Tammy Abraham e o cartão de visitas dos ingleses na Serie A

Os ingleses estão invadindo a Serie A e o sucesso e o talento de Abraham é um exemplo deles

A Serie A nunca foi conhecida como o palco dos grandes jogadores do Reino Unido, mais especificamente da Inglaterra. Flops históricos, como os de Luther Blissett no Milan, ou jogadores que não empolgaram tanto criaram um certo “preconceito” contra jogadores ingleses mesmo com cases de sucesso como Gascoigne na Lazio, Paul Ince na Inter e Platt na Sampdoria dizendo o contrário.

O fato é que na década de 2010 havia uma baixa tendência de ingleses na Serie A. Entre 2013 e 2018, apenas um jogador inglês jogou em clubes italianos, sendo ele Nathaniel Chalobah, um jovem de rotação no elenco do Napoli treinado por Maurizio Sarri em 2015–16. 

Isso também é fruto de clichês, ainda que verificado por números e por números, é o da reticência dos jogadores ingleses em se mudar para o exterior. Os jogadores britânicos e/ou irlandeses que disputaram pelo menos uma partida na Série A são 51; um número muito baixo quando comparado com o espanhol (91), o sueco (97), o francês (153), e as proporções são semelhantes em todos os outros grandes campeonatos europeus. 

As razões por trás dessa relutância em deixar o Reino Unido são históricas, culturais, e obviamente econômicas: as diferenças linguísticas e de hábitos têm um peso importante na falta de adaptação dos atletas às novas nações, e depois o domínio financeiro da Premier League e também da Championship fez o resto, pressionando os jogadores a não deixarem a Inglaterra.

O sucesso de alguns jogadores ingleses pelo mundo faz mudar essa tendência. Na Itália, embora o número seja cada mais crescente, o sucesso de um deles faz mudar a cabeça sobre os jovens ingleses: ele é Tammy Abraham, o artilheiro romanista, de 25 anos de idade. 

Mas por que Abraham dá tão certo na Roma? É fruto de uma rápida adaptação ao sistema de jogo giallorosso, e de uma grande parceria com o “tio” José Mourinho, como chamou o atacante inglês o seu comandante em entrevista a CBS.

O atacante tem suas particularidades. Ele não é conhecido como alguém que tenha a força ou a técnica para impor o contexto ao seu redor, mas que, como descrito por Dario Saltari em texto sobre em L’Ultimo Uomo, ele joga perpetuamente na fronteira entre o visível e o invisível, naquela área cinza entre um salto inofensivo na área e o gol.

Naquela função, segundo o texto, o que faz a diferença não é tanto como você chuta ou como você controla uma bola, mas estar pronto no lugar certo no momento certo, e esse tipo de conhecimento é necessário para se expressar em altos níveis. 

Até hoje, para marcar seus 23 gols na temporada, Abraham usou 34 toques na bola, 32 dos quais na grande área, segundo a revista Undici. De acordo com dados coletados pela Twenty3Sports em relação apenas aos jogos da Serie A italiana, Abraham acumulou 15,46 xG, praticamente o mesmo que os reais (15), e acertou 65 de seus 74 chutes totais de dentro da área até a 30ª rodada.

Vale destacar um trecho do texto de Claudio Pellechia para a revista Undici sobre o atacante e sua verticalidade, que se aplicam bem a questão: 

Se você associasse um adjetivo a Abraham, vertical seria a escolha mais óbvia, ou pelo menos a mais adequada para a forma como o inglês está acostumado a se mover e pensar .atacante, no que é a busca espasmódica de uma jogada que lhe permita chegar à área o mais rápido possível. Este é um detalhe que é especialmente perceptível ao subir a campo: as dificuldades no primeiro controle e a capacidade de absorver o contato contra os defensores que são fisicamente superiores a ele fazem Abraham tentar se antecipar, muitas vezes no calcanhar ou por fora, desde que a ação progrida em direção ao gol adversário sem perder tempo. Isso o torna bastante previsível e danificável quando usado como pivô com tarefas de direção [ao ataque] e conexão entre as funções, enquanto é devastador quando é colocado em posição de atacar a profundidade em campo aberto ou se mover atrás da linha defensiva como no gol feito contra o CSKA Sofia na Conference League, por exemplo.

É verdade que Abraham não tem uma visão de jogo suficientemente apurada, nem um jogo de costas para o gol, que se pode arrastar a Roma sozinho para o campo adversário, o que significa que Tammy precisa de pelo menos um parceiro para associar para liderar as transições de sua equipe. 

E este tipo de jogo, que consiste em atacar o adversário a uma velocidade quase sempre inferior, é tanto mais eficaz quanto mais os jogadores se conhecem. E neste caso, a voluntariedade e o companheirismo de Tammy faz com que o sistema funcione melhor na sua característica de movimentação que arrasta a marcação, como nessa imagem diante da Lazio:

Aqui, Mkhitaryan carrega pelo meio e Abraham arrasta a marcação. A jogada acaba por terminar com um chutaço do armênio na trave. (Foto: L’Ultimo Uomo)

A divisão de espaços com os meias e pontas romanistas também é uma grande vantagem do jogo de Abraham, que faz funcionar o ataque com ou sem gols, como se vê nessas duas imagens do primeiro gol giallorosso na vitória diante da Atalanta, em Bérgamo, no mês de novembro, em boa jogada com Zaniolo: 

A troca de passes e posições entre Zaniolo e Abraham no 1º gol romanista diante da Atalanta, em novembro (Foto: L’Ultimo Uomo)
A troca de passes e posições entre Zaniolo e Abraham no 1º gol romanista diante da Atalanta, em novembro (Foto: L’Ultimo Uomo)

Características de um bom centroavante. Não é coincidência que Abraham tenha ganho o prêmio de jogador do mês de março da Associação Italiana de Jogadores (AIC). Mas Mourinho pensa que ele pode melhorar: “Quando você diz que Abraham é ótimo, eu discordo. Sei que ele pode fazer o que fez hoje e não apenas com gols, mas também com a forma como segura a bola. Exijo muito dele porque conheço seu potencial”, disse Mou após o dérbi.

Mourinho tem forte proximidade com o atacante, e no ato da chegada dele, despertado as expectativas dos torcedores da Roma sobre o atacante inglês ao pronunciar uma frase que a partir daquele momento em Roma se tornou quase um mantra: “esperar pra ver”. Os romanistas nem precisaram esperar muito, e os gols estão aparecendo. 

A proximidade de Abraham com o futebol de Mourinho vai para além do gramado, para além daquele 4–2–3–1 agressivo e dinâmico de que ele tenha o complemento e a finalização ideais. É uma questão de visão, de fome, de ambição, de vontade de demonstrar que pertence a um futebol de alto nível que, em diferentes momentos e por diferentes razões, o classificou como “inadequado”.

Segundo o atacante, em outra entrevista, agora em novembro, o ex-Chelsea revelou que Mourinho lhe pediu para “se tornar um monstro” e “demonstrar a maldade e a atenção necessárias para incutir medo nos defensores”, bem ao estilo Mou de de ser, e que Abraham compreendeu bem.

E o sucesso de Abraham na Itália pode fazer com que o jogo mude para ele e outros ingleses, como ocorreu na Bundesliga, que absorveu talentos como Sancho e Bellingham nos últimos tempos. A tendência é vista nessa temporada, em que a Serie A é a liga com maior número de jogadores ingleses fora da Premier League, com 7 atletas, contra 6 na Bundesliga e 3 na Ligue 1 e nenhum em La Liga. 

Sucesso que é trilhado por alguns compatriotas, como é o caso de Tomori no Milan, e que alguns buscam em suas equipes, como Maitland-Niles na própria Roma, Tuanzebe no Napoli, entre outros, e embora alguns como Binks e Ronaldo Vieira sejam coadjuvantes em seus times, é um destino cada vez mais buscado por ingleses para poder jogar. 

E é uma atitude que o próprio atacante recomenda a outros dos seus colegas da Premier League que não jogam. Em palavras dele em uma entrevista ao Guardian, em outubro, ele aconselhou outros compatriotas que não jogavam, como ele, a procurar outros ares:

“A minha ideia era ficar na Premier League, em minha casa. Mas no Chelsea eu não teria espaço e queria emergir: foi frustrante, praticamente treinei só para mim e não para o time, e por isso entendi que teria que sair, mesmo que talvez fosse a coisa mais fácil fazer seria ficar em uma grande equipe com um papel marginal. E, em vez disso, percebi que deveria ter ido embora, me colocado à prova. Escolhi a Roma e devo dizer que mudar de país é sempre uma escolha corajosa, mesmo difícil. Mas eu aconselho agora aos jogadores ingleses: não devem ter medo, e logo descobrirão tantas coisas sobre eles que nunca teriam conhecido”, completou.

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