Osimhen, Simy, e a problemática das narrativas sobre jogadores africanos

Exemplos como os de Osimhen e Simy, atacantes do mesmo país, trazem o problema de análise de jogadores por rótulo

É natural na vida que se façam relações sobre certos assuntos. No futebol não é diferente. Você com certeza já ouviu clichês sobre jogadores argentinos serem “raçudos”, de jogadores brasileiros “técnicos”, e diversos clichês sobre jogadores africanos, além de outros tantos rótulos.

Isso acaba por ser um convite ao erro. E por muitas vezes ao racismo, em se tratando de jogadores africanos, ou mesmo de descendência africana. Por diversas vezes estes atletas são associados a força física, velocidade, mas poucas vezes associados a inteligência, mesmo em casos em que o talento é evidente, por vezes são associados ao físico.

Por conta dessa reflexão, especialmente com os africanos, reproduzo parte do texto de Ferdinando Cotugno na Rivista Undici: “Para descolonizar a narrativa dos jogadores de futebol africanos”. O texto em questão trabalha sobre dois exemplos do quanto uma narrativa pode não corresponder a realidade.

Os dois exemplos citados no texto vem da mesma cidade e do mesmo país. Ambos nigerianos, nascidos em Lagos, ambos atacantes da Serie A. Um é Victor Osimhen, jovem, atacante do Napoli, e outro é Simeon Nwankwo, ou simplesmente Simy, do Crotone. Um provou em sua primeira temporada ser um dos mais promissores da Serie A, o outro foi o primeiro africano desde Eto’o a fazer mais que 20 gols em uma temporada da elite italiana.

Ambos muitas vezes são descritos dentro do mesmo rótulo. Africanos, do mesmo país, o que se pensa por diversas vezes que são atacantes físicos, bons no cabeceio, e com virtudes apenas na velocidade, e não necessariamente em jogadas cerebrais e de inteligência.

Osimhen mostrou que pode ser além dos rótulos, com boa movimentação, e mesmo chegando tarde em uma temporada que em certos momentos foi caótica para os napolitanos e pra ele em vista as lesões e o teste positivo para Covid-19, acabou fazendo a diferença em alguns jogos, mesmo com “apenas” 10 gols em sua temporada de estreia.

Além de uma boa média de gols e assistências na reta final, o nigeriano por diversas vezes saiu como melhor em campo sem marcar gols. Além da agilidade física, ele ganha na agilidade do pensamento, ajudou a superar alguns problemas do Napoli com sua leitura do jogo, e assim fez a equipe, que tinha problemas de gols, se tornar mais dinâmica e leve com sua simples presença.

Simy, por sua vez, é um destaque distinto. Tido muitas vezes como um atacante de gosto popular irônico, como um bagre de poucos gols cultuado em páginas de memes por aí, e descrito com um clichê desde sua chegada ao Crotone, em 2016: o atacante africano alto, desajeitado e inadequado, com fama de caneleiro, mas que volta e meia deixa seus gols.

O nigeriano já vem deixando sua marca há tempos, desde 2018 com o grande gol de bicicleta na Juventus. Em 2019–20, foi artilheiro da Serie B. Mas para se consolidar como um bom atacante, ele teve que aprender a se ajeitar no espaço com sabedoria e precisão, tentando usar os limites do próprio corpo a seu favor taticamente.

Sobre Simy, destaco o trecho de um outro texto, o de Daniele Manusia para L’Ultimo Uomo, em que descreve o atacante:

O talento de Simy reside em sua estranheza, não apenas em suas proporções, mas na maneira como ela as usa. Normalmente de atacantes gigantes, com alavancas longas, espera-se que os duelos corpo a corpo protejam a bola ou antecipem o defensor no cruzamento. Simy ocasionalmente usa seus braços e pernas de aranha dessa forma, para manter os adversários longe da bola, mas muito mais frequentemente eles são úteis para bater na bola de uma forma surpreendente, se enfiando entre as costelas dos adversários, chegando em uma bola que parecia muito distante, ou chutando por antecipação [aos adversários] usando seus membros inferiores como uma tacada de golfe. Em suma, o talento de Simy não é puramente físico, mas também põe em jogo sua inteligência.

O próprio atacante já declarou isso a revista Sportweek, da Gazzetta dello Sport: “Não somos iguais. Nunca seremos todos iguais. Eu sou o Simy, tenho quase dois metros de altura e isso me dá vantagens e desvantagens. Com os pés e a cabeça chego a alturas onde os outros não chegam, mas em espaços apertados não sou o Messi. Assim que me dão a bola, tenho que chutar”.

Tudo isso explica porque Simy mesmo com o Crotone rebaixado como lanterna, conseguiu marcar 20 gols, conseguia fazer duelos competitivos como equipe mesmo em uma condição de “sentença de morte”, e explica porque o nigeriano é tão cortejado na próxima janela para se manter jogando na primeira divisão italiana na próxima temporada.

Dos gols em dois dígitos na Serie A, além dos dois nigerianos, outros dois africanos completaram dois dígitos na Serie A. O angolano Nzola, do Spezia, que marcou 11 gols, e o marfinense Kessié, do Milan, que marcou 13 gols, e que também é um exemplo de inteligência emocional, afinal de contas, ninguém é chamado de “Presidente” em um clube como o Milan à toa.

Destes, Kessié foi alvo de preconceito claro mesmo tendo sua capacidade futebolística comprovada, pelas críticas de alguns milanistas ilustres, ou por diversos exageros. Mas o tempo o fez tornar uma das peças mais fundamentais do time de Stefano Pioli.

Nos contextos avaliados especialmente os nigerianos, Ferdinando Cotugno questiona: “Simy e Osimhen estão crescendo e, no processo, ajudando a reescrever o jogo, a questão é: estamos crescendo também? Quanto perdemos em falar mal de jogadores cuja origem parece já nos dizer tudo?”. Questão que trazemos para a coluna para o debate.

Tudo isso em um contexto de jogadores avaliados culturalmente, o que é a ideia do debate mesmo para atletas do mesmo país e da mesma cidade, e aqui cabe citar um trecho do texto referência para este post de Ferdinando Cotugno, que referencia o antropólogo Bruno Barba:

O antropólogo esportivo Bruno Barba, em seu último livro O corpo, o rito, o mito (editora Einaudi), lembra que visões desse tipo (dá como exemplo o caso de atletas negros que “não conseguem se defender porque não conseguem se concentrar”, por uma frase semelhante dita sobre o alemão Antonio Rudiger, o ex-jogador Stefano Eranio foi demitido de uma TV suíça) não são opiniões ingênuas e inocentes, mas levam ao “essencialismo, ao racismo e consequentemente ao racismo”. Não são apenas aqueles que decidem ser racistas, mas também aqueles que não sabem que o são. “A pele é cultural”, escreve Barba, “sempre que se fizer referência ao “corpo do atleta” teremos, portanto, que fazer um esforço de abstração, ou melhor, um ato de “descolonização do nosso imaginário” e pensar nos dons naturais que são sempre moldados e adaptados ao ambiente. É a cultura que determina (falando em esporte, também o treino) a história individual, os recursos morais, a vontade”.

O texto de Cotugno também cita outros jogadores, como Diawara, da Roma, e que são outros casos que cabem para a análise, embora o caso latente do texto que serve para reflexão seja a comparação entre Osimhen e Simy. Atacantes muito diferentes entre si. Homens de referência de times de diferentes características, mas que algumas vezes são vistos como iguais por terem a mesma nacionalidade.

Estas dúvidas sobre capacidades físicas e técnicas sobrepostas na análise esportiva, são comuns em jogadores do futebol globalizado, mesmo os de origens europeias, que na seleção dos melhores jogadores africanos de 2020–21 eleitos pela France Football, por exemplo, representavam 6 dos 11 integrantes (Mendy, Koulibaly, Hakimi, Bennacer, Mahrez e Ziyech) do time.

Destes seis, todos eles são nascidos em países europeus, criados em clubes europeus, mas que são africanos de identidade e pertencimento, e que sofrem ou sofreram em algum momento com essa análise, justamente por conta do rótulo de “jogadores africanos”.

Essas situações em um contexto de futebol globalizado acabam por chegar a atletas europeus de origens africanas, ou mesmo atletas que não tem origens diretas africanas, mas negros, que, lembrando, são mais associados a esses virtudes físicas em detrimento da inteligência de espaços ou da técnica.

É um contexto que se vê na Serie A com os jogadores citados por esta coluna, todos de características diferentes, e que tem sua inteligência muito grande vista em campo. Se viu também em um passado recente com a frase “eles são mais físicos do que talentosos” sendo proferida para Pogba e Mbappé.

Isso gera reflexos sobre a cobertura futebolística, tanto a respeito de comentários pré-rotulados sobre atletas, como até mesmo sobre reportagens analíticas, como um caso que cito sobre a Gazzetta dello Sport na última temporada:

Em outubro, o jornal divulgou uma matéria “Koulibaly, Baka e Osimhen: adesso il Napoli mette i muscoli” (Koulibaly, Baka e Osimhen: agora o Napoli põe os músculos, em tradução literal). A matéria acaba, talvez sem querer, relacionando os três atletas de origem africana, embora Bakayoko seja francês, a virtudes físicas.

Mas destes três, quem pode ser melhor interpretado por suas valências físicas? Talvez apenas Koulibaly. Com Bakayoko isso era associado ao seu período de Milan, com bom número de desarmes, mas é exatamente o físico, ou melhor, os músculos, que faltam a um jogador mais franzino como Osimhen, que como descrito acima na comparação com seu compatriota de sucesso, é pouco físico. 

Atletas como Osimhen e Simy, retratados pelo texto, são diferentes entre si, mas por conta da nacionalidade, e da cor, acabam por entrar no mesmo balaio de centroavantes “trombadores”, ou “raçudos”, ou de jogadores descritos com um nível técnico mais baixo, mas que compensam na questão física, fato que já foi descrito muitas vezes até pra grandes do esporte, como Drogba e Eto’o na década passada.

Uma situação comum em vista o desconhecimento do esporte há alguns anos atrás. Que até pode se compreender para quem não segue o esporte. Mas que jamais pode ser admitida para quem analisa, escreve, vê ou ao menos segue com mais afinco o futebol pelo mundo afora.

Essa visão pode ser abandonada com uma melhor observação do jogo, uma melhor observação dos contextos que os cercam, mesmo em um contexto de seleção nacional, mas principalmente em uma situação de futebol de clubes, em um problema que ocorre com outros jogadores de outros países, mas que é gritante e latente com jogadores africanos, ou de origem africana.

O futebol mudou muito nas últimas décadas, onde em todo esse período jogadores com grandes valências físicas se sobressaíram em diversos cantos do mundo, e mesmo veteranos como Ibrahimovic e Cristiano Ronaldo não nos deixaram mentir. Mas por que com atletas de descendência africana essas características são mais ressaltadas? É hora de mudar o pensamento sobre eles.

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