiva. E neste momento do jogo não é incomum os jogadores serem confrontados com situações de 1×1. E os atletas que possuem relevância neste fundamento são: Juninho Quixadá e Leandro Carvalho. Os dois atacantes possuem papel preponderante na puxada de contra-golpes lideram no quesito de dribles. A cada 30 tentativas de dribles, Juninho Quixadá consegue êxito em 86,66%. Leandro Carvalho também possui bom retrospecto. Em 32 tentativas o meia-atacante levou a melhor sobre o adversário em 21 ocasiões. No vídeo a seguir fica claro as táticas coletivas e individuais do Ceará ao buscar a recuperação da bola para buscar o contra-ataque. Quase que de forma “inconsciente” os jogadores buscam a temporização, fecham as linhas de passe próximas e realizam uma pressão constante ao portador da bola, recuperam a posse e em velocidade e de forma vertical buscam o gol. E neste momento do jogo, Arthur volta a se destacar. Com Lisca, Arthur passou a ser mais móvel. Se posicionando nas costas dos laterais para na retomada da bola ter espaço para arrancar em velocidade. Outro movimento interessante realizado pelo atacante, é o de buscar a entrelinhas ao se posicionar nas costas dos volantes adversários.

https://www.youtube.com/watch?v=DVtPY-UQzDc

ATAQUE RÁPIDO

ataque rápido como o nome é bem sugestivo, é um tipo de ataque mais vertical, sem tanta “negociação” com a bola ou espaço. Nesta forma de atacar busca-se a rápida criação de oportunidades no momento de organização ofensiva. Entretanto, não quer dizer que o técnico Lisca seja inimigo da bola ou a rejeita. Pelo contrário, opta por ter uma posse de bola útil, desprezando a posse estéril e o jogo lateralizado que não resultam em nada. O Ceará é uma das equipes que menos precisam trocar passes para chegar a uma finalização. São necessários 27 passes para gerar uma finalização. No vídeo abaixo, o time sai jogando curto com uma saída sustentada no 4-2 (laterais, zagueiros e volantes), se instala no campo do adversário e finaliza à gol em apenas 18 segundos. Outro ponto a ser ressaltado é a organização da equipe. Mesmo quando está atacando não deixa de se preocupar com a defesa. Isto é, ataca e defende ao mesmo tempo. O volante Richardson realiza a cobertura do lateral, Juninho Quixadá e Edinho se posicionam para pegar o rebote e/ou iniciar a pressão ou temporização na transição defensiva. O Ceará de Lisca ataca rápido, mas sem se descuidar da defesa. Essa é a tônica do Vozão na Série A.

ORGANIZAÇÃO DEFENSIVA

No momento defensivo a equipe de Lisca opta por marcar por Zona. Mas não a marcação por Zona Tradicional que tem como referência o espaço, o companheiro, não realiza pressão no portador da bola e é tida como passiva. E sim, uma marcação por Zona Pressionante. Neste tipo de marcação, busca-se criar superioridade numérica no setor da bola e atacar o portador com uma pressão incessante. Os jogadores próximos da zona central do jogo (onde está a bola) têm que fechar as linhas de passe próximas, encurtar as distâncias e antever a jogada para se antecipar ao adversário. O ponto chave nesta marcação é a intensidade das ações coletivas e individuais. Pois se a equipe oscila bastante, a possibilidade que o adversário tire a bola da zona de pressão e encontre um companheiro livre são boas. Abaixo, uma pequena análise dos comportamentos coletivos e individuais do Ceará na fase defensiva.

https://www.youtube.com/watch?v=Q-HZ9NoxW5g

A boa sincronização dos comportamentos defensivos realizado pelos jogadores desde o ataque até a defesa, tem se refletido nas estatísticas do sistema defensivo. A equipe do Ceará na “Era Lisca” teve um leve aumento na média de desarmes por partida.

Ceará ganhou consistência defensiva desde a chegada de Lisca.
Ceará ganhou consistência defensiva desde a chegada de Lisca.

A equipe do Ceará na “Era Lisca” teve um leve aumento na média de desarmes por partida. Destaque para o 1º terço com 197 desarmes e 2º terço com 109. Os jogadores que lideram o fundamento do desarme no Ceará são: Richardson (77), Luiz Otávio (42) e Samuel Xavier (39). Além do destaque dentro da equipe, os atletas são referências na Série A. Richardson é o 4º volante que mais rouba bolas. Luiz Otávio é o 3º zagueiro com mais desarmes e interceptações (12). E Samuel Xavier é o 7º lateral direito que mais desarma o adversário.

 

Com o time atuando mais compacto e tendo comportamentos coordenados e intensos sem a bola, o Ceará teve uma queda de cerca de 50% na média de gols sofridos e tornou-se a 6º equipe da Série A que mais precisa de finalizações para sofre um gol. Um total de 13 para cada gol. A melhora dos números defensivos também passa pelas intervenções realizadas pelo goleiro Éverson. Segundo o site Footstats, o arqueiro do Vozão fez 26 defesas consideradas difíceis e que poderiam resultar em gols. É o 2º melhor goleiro neste fundamento, ficando atrás apenas de Santos do Atlético-PR.

BOLA PARADA

A bola parada é um dos 5 momentos do jogo e possui relevância igual ou maior que todos os outros. Com a briga por espaços cada vez mais acirradas, a falta, escanteio, lateral e o pênalti assumiram o protagonismo em muitos jogos. De acordo com o Relatório da FIFA, de um total de 169 gols do Mundial da Rússia, 70 foram marcados em jogadas de bola parada (41,4%). Ou seja, de cada dez gols marcados na Copa, quatro foram originados em jogadas de bola parada. O técnico Lisca dedica uma atenção especial a este momento do jogo nos treinamentos. E é possível ver os comportamentos nas partidas. O Ceará realiza uma marcação predominante por Zona, mas que conta com jogadores marcando individualmente e esperando o rebote. Vale ressaltar a influência que o adversário exerce na distribuição dos jogadores. O Grêmio por exemplo, adicionou um atleta para uma possível cobrança curta. E isso, faz com que Lisca redistribua os jogadores e redirecione o jogador para marcar a opção de escanteio curto. E como sabe-se, o futebol é feito de escolhas. É um cobertor curto, o qual cobre um lado e descobre o outro. O gol do Grêmio na sequência do escanteio deixa bem evidente essa dicotomia. Pois o atleta do rebote ficou encarregado de cobrir uma área muito grande.

https://www.youtube.com/watch?v=ZDUVP30aL-8

A ascensão do Ceará é orgânica e tem participação direta de Lisca. A metodologia de trabalho do técnico está alinhada com o que há de mais moderno no futebol. Possui muito conteúdo em todas as áreas que envolvem o esporte bretão e consegue transmitir com clareza as informações relevantes para os jogadores. O Gaúcho, de 46 anos e natural do Rio Grande do Sul, tem provado a cada jogo que um louco pode ser capaz de romper com o status quo.

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