Entrevista com Orlando Ribeiro: base, futebol profissional, transição e evolução

São Paulo, Cotia, transição de jogadores, títulos na base, paciência, desapego ao saudosismo. Orlando Ribeiro, recentemente demitido do Tricolor Paulista, concede uma entrevista que explica o futebol de base brasileiro.

Se as coisas no futebol profissional são bastante voláteis, a situação nas divisões de base não é muito diferente. Entretanto, uma notícia pegou muita gente de surpresa quando a temporada acabou. Em fevereiro, o São Paulo Futebol Clube optou por demitir Orlando Ribeiro, treinador que estava no clube há 11 anos, com a justificativa de reformular a base.

A surpresa é justamente pelo fato de que Ribeiro fora um dos principais o responsáveis por criar as principais estrelas de Cotia nessa última década. Além, claro, de ter dirigido as equipes sub-15, sub-17 e sub-20 do Tricolor Paulista. Segundo o treinador, a ordem “veio de cima”.

É natural que a história de Orlando se entrelace com a do São Paulo devido ao longo período em que esteve a serviço do clube, mas é importante ressaltar que o treinador já estava na ativa antes de chegar ao CFA de Cotia, tendo passado pelas equipes sub-17 da Portuguesa e do Osasco Audax.

Reflexivo, Ribeiro, que agora anseia trabalhar no futebol profissional, concedeu uma longa entrevista onde detalhou a trajetória num dos maiores clubes do país, onde conquistara títulos e trabalhara com nomes do calibre de Lucas Moura, Lucas Fernandes, David Neres, Antony, Luan, Gabriel Sara, Morato, Tuta e Rodrigo Nestor, por exemplo. Além de elucidar como é a realidade e os processos do futebol de base, da transição aos conceitos táticos. Confira:

– No São Paulo, você começou como observador técnico, mas depois passou por todas as categorias do clube. Você considera que essa “escadinha” é primordial para o desenvolvimento do treinador?

“Eu acredito nisso. Você vai conhecendo as engrenagens e a partir do momento que você teve aquela vivência nas categorias você vai conhecendo suas dificuldades e os desdobramentos. Tem meninos no sub-12 que você tem que tratar de uma maneira, no sub-15 de outra maneira e aí no sub-20, o mesmo menino, você já tem que tratar ele de uma maneira diferente. Ele vai ter outra mentalidade, ele já vai ser um adolescente chegando na vida adulta. Consequentemente você consegue ir passando por essas situações que vai te dando uma experiência muito boa. A partir do momento que eu entrei no São Paulo, que é um clube que tem essa mentalidade, para mim foi muito importante. São poucos que conseguem isso, de começar bem como avaliador e chegar no sub-20. A ideia hoje é seguir no sub-20, mas já partir para o profissional, porque aí é outra esfera, outra engrenagem que a gente vai entrar e vivenciar. Eu sou um ex-atleta, joguei até os 37 anos e na maioria dos clubes que atuei eu acabei sendo capitão. Tenho que usar essa experiência que eu tive como atleta para que eu não fique somente com a referência [de treinador] de base. A maneira que trabalhamos na base é diferente do que trabalhamos no profissional”.

– A transição de um jogador da base para o profissional é o momento mais importante da carreira dos atletas, mas nem sempre os clubes fazem da maneira correta. Vários jogadores promissores ficaram pelo caminho por conta disso. Como é para você, um renomado treinador da base, esse momento?

“No sub-20 você tem duas dificuldades primordiais para o garoto. A primeira é quando ele chega no sub-20, porque ele provavelmente jogou contra garotos com um ou no máximo um ano e meio mais velhos do que ele, isso no sub-17. No Sub-20 ele já vai ter que disputar um campeonato com clubes disputando no último ano, e quem chega no último ano do sub-20 vai estar com três anos de diferença. Ele vai sentir o jogo. E depois ele tem a dificuldade da transição para o profissional. Na minha opinião, a transição para o profissional tem que ser no timing certo, porque se ele for para o profissional e ficar muito tempo apenas treinando, sem ser utilizado nos jogos, ele vai queimar etapas. Então se ele tiver idade para jogar no sub-20, o ideal é que ele esteja no profissional treinando e se não for utilizado [nos jogos] ele venha para o sub-20 para jogar. Essa transição vai fazendo com que ele se acostume com outro ambiente, com outras pessoas, com outras cobranças. No São Paulo tinha a dificuldade pela distância de Barra Funda e de Cotia, de distância física”.

– O quanto implica o físico no desempenho do atleta de futebol moderno? Isso é cada vez mais nítido até na base, certo?

“Quando a gente está na captação, na minha opinião, a parte de força e competitividade pura não deve ser levada em consideração para que se traga um menino para dentro do CT. Não precisa aprovar um menino que seja muito forte ou que seja muito competitivo, o ideal é que você tenha um menino que tenha qualidade técnica, uma certa inteligência para resolver os problemas do jogo. Ele pode até ser franzino, mas com o decorrer do processo, com metodologia e planejamento dentro das categorias, ele vai adquirindo a força. No começo, se você priorizar a força, a competitividade, ele vai levar vantagem, mas e os outros conceitos? É mais fácil você pôr a força do que a inteligência, uma técnica ou até tática”.

– Antes da pandemia já era comentado que o futebol profissional seria cada vez mais “jovem”. Entretanto, devido aos problemas financeiros ocasionados pela pandemia muitos clubes têm acelerado a transição desses jogadores. Como você enxerga isso?

“Eu acredito que essa situação de hoje de garotos de 15, 16 e 17 anos jogando no profissional é reflexo da pandemia. Eu acredito que quando superarmos essa pandemia ainda vai ter uma precocidade, mas não tanto [quanto agora]. Hoje está demais. Na minha opinião, de quem trabalhou 11 anos na base, é muito difícil manter no profissional esses garotos com 16 e 17 anos sendo protagonistas. Em algum momento eles vão oscilar, em algum momento eles vão sentir a dificuldade do jogo. Se estiver indo bem nessa idade, o clube não tem como segurar por mais de um ou dois anos. Ou será que não vai ter que ser vendido? Aí você vai ter que estar sempre formando meninos com 16 anos no profissional”.

– Uma das maiores pressões no futebol vem diretamente das arquibancadas, mesmo que atualmente elas estejam vazias. No Brasil, muitas vezes ela é extrapolada. Por que é tão importante o torcedor entender o processo de maturação dos jovens?

“A tendência é que o garoto tenha uma oscilação e a tendência é que a cobrança seja a mesma. ‘Ah, foi só chegar no profissional que não joga mais nada’. Não é, ele está vivendo o processo normal dele. A exigência para ele que é diferente. É muito difícil, é uma faca de dois gumes. Ele pode se destacar e nesse curto período já conseguir uma venda porque o clube está precisando. Ou nesse curto período que está se destacando e começar a oscilar, a cair um pouco o rendimento, ele já não serve mais. É muito perigoso. É um risco, que se puder, é melhor não ter”.  

– Brenner é um caso muito comum no futebol brasileiro, o da joia goleadora na base e que acaba encontrando alguns percalços no futebol profissional até se firmar. O centroavante viveu um grande momento contigo no sub-17. Como foi trabalhar com ele e posteriormente ver o desenrolar da carreira do garoto?

“Eu trabalhei pouco com ele no sub-17, nós trabalhamos seis meses e depois ele já foi para o profissional. No dia a dia foram seis meses com ele no sub-17 e depois ele voltou realmente para jogar a Taça BH nesse mesmo ano em que ele subiu. Chegou na segunda fase e foi muito bem, foi o artilheiro da Taça BH e ajudou no título, onde nós fomos bicampeões. Aí provou o quanto é importante a transição do menino. No caso dele, ele ainda voltou para o sub-17, mas no sub-20 ele já não voltou para jogar. Ele chegou para o Aspirantes com o Vizolli e depois foi emprestado para o Fluminense. Ele é um exemplo de transição. No último ano dele de sub-20 que ele se destacou no profissional. É um menino de muita qualidade técnica e inteligente dentro da área, um finalizador nato. Ele deixa o ambiente muito bom, todo mundo gosta do Brenner”.

– Um dos jogadores que mais suscitou curiosidade em Cotia e que atualmente faz parte dos planos de Hernan Crespo é o Rodrigo Nestor. Especialistas dizem que o meia só não explodiu antes por conta do físico. Como você o avalia? Nestor é um dos jogadores mais técnicos que já passaram pelo seu comando?

“O Rodrigo é um dos jogadores mais técnicos e inteligentes para jogar. Na base, o Rodrigo sempre jogou um ano acima da categoria e aí entra naquilo que nós falamos de que ele não jogava pela força, pela competitividade. Tinha isso, mas ele jogava principalmente pela técnica. Quando eles chegam no profissional a gente perde um pouco de contato, mas a gente imaginava que ele (Rodrigo Nestor) teria um pouco de dificuldade, porque ele é um dos meninos que é um pouco tardio, que vai evoluir fisicamente um pouco mais na frente, demora um pouco mais. Na base ele era um dos que se destacam pela presença, pela técnica, pela inteligência e agora chegando no profissional ele vai ter que cuidar da parte de maturação para suportar o jogo no profissional. É um menino de muita qualidade, que a gente torce para que dê tudo certo”.

– Um dos jogadores que mais impressionou nos últimos anos da base são-paulina foi Welington Damascena, lateral-direito, que está desde os 13 anos de idade no clube. Vocês possuem uma relação muito próxima, certo? O que você pode falar sobre ele e como você projeta o futuro desse promissor jogador?

“Eles têm que ter paciência quando chega no profissional, mas sem perder a motivação. O Welington é um caso que entra nessa situação. Tem que ter paciência porque a oportunidade dele vai aparecer, como já está acontecendo no profissional. O Welington, no sub-20, foi capitão por dois anos. É um menino de confiança, que eu vejo qualidade. É um lateral da seleção brasileira e que a pouco tempo também foi capitão da seleção brasileira. Ele está tendo tudo para ter a oportunidade no profissional. O comandante, o Crespo, sabe o momento certo. Em termos de qualidade e responsabilidade a gente sempre viu isso nele”.

– Um dos maiores objetivos do futebol de base é, obviamente, modelar e revelar jogadores capazes de abastecer a equipe principal. No entanto, instigar a competitividade é de suma importância para o psicológico dos atletas. Uma dessas maneiras é também formar equipes vencedoras na base, que são acostumadas a disputar jogos grandes. Você, que colecionou títulos e revelações, poderia explicar para os leitores como é aliar esses elementos?

“Nós tivemos a possibilidade de participar de oito títulos na base. O último foi a Copa São Paulo de 2019, onde o São Paulo não era campeão há 10 anos. De oito títulos, nós participamos de três vice-campeonatos e os três vices são importantíssimos, assim como os títulos. Desde o sub-15 se coloca para os meninos que eles vão ser formados para o profissional e que em todas as competições o clube é considerado favorito. Na base a gente já tem que ir moldando o menino para essa cobrança que eles vão ter no profissional. Nós não exigimos chegar na final, não fazemos um planejamento de ir somente à final, não é isso. A gente acaba chegando naturalmente e nesses jogos de finais eles (jogadores) amadurecem muito. Tanto quando ganha, tanto quando perde. É importante sim, a partir de uma certa categoria, ter várias competições e eles saberem que nós não estamos ali trabalhando eles somente para serem campeões para a formação, mas que é importante aquele título. Futuramente ele vai ser cobrado por títulos, senão nós estaríamos enganando-os falando que no São Paulo, ou em outro clube, não tem cobrança para título”.

– O Brasil sempre foi e deve continuar sendo um dos maiores celeiros do futebol. Entretanto, o tratamento que é dado ao futebol de base nem sempre é o ideal, seja por questões estruturais ou até por uma excessiva pressão sobre as crianças. Como é ser treinador de base nesse processo todo, que além de ensinar futebol, ele acaba tendo que ensinar sobre a vida para muitos desses meninos?

“A primeira situação difícil que eu encontrei foi o choque de geração. A minha base foi durante oito anos no Juventus-SP. De 1978 a 1986, o Juventus era uma das melhores bases que tinha. Juventus, Guarani e São Paulo eram equipes que se destacavam. Nós tínhamos muitas dificuldades estruturais em relação aos dias de hoje, então a gente acaba tendo um choque de geração. O que eu acabei fazendo para não ter muita dificuldade? Eu trabalhei no resultado do choque de geração. Eu não podia ficar saudosista. Eu não posso achar que o menino hoje não pode ter celular, morar num hotel ou não pode ter uma alimentação boa. Ele tem que ter tudo isso, porque as outras equipes vão tentar fazer isso que o São Paulo está fazendo. Já tem várias outras equipes que têm essa condição. Quem ganha é o futebol brasileiro, a gente tem que seguir a evolução. Não podemos ficar saudosistas”.

– Qual o sistema de jogo que você considera mais propício para a evolução tática dos atletas?

“O modelo 1-3-4-3. Por que eu o acho muito interessante na base? Porque é um modelo que exige muito dos garotos e exige muito da nossa preparação de treino. Por que ele exige muito? É um 3-4-3 numa linha alta, na pressão alta. É um modelo de muito risco. Se você tem muito risco no jogo, na minha opinião, não tem um modelo melhor para você trabalhar na base, já que na base você tem condições de ter um pouquinho mais de paciência no erro e a gente sempre tem que arriscar um pouco mais do que no profissional. Nós começamos a adotar esse sistema em 2016 no sub-17 e conseguimos resultados positivos dentro de campo e na formação. Isso na fase ofensiva. Um 3-4-3, na minha opinião, é o que encaixa melhor na base. E no momento defensivo, um 4-4-2, que também na base vai exigir bastante dos meninos muita concentração e cooperação, além de técnica e tática”.

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