Cartão do Adepto em Portugal (I) - Entrevista a João Tibério

No primeiro artigo do Dossiê Cartão do Adepto em Portugal, conversamos com João Tibério, adepto de futebol e autor do podcast "O Brinco do Baptista", que nos ajuda a perceber o enquadramento desta lei e os seus efeitos práticos na vida das bancadas em Portugal.

O regresso dos adeptos aos estádios em Portugal está próximo, com o início do desconfinamento que hoje se inicia. Mantendo-se o controlo sobre a pandemia, no espaço de um mês as bancadas retomarão o seu colorido, mas também muitos dos seus problemas. O Cartão do Adepto tem estado no centro de uma discussão que terá agora teste na prática, tendo em conta que a legislação não teve ainda oportunidade de ser confrontada com a realidade. 

Numa série de artigos sobre o tema, procuramos perceber as posições de diferentes partidos na Assembleia da República, a forma como estas decisões terão impacto nas vidas dos adeptos que vão ao futebol, sobretudo o “adepto anónimo”, bem como dialogam leis com a vida das pessoas. 

João Tibério, um dos autores do podcast “O Brinco do Baptista” e presença habitual nos jogos do SL Benfica, nas bancadas do Estádio da Luz, ajuda-nos a perceber o ponto da situação. O impacto do Cartão do Adepto e algumas soluções alternativas à lei em vigor. 

Podes fazer-me um pequeno historial da luta contra o Cartão do Adepto, que movimentos de adeptos se formaram e como tem sido feita a contestação ao mesmo?

Começo com uma breve resenha de todo o processo. A mais recente lei para o combate à violência, ao racismo e à intolerância é de 2019, sendo que o Cartão do Adepto foi referido pela primeira vez em janeiro de 2020. A proposta veio do secretário de estado da Juventude e Desporto, João Paulo Rebelo, e do ministério da Administração Interna, como sendo a resposta necessária aos constantes problemas de violência no futebol português. Creio que podemos ver alguma ligação causa-efeito com o caso de Alcochete, além de outros momentos de violência dentro e nas imediações dos estádios. O Estado (e o governo) viu necessidade de apresentar uma resposta visível ao que estava a acontecer em Portugal. Só que a resposta política e legal para o que tem acontecido no desporto foi um modelo que já falhou noutros países. 

Em paralelo, temos a resposta quase inexistente dos adeptos. Primeiro porque muitos ainda não perceberam o que representará esta nova lei nas futuras idas ao futebol; depois porque a pandemia da COVID19 acabou por tirar este assunto da discussão necessária. 

Vou tentar colocar as reações dos adeptos em três níveis:

a) A grande maioria das claques e/ou GOA (grupo organizado de adeptos) têm demonstrado o seu descontentamento com comunicados e algumas ações, mas sem a presença de público em estádios fica difícil de concretizar ações de luta mais visíveis;

b) A Associação Portuguesa de Adeptos, criada em 2016, ainda tem pouca visibilidade e mediatismo, contudo tem procurado colocar este assunto na agenda mediática desportiva. Só que o pouco peso institucional da mesma tem resultado em poucos efeitos práticos; 

c) Finalmente, temos o adepto anónimo. A maior parte ainda não se apercebeu do que tem pela frente nos próximos anos. A existência de ZCEAP (zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos) vai mudar a ida ao futebol. A narrativa criada aparenta ser apenas um problema para as claques mas as idas a jogos como visitantes e a presença de menores nalguns sectores está comprometida.

Como sentes que foi tratada a questão por parte da Assembleia da República? Houve espaço para ouvir um número alargado de adeptos, representantes de claques, etc?

Não houve. E, infelizmente, não é a primeira vez que isso acontece quando falamos de discussões sobre o futuro do futebol. Já tinha acontecido o mesmo na lei anterior (16/2004), que foi aprovada à pressa antes do Euro2004 e que apresentou poucos resultados práticos. Algumas claques cumpriam a lei (estando registadas como associações sem fins lucrativos) mas os problemas mantinham-se. E irão manter-se sempre enquanto se quiser confundir violência e crime nos recintos como sendo resultado dos mesmos e não percebendo que são crimes independentemente do local e pessoas que os praticam. Toda a discussão sobre a nova lei não foi tida com a APDA, com claques e GOA, com Oficiais de Ligação, com adeptos anónimos. Todo o debate sobre este problema e sugestões foi tido em gabinetes, esquecendo quem está no terreno e conhece todas as cambiantes. E não consigo não apontar o dedo aos clubes com maior visibilidade. Eles tinham a obrigação de defender os seus adeptos, ou clientes (na visão de algumas direções) e não o fizeram.

Na atual situação, com a legislação aprovada, qual o quadro que antevês para quando os adeptos puderem regressar aos estádios?

Quando descobrirem que não são só as claques que estão a ser postas em causa acredito que aumente a contestação. Claro que haverá sempre gente que irá fazer o cartão de adepto porque prefere não ter chatices e quer é assistir ao jogo. Teremos também algumas pessoas de claques que aceitarão isto para continuarem a fazer negócio. Tal como o registo de adeptos nas claques parece ser uma fraude, basta ver quais os números oficiais e as pessoas que estão presentes nesses setores. Claro que podemos sempre ter um cenário possível que é ter uma lei que não é cumprida, algo que não é novo no meio.

Que propostas vês como centrais para se poder ultrapassar esta situação? Revogação da Lei? E que tipo de alternativas deveriam ser construídas para caminharmos para uma boa resposta no combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos?

Diria três: Alterar a lei do combate à violência; revogar o Cartão do Adepto; e  cumprir a lei dentro dos estádios. Tenho dúvidas sobre uma outra opção: punir mais os clubes pelos seus adeptos. Penso em situações como as de Moussa Marega, em Guimarães, ou Christy Ucheibe, em Famalicão, e fico na dúvida sobre o que poderá o clube fazer. Quem vai a estádios regularmente sabe que é fácil identificar alguém ou um grupo de pessoas, basta querer fazê-lo. Ou seja, há poder dos clubes e das forças de autoridade para resolver parte do problema da violência, racismo e intolerância. 

Este ponto leva-me para uma questão paralela à que falamos aqui: intervenção e excessos policiais no futebol. Se falamos regularmente de casos de violência entre adeptos, não é menos incomum os casos de excessos policiais. Temos um gravíssimo problema nessa área. Recomendo que se acompanhe um jogo noutro país para se perceber como se pode ter uma vigilância eficaz e um controlo de grupos de adeptos baseado numa vertente mais pedagógica. Não tenho dúvidas que uma postura mais colaborante, positiva e pedagógica das forças de autoridade tornaria o ambiente mais saudável.


Pode ler o segundo artigo desta série no Footure, Cartão do Adepto em Portugal (II) – A questão no Parlamento

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