Futebol em tempos de cólera
2020 é um lugar estranho. A pandemia dos estádios vazios. O afastamento das pessoas e o ódio crescente no discurso. Um pouco por todo o mundo medidas colocam em causa a nossa liberdade. Uma reflexão sobre o poder do futebol para mudar o mundo.
A bola já não rola rua abaixo como dantes. As crianças não correm pela rua e nem o senhor engravatado que passa, ao fim da tarde, saído do escritório, tem o pequeno prazer de segurar entre os pés um passe que se transviou. Agora nem ao domingo à tarde se vêem as pessoas a passar com o cachecol sobre os ombros, em direção ao estádio, não se ouve o rumor que vinha dali quando havia golo, nenhum carro a apitar nem nenhum bar cheio uma hora depois do jogo a festejar o que quer que seja, nem o facto de estarmos vivos.
2020 é um lugar estranho. A pandemia que nos encerra em casa na hora do futebol, vivendo-o apenas pelo ecrã de televisão, transforma-nos em elementos distantes das nossas próprias emoções. Mas não é a só a pandemia que nos afeta e nos transforma, nos obriga a repensar o nosso mundo e nos empurra para vielas onde a nossa liberdade está afetada. Em Portugal, milhares de jovens vão ficar sem competir nos escalões de formação até ordem contrária. As escolas estão abertas, mas a prática desportiva é considerada secundária. Dos 5 aos 18 anos, não há futebol (nem basquetebol, nem andebol, nem futsal, nem nada…) para ninguém.
Nas bancadas, mesmo vazias, não se deixa de separar a forma de ver o jogo. O “Cartão de Adepto” chegou para impor diferenças entre os adeptos, com setores das bancadas onde passou a ser obrigatória uma identificação para entrar. Adeptos de primeira e de segunda. Obrigação de registo. Algo que, mesmo no meio da ausência de público, se colocou em prática num jogo teste com público, a partida realizada entre Benfica e Standard de Liège, para a Liga Europa, o que mereceu essa mesma bancada vazia e um protesto generalizado pelos restantes setores abertos.
Quem acreditou que a pandemia nos obrigaria a mudar para melhor, terá que pensar de novo. Muitas lideranças por todo o mundo cometem atropelos às nossas liberdades e garantias constitucionais, aproveitando a Saúde para atacar em várias áreas. A pobreza, os problemas da educação, as carências sociais, continuam sem respostas. E, no entanto, esses líderes, que tantas vezes se aproveitaram da nossa paixão para, encenando a presença em palco com a camisola de um clube, conquistarem a nossa simpatia, agora usam esses mesmos palcos para nos dividir, para nos colocar uns contra os outros, para nos fazer duvidar não do alcance das suas medidas, mas da democracia em si. Um pouco por todo o mundo, querem terminar com a liberdade dos povos usando o próprio povo para isso.
Nas televisões, os discursos de ódio pegam fogo semanas após semana (e lembram-se de como alguns desses momentos foram e são utilizados para experimentar o ódio que se expande por todas as outras áreas da nossa sociedade?), os dirigentes parecem perdidos no agarrar-se aos seus pequenos poderes, os jogos são sempre um momento de dúvida (vai acontecer? quando vai acontecer?) pela pandemia, pelos estados de exceção, pela incapacidade de existir uma regra clara e aplicável, de forma justa e equilibrada, para todos.
O futebol segue sendo uma paixão, mesmo em tempos de cólera. O futebol segue sendo um escape, nos dias em que parece nada mais nos resta. Porque a bola ainda rola na nossa imaginação, lembrando-nos os dias bonitos em que fomos felizes e mais livres. O futebol continua a juntar-nos em volta daquilo em que acreditamos. Na necessidade de trabalharmos juntos, de cumprirmos as regras das disputas, de sermos leais na troca de argumentos, na defesa do talento. O futebol tem uma razão de existir. É no jogo que se ganha e que se perde. A vitória de quem assim o defende está na dignidade com que se apresenta para a disputa.
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