DOS BANLIEUS PARA O MUNDO - A FRANÇA ESTÁ NOS SUBÚRBIOS

Por @FilusLucas No Brasil, estamos acostumados a acompanhar histórias de meninos que saem de bairros pobres e transformam suas vidas através do esporte. É praticamente um padrão repetido anualmente em diversas localidades, enaltecidos a cada quatro anos na Copa do Mundo. O maior evento do futebol é uma reunião de culturas, costumes, estilos e personalidades […]

Por @FilusLucas

No Brasil, estamos acostumados a acompanhar histórias de meninos que saem de bairros pobres e transformam suas vidas através do esporte. É praticamente um padrão repetido anualmente em diversas localidades, enaltecidos a cada quatro anos na Copa do Mundo. O maior evento do futebol é uma reunião de culturas, costumes, estilos e personalidades – dentro e fora das quatro linhas. E essa riqueza social não se limita ao encontro entre Seleções, ocorrendo também dentro das mesmas.

É o caso dos comandados de Didier Deschamps, que no domingo vão enfrentar a Croácia na disputa pelo troféu Jules Rimet. Mas chegaremos lá daqui a pouco. Antes, um número impressionante: 50 jogadores presentes no torneio nasceram na França. São 21 dos convocados pelos finalistas e 29 espalhados por outros times; o segundo colocado no quesito é o Brasil, mas com apenas 28 no geral – 5 além dos selecionados por Tite.

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Se pegarmos dados coletados desde 2002, a soberania francesa cresce. São 216 representantes em Copas, considerando atletas e treinadores, novamente superando os brasileiros (148). Alemanha, Argentina, Inglaterra, Espanha, Coreia do Sul, Japão e México fecham a lista dos que passam de uma centena, mas todos com diferenças pequenas entre si.

Como, então, explicar esse predomínio? Um dos fatores traz aspectos geopolíticos à tona. No fim da Segunda Guerra Mundial, o país estava destruído e inúmeras medidas foram tomadas para recuperar um nível razoável de funcionamento. O governo começou a recrutar trabalhadores do sul e leste europeu e do norte da África. Nos anos 1960, nenhuma nação levou mais imigrantes do que a França.

A economia cresceu consideravelmente e uma inesperada escassez de mão de obra culminou em novas ondas de imigração. As principais fontes foram as colônias no oeste e a parte arábica da África, além do Caribe. A maioria dessas pessoas tomou residência em conjuntos habitacionais nas margens de grandes cidades. Enquanto isso, o esporte nacional vivia uma crise e o futebol não era motivo de orgulho. Entre 1960 e 74, Les Bleus não conseguiram se classificar para 3 Copas e 3 Eurocopas.

A Federação resolveu agir. Através de um sistema de categorias de base desenhado em acordo com clubes, o desenvolvimento de talentos melhorou e se acelerou. Em 1988, o centro de treinamento de Clairefontaine foi inaugurado e logo se tornou referência no continente. Na Copa de 1998, começaram a visualizar os resultados de um processo que englobou planejamento e nuances aleatórias. O país finalmente celebrou e, no momento, parecia ser um turning point para o multiculturalismo.

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Aquela equipe foi apelidada de ‘Black, Blanc, Beur (preto, branco, árabe)’, fazendo uma referência às diversas etnias e descendências da convocação de Aimé Jacquet. Nem todos exaltaram os feitos daquele conjunto. Jean-Marie Le Pen, político nacionalista, considerou “artificial” o fato de “trazerem esses jogadores de fora e batizá-los como a Seleção da França”. Ele certamente não estará na torcida pelos azuis no próximo domingo.

Vinte anos se passaram, a diversidade apenas aumentou e nessa Copa estamos assistindo mais uma prova do sucesso daqueles que normalmente seriam renegados por parte da sociedade. É o que nos leva para a capital. Cerca de 40% dos imigrantes residem na Grande Paris, a maioria especificamente nos Banlieues – traduzindo, subúrbios. São áreas com altos níveis de pobreza, crime e desemprego, gerando estigmas que poucos são capazes de se desprender. Uma coisa que nunca falta por ali, porém, é talento.

Desde cedo, a principal ocupação das crianças é a bola. Os clubes nessas localidades são criados como projetos sociais, trocando o caminho de muitos; do crime para o futebol. Os fundos municipais que bancam as construções não hesitam em disponibilizar uma infraestrutura de qualidade. É um contraste com o que se vê nas ruas e nos lares de quem ali pratica o esporte. A conta da população das beiradas da metrópole chega a casa dos 12 milhões, mais do que se encontra em todo o território croata.

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Acredita-se que Paris é a segunda cidade do mundo com o maior número de olheiros, perdendo apenas para São Paulo. Agremiações conhecidas da Ligue 1 marcam presença diariamente nas competições organizadas nos subúrbios, onde duelam os principais youth prospects da França. Antes mesmo de ganharem os holofotes da mídia, os garotos já estão acostumados a traçar objetivos gigantescos e carregam parâmetros pesados. Isso porque todos sabem do caminho que podem percorrer, deixando o ponto mais baixo em termos de qualidade de vida e alcançando o topo.

Do atual time nacional, 8 atletas foram criados nas supracitadas condições e localidades: Matuidi (Fontenay-sous-Bois), Kanté (Suresnes), N’Zonzi (La Garenne-Colombes), Mendy (Longjumeau), Areolá (7th arrondissement of Paris), Kimpembé (Beaumont-sur-Oise), Pogba (Lagny-Sur-Marne) e ele, Mbappé. A sensação da Copa pode ter pego muita gente de surpresa quando, após uma temporada como profissional, se transferiu para o PSG em um negócio assombroso.

Para aqueles que o conheciam das mal cuidadas ruas de Bondy, entretanto, o sucesso era questão de tempo. Jean-François Suner, diretor do clube local, resumiu sua primeira vista do atacante em três letras: “Wow”. Ele não precisava de mais nada para colocar o então menino no patamar de gigantes, comparando a sensação que teve com a de seus colegas quando viram Messi tocar na bola pela primeira vez. A narrativa, a mentalidade e o talento não são elementos somados aleatoriamente no desenvolvimento de uma dessas estrelas.

Mohamed Coulibaly, treinador no A.A.S Sarcelles, ressalta que o modelo enraizado nesses subúrbios preza por “atleticismo, energia, dinamismo, técnica e agressividade. O tipo de jogador que a Seleção procura”. É interessante que o maior expoente dessa trajetória seja também o mais novo. Mbappé, com 19 anos, demonstra em si a identidade dos Banlieues: desafiando estigmas e paradigmas, desestruturando a lógica social imposta em suas famílias e construindo a lógica esportiva através da dedicação.

Os subúrbios são costumeiramente relacionados a estereótipos negativos, pintando uma imagem de problemas e perigo. O time de futebol, caracterizado por um status amigável e carismático, é atualmente reverenciado pela população e carrega várias responsabilidades nas costas. Há a torcida dos nativos e a expectativa do resto do mundo, mas nada será maior do que a representatividade dos Banlieues. Apesar de sua qualidade extraordinária, poucos imaginavam que a foto de Kylian, um garoto do subúrbio e de descendência africana, estamparia um prédio no caminho de Bondy para Paris.

Bondy é a realidade que Mbappé representa

“Ville des Possibles”, diz a placa. Possibilidades geradas pelo esporte. Quem sabe a partir de domingo começam a retratar o rosto dos outros meninos, agora homens, dos Banlieues?

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