Em meio ao paraíso, o Altinordu luta contra o sistema na Turquia
Inspirado no Athletic Bilbao, da Espanha, um clube da Turquia busca ter uma equipe 100% formada em casa e, para isso, ir contra a cultura local. Você conhece o Altinordu?
Você já ouviu falar de Esmirna? Trata-se de uma cidade paradisíaca no lado ocidental da Anatólia, que é banhada pelo Mar Egeu. Além de ser um destino popular para as férias, Esmirna é a terceira cidade mais populosa da Turquia com 2,9 milhões de habitantes (perdendo apenas para Istambul e Ancara). Outro detalhe sobre Esmirna é a sua importância na história, tendo sido fundada por Alexandre, o Grande, e ao longo de sua história fora habitada por diversas religiões e credos.
A Turquia possui uma população de mais de 80 milhões de habitantes, sendo o país com a maior quantidade de jovens no mundo. Ao todo, 39% dos turcos têm entre 15 e 29 anos, liderando o ranking mundial. No entanto, com relação ao futebol, não é essa ideia que se passa, já que seus principais clubes possuem média elevadíssima, geralmente beirando os 29 anos de idade.
Entretanto, é na cidade de Esmirna que esse paradigma está sendo quebrado. A “Pérola do Egeu” é a casa do Altinordu FK, equipe fundada em 1923, após a dissolução do Altay FK. A equipe turca não disputa a elite nacional desde a década de 1970, tendo sido rebaixada para o futebol amador no começo da década de 1990. Porém, quando Seyit Mehmet Ozkan assumiu a presidência do clube, as coisas começaram a mudar. Com um projeto ambicioso, Ozkan quer tornar o Altinordu numa equipe 100% homegrown, ou seja, de jogadores formados inteiramente pelo clube.
Com passinhos de bebê, o clube revelou duas das maiores promessas da Turquia no momento: Cengiz Under (hoje na Roma) e Çaglar Soyuncu (hoje no Leicester). Mesmo com o prognóstico do presidente estando um pouco atrasado, já que ele contava com um acesso à elite até a temporada de 2019/20 em entrevista ao The Guardian, em 2017 – e a equipe se encontra na décima quarta colocação -, a academia do clube de Esmirna é um dos maiores celeiros de um país que não disputa uma Copa do Mundo desde 2002.
Apesar de ter pouquíssimos motivos para comemorar a nível profissional, os torcedores do Altinordu FK podem se gabar de terem feito uma participação digna na Youth League na temporada 2016/17. Se a equipe principal ainda não conseguiu chegar longe, os jovens já desbravaram internacionalmente.
A principal referência de Seyit Mehmet Ozkan é o Athletic Bilbao e sua condecorada academia conhecida como Lezama. A equipe espanhola é famosa por abrigar apenas jogadores nascidos no País Basco ou com um determinado grau de descendência basca. O objetivo dos “Diabos Vermelhos“ não é tão hardcore assim, porém, é semelhante ao querer cultivar apenas jogadores nascidos no país, principalmente na região metropolitana de Esmirna, que por si só já é muito populosa.
O lema do clube é “boa pessoa, bom cidadão, bom jogador”. O presidente não gosta do termo “academia de futebol”, ele prefere que os jovens vejam o clube como uma “escola vocacional”. É com base nessa premissa que o Altinordu busca mudar a maneira como as categorias de base são geridas na Turquia, que é um país que costuma revelar excelentes jogadores, porém, que nem sempre são criados em solo pátrio.
Os três grandes de Istambul dominam o cenário em todos os sentidos, seja dentro do campo ou fora dele. Todavia, nesta temporada, pela primeira vez em treze anos o título da Süper Lig não ficará com nenhum deles, sendo que Basaksehir (também de Istambul) e Trabzonspor (Trabzon) disputam o caneco. Com exceção do Trabzonspor, cuja média de idade é de 25 anos, todos os outros (Fenerbahce, Galatasaray, Besiktas e Basaksehir) possuem média de 28 ou mais. E isso reflete diretamente no desempenho da seleção, que, como dito antes, não consegue emplacar uma campanha digna de 2002 há muito tempo, pois não há renovação e poucos atrativos para novos atletas.
No entanto, se você fizer uma rápida pesquisa nas convocações das seleções turcas de base o nome do Altinordu está presente com uma frequência absurda, figurando mais até do que os nomes dos três grandes e do influente Basaksehir. Esse fenômeno acontece porque o Altinordu investe pesadamente na infraestrutura, nos treinadores e nos vastos campos de treinamentos, tendo espaço reservado do sub-9 até as últimas camadas da formação. Além dos fundamentos básicos do esporte, os atletas aprendem sobre a história do futebol, termos do futebol moderno, recebem aulas de mídias sociais, inglês e até de xadrez (para desenvolver o raciocínio).
Para um Barcelona, um Real Madrid ou até para o Dinamo Zagreb, que vocês conheceram recentemente por aqui, essa abordagem não é tão inovadora, porém, num país cujos dogmas são incontestáveis, o modelo do Altinordu não só apresenta resultados como mostra uma nova realidade, algo que eles não receberiam em outra equipe nacional.
Todavia, não é fácil quebrar o sistema num país tão tradicionalista como a Turquia. Ainda que o Altinordu consiga produzir jogadores de talento e dar-lhes estrutura, o peso do nome ainda é um empecilho na hora de retê-los na equipe e assim cumprir o sonho de Ozkan em chegar à elite com uma equipe totalmente formada por atletas nacionais e produzidos pelo clube.
Após a temporada 2015/16, o Altinordu perdeu em uma tacada só Cengir Under (17 anos na época) para o Basaksehir e Çaglar Soyuncu (19 na época) para o Freiburg. Recentemente, o Altinordu perdeu dois goleiros extremamente promissores para Fenerbahce e Trabzonspor, Berke Ozer (atualmente tem 20 anos, mas saiu quando era titular com 17 anos de idade) e Muhammet Taha Tepe (19 anos), respectivamente.
Além disso, existe uma dualidade muito grande entre o que os clubes querem e o que a seleção precisa. Há uma tendência histórica e até certo ponto cultural dos clubes em preferir a experiência em detrimento à juventude, mesmo sendo ironicamente um país dos jovens. Enquanto a seleção se aproveita, de certa maneira, da diáspora turca na Alemanha, nem sempre os melhores atletas que poderiam defender as cores do país acabam escolhendo esse caminho. “Deixar” o serviço para os clubes alemães nem sempre vai ser uma boa ideia.
Mercadologicamente falando, o Altinordu preenche um nicho interessante, que possibilita um intercambio de ideias e conhecimento com equipes maiores e de ligas proeminentes ao redor do mundo. O trabalho não passa despercebido, tanto que o clube é constantemente convidado para participar de torneios de base em outros países e até outros continentes. Em fevereiro, o Altinordu esteve presente na Alkass International Cup, em Doha, para jogadores sub-17. Ao lado dos turcos, estava Barcelona, PSG, Inter, Real Madrid e Zenit.
O prestigio que pacientemente vem sendo fomentado ressalta a coragem e corrobora a filosofia de lançar novos atletas ao elenco principal independente da idade. Hoje, as duas maiores promessas do país, e verdadeiros prospectos internacionais, jogam pelo Altinordu. Tratam-se de Ravil Tagir e Burak Ince, um defensor de 17 anos e um meia-central de 16, respectivamente.
Tagir é a grande estrela do Altinordu, tendo disputado 31 partidas até o momento e sendo titular em 30 delas. Ele é o grande exemplo do “se for bom o suficiente, joga”, pois o clube identificou seu talento ao vê-lo se destacar no sub-17 com 15 anos. Tagir rapidamente foi promovido ao time principal, pulando assim o sub-19 e o sub-23, fazendo sua estreia com 16 anos. O defensor turco é altamente elogiado na Europa por sua técnica, destreza ao desarmar e concentração (ele só levou um cartão amarelo nesses 31 jogos). Com 1,82m, Tagir ainda deve crescer mais alguns centímetros, porém, devido a grande compreensão tática do jogo, o jovem turco pouco precisa se valer da envergadura para sobrepujar os adversários, seja na disputa aérea ou pelo chão. Canhoto, o que o torna ainda mais atraente aos olhos dos gigantes europeus, Tagir passou por todas as categorias de base da seleção turca, tendo sido convocado pela primeira vez para o sub-15.
Ince é outro artigo de luxo oriundo do Altinordu. Com apenas 16 anos, ele também é canhoto e atua como meia-central, se destacando pelo incrível domínio de bola e qualidade estonteante nos passes. O jovem turco também demonstra confiança nos arremetes de fora da área, além de ser multifuncional, podendo atuar como volante, segundo volante ou até de armador. Ince participou de 20 partidas com a camisa dos Diabos Vermelhos, tendo sido titular em seis.
O meio-campista disputa posição com outras duas crias da casa, Ogulcan Ulgun (22 anos) e Kerim Alici (23 anos), e apesar do evidente talento, a questão física impede que ele roube a posição de uma vez, mas não o impede de impressionar. Ince, mesmo com tão pouca idade e tão pouco tempo em campo, já anotou dois gols pelos Diabos. Assim como Tagir, o meio-campista é figurinha carimbada nas seleções de base da Turquia, e sua primeira convocação, para o sub-15, fora na mesma chamada do amigo zagueiro.
Os nomes da dupla já são especulados nos gigantes europeus, sobretudo nos clubes da Premier League. O Altinordu ainda conta com nomes menos badalados, porém, com passagens pelas seleções de base, como Atalay Yildirim, atacante de 19 anos, e Atakan Uner, extremo-direito de 21 anos. Yildirim estava emprestado ao Nigde Belediye, clube-parceiro dos Diabos Vermelhos que disputa a terceira divisão. Devido a grande concorrência no elenco principal e o cuidado que o clube possui para não queimar suas promessas, ele foi realocado para um contexto menos exigente. Uner é concorrente direto de Yildirim e se manteve como titular da equipe na segunda divisão. O extremo é rápido e driblador, tendo marcado quatro gols e dado seis assistências pelo Altinordu na atual temporada.
Graças à resiliência do atual presidente, o Altinordu continua remando contra a maré na Turquia sem abrir mão de seus valores. A paciência, por mais que seja um exercício desafiante, costuma gerar frutos imprescindíveis para os vencedores no futuro.
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