DOSSIÊ VADÃO
Por Camila Aveiro Lima Quando perguntado sobre como é o modelo de jogo da Seleção Brasileira a resposta de Vadão resumiu-se apenas aos números, os sistemas táticos. Alterar a distribuição do 1-4-3-3 para o 1-4-4-2 e ao recuperar a posse de bola jogar em 1-4-2-4, com ênfase nas dinâmicas de movimento da Marta, podendo jogar […]
Quando perguntado sobre como é o modelo de jogo da Seleção Brasileira a resposta de Vadão resumiu-se apenas aos números, os sistemas táticos. Alterar a distribuição do 1-4-3-3 para o 1-4-4-2 e ao recuperar a posse de bola jogar em 1-4-2-4, com ênfase nas dinâmicas de movimento da Marta, podendo jogar mais à frente ou mais recuada. Sistemas táticos em si não dizem muita coisa sobre o jogo por remeterem a distribuição espacial das jogadoras em campo (Guardiola chamo-os de números de telefone). O mais importante a observar é como acontecem os movimentos das meninas tanto de maneira individual quanto coletiva, pois o jogo é dinâmico o tempo todo. Logo, decidi ir mais além, busquei entender nossos mecanismos e os porquês de tantas críticas alegando baixo desempenho das nossas jogadoras e dos resultados ruins (são 9 derrotas consecutivas nos últimos 10 jogos).
Mas antes de começarmos, é importante citar uma frase que o Júlio Resende, ex-analista de desempenho da Seleção e atualmente no Santos, me disse uma vez: ‘’para se fazer uma análise é preciso ir nu, porque até mesmo o fato de não ter padrão já é um padrão’’. Então, vamos nos despir de qualquer pré-conceito e entender um pouquinho das ideias e dos comportamentos da Seleção Brasileira.
Os quatro momentos do jogo e as bolas paradas:
‘’Ataques ganham jogos, grandes defesas ganham campeonatos!’’ É uma frase habitual pra mim, porém parece ter algo errado com a Seleção, pois são 9 gols sofridos nos últimos 5 jogos (6 na She Believes Cup em três jogos e 3 nos dois amistosos antecedentes à Copa do Mundo). O que explica esse alto número de gols?
Nosso tipo de defesa se caracteriza como uma marcação de encaixes setorizados. É um tipo de marcação em que as jogadoras têm como principal referência as suas adversárias a priori em função da bola, mesmo que esta saia muito da sua zona de campo, gerando perseguições mais longas. O que isso quer dizer? Cada jogadora não acompanhará o mesmo adversário sempre, durante todo o jogo, mas sim aquele que ingressar em sua zona, pois de acordo com a ação ofensiva do adversário, seu alvo poderá ser trocado.
Não existe certo ou errado no futebol e nessa análise não há preferências. Porém, é importante salientar que o principal problema desse tipo de marcação, nas palavras de Eduardo Cecconi, analista de desempenho, é desestruturar a defesa. À medida que o treinador orienta seus jogadores a perseguir alvos fora de setor, ele permite que o próprio time se desorganize, por ser reativo (reage aos movimentos do adversário). E um oponente inteligente pode utilizar estes encaixes para, com movimentos sincronizados, abrir espaços atraindo marcadores para fora do setor e ocupando estas regiões com outros jogadores em projeção, identificando defensores com maior tendência a se distanciar das zonas importantes.
Esse tipo de estrutura defensiva é muito comum no futebol brasileiro, inclusive, com exemplos bem recentes como o Grêmio de Renato Gaúcho, campeão da Libertadores jogando desta forma. Assim como tudo na vida, futebol também é um jogo de escolhas e qualquer decisão terá suas vantagens e desvantagens.
Através do vídeo vamos conseguir visualizar os encaixes por setor que explicamos acima, o que gera uma constante quebra de linhas dentro do nosso sistema defensivo, onde os nossos adversários têm encontrado certos espaços.
A partir dessa visualização de como se comporta nossas meninas quando não temos a posse de bola, também foi possível observar erros de execução: má formação de encaixes (esse tipo de comportamento é chamado muitas vezes de ‘’dança de pares’’, logo é preciso que cada um saiba qual o seu ‘’par ideal’’ e o momento certo de ser apenas uma sobra. Quando não funciona, gera caos a quem precisa se defender); lentidão nas trocas de adversárias; falhas nas ações de coberturas, tomadas de decisão equivocadas, principalmente na última linha defensiva; e muito espaço entrelinhas, entre as jogadoras de uma mesma linha e nas costas das defensoras. Observem:
Um ponto positivo do Brasil é quando avança suas linhas de marcação para o campo adversário (ou seu próprio campo ofensivo). Um comportamento que corrobora com dados da She Believes Cup disponibilizados pelo Instat: fomos a segunda equipe, entre quatro, com mais sucesso nas ações de pressão no campo adversário e a segunda também em interceptações no mesmo setor. Informação que nos mostra que pressionar mais alto pode ser uma boa alternativa para recuperar a posse de bola e chegar mais rápido ao gol. O problema é quando essa pressão é vencida, como mostraremos abaixo:
Em resumo exercemos uma marcação com muita imposição física, mas com muitos erros de execução e muita oferta de espaços, principalmente quando nossas duas volantes saem do centro do campo para marcar no corredor lateral, deixando exposta a zona de funil (local em frente à grande área onde acontece o maior número de gols no futebol). Só na She Believes Cup sofremos 6 gols, onde 67% deles ocorreram pelo centro e 83% (5 de 6 gols) foram de dentro da grande área. Metade dos gols aconteceram quanto estávamos em organização defensiva e a outra metade em ações de contra-ataque adversário. Além disso, nos últimos 5 jogos dos 9 gols sofridos, 6 ocorreram no segundo tempo de partida (o que pode indicar fadiga das atletas, já que o modelo exige grandes deslocamentos e combates as adversárias o tempo inteiro), inclusive fomos a segunda equipe com maior índice de intensidade nesses combates durante a She Believes Cup.
‘’Números são para ler. Mas, acima de tudo, números são para se saber ler”. Frase do livro ‘’os números do jogo’’ e que exemplifica uma preocupação: adversários que consigam identificar nossos erros defensivos podem criar estratégias para atrair nossa marcação e encontrar espaços para avançar. Uma equipe com movimentações rápidas de jogadoras e da bola, poderá conseguir quebrar nossos encaixes (e a lentidão com que trocamos nossos ‘’pares’’) e dar trabalho às nossas goleiras ou até mesmo marcar gols. Se pressionar alto é um ponto positivo, resta ajustar movimentos para que quando essa pressão for vencida consigamos nos reestruturar, na tentativa de impedir o ataque adversário. Escolhas. O futebol é feito disso e a Seleção precisa ajustar alguns detalhes para conseguir um melhor equilíbrio.
É preciso ainda destacar uma jogadora que tem sido essencial nesse momento do jogo: Formiga.
Será a sétima Copa do Mundo, um feito nunca antes alcançado por qualquer jogador de futebol no planeta, e aos 41 anos Formiga ainda parece uma menina dentro de campo, inclusive segundo o Dr. Nemi Sabeh Júnior, que está desde 2009 na Seleção, em termos de condição física, ela possui números de uma atleta no auge de sua forma, podendo ser comparada a jogadoras de 22, 25 anos. Vigor físico somado a toda sua experiência parecem ser o casamento perfeito dentro da proposta de jogo escolhida por Vadão.
Embora nem toda transição seja um contra-ataque, é comum ouvimos nas transmissões, debates e afins as pessoas falarem em contra-ataque se referindo ao momento de recuperação da posse de bola. Essa transição pode procurar sair da zona de pressão (onde há maior número de jogadores rivais) para progredir no campo ou reorganizar a própria equipe, entrando em organização ofensiva, como também pode buscar verticalizar dentro dessa zona ou transferir a bola para outro espaço na tentativa de progredir com menos adversários. Há também treinadores que delimitam áreas para indicarem qual ação deverá ser priorizada. ‘’Se recuperamos em campo defensivo, vamos buscar sair da pressão, preferencialmente, a progredir. Do meio para frente, aí é hora de ir pra cima’’ sofrendo pressão ou não.” São exemplos do que podemos fazer com os poucos segundos após recuperamos a bola (na literatura é possível encontrar que o tempo máximo de uma transição vai de 6 a 10 segundos).
Nossa ideia é de sempre avançar, tentar aproveitar a bagunça defensiva do adversário para criar oportunidades de gol. Contudo, as execuções precisam de mais lapidação. Por vezes nos precipitamos para dar o passe para frente, mesmo quando essa não é a melhor opção (principalmente quando a defesa fecha linhas de passe), além dos erros no último terço de campo: o famoso ‘’último passe’’ pra deixar nossas atacantes na cara do gol. Individualidade também é um fator que se destaca nesse momento e temos jogadoras rápidas, habilidosas e que podem fazer a diferença no 1×1. Nessa perspectiva destaca-se ela, a rainha do futebol brasileiro, seis vezes melhor do mundo, Marta.
Velocidade, criatividade, drible (até mesmo com pouco espaço e muita marcação), ‘’passes chaves’’ (aquele passe que rompe linhas, que deixa a companheira em oportunidade de fazer gol), capacidade de acelerar as jogadas com apenas um toque na bola, direcionamento nos cruzamentos são algumas das características da nossa camisa 10 e que nos auxiliam tanto em transição quanto em organização ofensiva, nos gerando vantagem pela qualidade técnico-tática que ela possui.
Caracterizando esse momento podemos dizer que a ideia é executar o método de ataque rápido, que na definição do Eduardo Cecconi (de Vítor Frade na Periodização Tática) presente em nosso curso “pergunte ao jogo’’, significa que se busca a rápida criação de oportunidades de gol, seja a partir da roubada da bola – uma transição ofensiva, portanto – , como em organização, sendo mais objetivo e vertical, e sem supervalorizar a posse de bola. Respeita os mesmos fatores do contra-ataque, mas com o adversário organizado. Antes de ilustrar os comportamentos, vamos conhecer as zonas de campo, pois elas estão presentes nas explicações visuais.
Agora, acompanhe o vídeo:
Percebemos que o Brasil fica menos tempo com a posse de bola e busca sempre direcionar o passe para frente, principalmente aproveitando as atacantes nos corredores laterais (na She Believes Cup criamos 69 ações ofensivas pelos lados e apenas 18 por dentro), usando pouco a ”zona de criação” (a bola muitas vezes viaja da zona de iniciação para a de finalização), ou seja, quase não há construção mais elaborada no meio-campo (a característica do nosso jogar também contribui de certa forma para isso), mas os erros de execução na ideia continuam surgindo: forçamos um passe para frente, quando rodar a bola para posteriormente progredir poderia ser uma melhor opção; falta movimentação de quem está sem a bola e apoios a quem está com ela (portadora), além das distâncias entre os setores (defesa-meio-ataque) que coincidem com uma circulação mais lenta e muitos lançamentos, já que a prioridade é acelerar sempre que se pode. Nesse ponto faço uma ressalva: mesmo que a ideia seja ser vertical ou jogar para frente, há de se tentar buscar soluções para isso, sem alterar as características da equipe, porém buscando tomar melhores decisões para que o objetivo aconteça. Em momentos que conseguimos ter o mínimo de mobilidade e um pouco de aproximações conseguimos progredir para o campo adversário. E isso se traduz também nos números: precisamos de pouco tempo com a bolas nos pés e poucos passes para transformar ações em gol, segundo estatísticas da She Believes Cup. É preciso ter movimento.
Novamente, a individualidade chama atenção. Fomos a equipe que mais driblou na She Believes Cup, por exemplo. Comportamento estimulado em alguns treinos da Seleção, algo que não é apenas intuitivo das nossas meninas. No mesmo torneio, um outro dado interessante: segunda equipe com mais chutes, porém com a menor média de chances de gol. O que isso quer nos dizer? Embora com as dificuldades que encontramos, principalmente quando o adversário sobe suas linhas de marcação, ainda conseguimos criar. Mas são ações em que sua maioria não consegue ser eficientes e se oportunizarem em gols.
Por fim, durante a She Believes Cup também fomos a equipe que mais perdeu bola no próprio campo defensivo (Bia Z., Adriana e Formiga formaram o top3 da competição nesse quesito). É um dado a ser pensado, pois quanto mais próximos da nossa baliza perdemos a posse de bola mais próximo também estará o nosso adversário para nos atacar, por ter menos faixas de campo para progredir.
A maior dificuldade nesse processo é tentar entender o que é intuitivo da própria atleta e o que é estímulo de treinamento, mas conseguimos identificar dois pontos importantes nesse momento de jogo. Algumas individualidades mostram mais do que outras, até mesmo pela diferença de características entre as atletas e nesse ponto, Debinha, Adriana, Geyse e Formiga se destacam: estão sempre buscando pressionar a adversária em qualquer faixa de campo quando perdem a bola ou quando estão próximas à quem perdeu. Todas com uma característica em comum, a velocidade.
O outro ponto de destaque é que a pressão ‘’pós-perda’’ também é algo por estímulo e na mesma condição, seja quem perdeu a posse, seja quem está próximo a ela, e principalmente quem está à frente da linha da bola. Vadão, inclusive, durante alguns jogos insiste verbalmente para que essa pressão ocorra. Além da pressão, um comportamento observado principalmente na última linha é o de recomposição (voltar para sua zona, se equilibrar para poder combater o adversário), mas não são coisas distintas e os comportamentos acontecem em simultaneidade.
Como observamos nos momentos de organização defensiva a quebra da pressão é o que preocupa, porque nem sempre conseguimos nos equilibrar oferecendo tempo e espaço para que nossas rivais consigam nos atacar.
Nesse contexto destacamos uma atleta: Andressa Alves. É possível dizer que em termos de posição foi a atleta mais testada por Vadão, jogando em três (volante, lateral, atacante) e por isso fui buscar um pouco além e também analisei Andressa no Barcelona, seu atual clube, a fim de entender se ela era tão versátil quanto Vadão fazia parecer. Vejam:
Ao longo desse dossiê, mostramos que a jogadora tinha dificuldade principalmente em recomposição de linhas defensivas, especialmente quando atuou de volante e lateral esquerda, além dos confrontos de 1×1. Debilidades defensivas que foram detectadas por Emily Lima em sua passagem com a camisa verde e amarela. Correlacionando com o vídeo em seus momentos pelo clube é possível perceber que ela joga em faixas de campo mais à frente, atacando espaços livres em velocidade para receber a bola; é pouco associativa, mas quando precisa ser está sempre mais próxima do último terço, longe das zonas de iniciação e criação. É veloz, com boa capacidade de finalização e tem boa média de assistências pelo Barcelona, principalmente quando atua pelos lados do campo.
Logo, ter Andressa Alves longe de onde mais atua e distante de suas características técnico-tática não parece ser a melhor opção nem para a atleta nem para o coletivo da Seleção, mesmo que em algum momento da carreira ela tenha atuado como lateral.
Alguns dados apresentados por Eduardo Cecconi no nosso curso PERGUNTE AO JOGO:
- O professor Jorge Castelo, entre 25 e 50% das situações de finalização e de criação das situações de finalização são originadas a partir de soluções táticas de bola parada.
- Os professores Mário Bonfanti e Angelo Pereni, autores do livro Fútbol a Balón Parado, também levantaram um número próximo a 50%.
- Outros estudos chegaram a marcas semelhantes apontam para 47% o número de gols resultantes de bola parada.
Começamos pelo ataque, desta vez:
É possível encontrar algumas similaridades quanto à presença de jogadoras na área (é possível ouvir Vadão pedindo para que ‘’se ataque a bola’’), seus movimentos e quem está na sobra (uma atacante e uma volante, por vezes) e isso é interessante sobre o aspecto da finalização: Adriana, Andressa Alves e Thaisa são jogadoras que finalizam bem de fora da área. Marta também seria uma opção, mas por qualidade técnica e característica ela e Andressa Alves são as mais responsáveis por executar as cobranças. Debinha, que não é alta, correndo por fora e se apresentando para uma possível cobrança curta nos oferta um pouco de variação.
Defensivamente nos organizamos de maneira mista, ou seja, com alguns jogadores respeitando a referência por zona (um espaço específico), e outros as referências individualizadas (os encaixes), na mesma ação. A predominância é de se ter muito mais jogadoras coladas nas adversárias do que marcando o espaço em si. Outro ponto a ser dito são as ações de bloqueio, muito comum no basquete. São ações individuais, porém com o objetivo de interromper a progressão do adversário a priori de apenas acompanha-lo. Confira:
Analisando nossa Seleção por quase um mês é possível concluir que utilizamos um modelo de jogo mais simplório quando comparado a outros, porém não há problema nisso. O que preocupa é que mesmo inserido em um contexto ‘’mais fácil’’ as atletas sofrem para executa-lo. São erros que se repetem jogo após jogo e que explica porquê levamos mais gols do que fazemos e/ou porquê algumas jogadoras não conseguem render tanto quanto o esperado. Temos 15 dias de preparação, em Portugal, para o pontapé inicial no dia 9 de junho contra a Jamaica. Precisamos ajustar os pontos negativos, principalmente aqueles enxergados por nossos adversários, valorizar o que se tem feito de positivo dentro da proposta de jogo que se deseja jogar e buscar evolução. E essa é sem dúvida a palavra que resume esse dossiê, mas de maneira negativa, pois o que senti foi a falta dela. Repetimos os mesmos erros, tomamos as mesmas decisões erradas, uma cadeia interligada e que nos custou um desempenho abaixo do esperado e o acumulo de derrotas. E, segundo Tite, desempenho é algo que uma comissão pode controlar. É o que falta na Seleção.
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