Transformação com simplicidade: o Everton de Carlo Ancelotti
O italiano chegou no Goodison Park com ares de desconfiança, mas rapidamente elevou o nível de um time que precisava reagir
Após a saída de David Moyes, que ficou 12 anos no clube antes de assumir a bomba-relógio do Manchester United em 2013, o Everton entrou em um processo de ‘reeducação’. Similar ao ocorrido com os red devils, era hora de tentar entender como fazer futebol sem uma figura que definisse tantos aspectos por si. E as escolhas equivocadas eram inevitáveis no meio do caminho.
A primeira intenção era de praticar um jogo voltado para o domínio com a posse e postura ofensiva; Roberto Martinez e Ronald Koeman aplicaram alguns conceitos interessantes, mas o ‘próximo passo’ não foi atingido. Amargando a zona de rebaixamento, o holandês foi demitido na nona rodada de 17/18. Então chega Sam Allardyce para, como de costume, apagar incêndios, ignorar qualquer necessidade estética e focar em trazer resultados imediatos.
Com sucesso: tirou o time da degola e terminou a campanha na oitava colocação. Mas, claro, não era o suficiente para uma instituição confusa sobre sua identidade. Os torcedores não gostavam do estilo mais rústico do treinador e o clima acabou gerando uma nova dispensa. E uma nova busca pela tão sonhada identidade. Marco Silva, de ótimo trabalho com o Hull City e outro marcado por desgaste no Watford, desembarcou no Goodison Park.
Em um ano e meio, acabou demonstrando uma semelhança – em sensação – com os dois escolhidos iniciais para construir essa filosofia. Certamente apresentou fatores positivos e ao fim de 18/19 a perspectiva era de relativa empolgação. No fim das contas, porém, os problemas apareceram nas mesmas medidas e, com 24 vitórias e 24 derrotas, também fez suas malas e foi embora. E, a partir das quatro partidas de Duncan Ferguson como interno, chegamos no estágio atual.
Isso porque o escocês de certa forma preparou o elenco para o modus operandi que chegaria depois: o uso do 4-4-2, com instruções simplificadas e concentradas nos pontos fortes dos jogadores, além do desenvolvimento do psicológico. Isso já soa meio Carlo Ancelotti, né? O italiano, vindo de anos pouco animadores por Bayern e Napoli, voltou para a Premier League e está nos lembrando de sua inegável qualidade.
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Identificando a formação que marcou seu início de carreira, na função de assistente de Arrigo Sacchi e posteriormente comandando Reggiana e Parma, como a que mais se encaixava, transformou o ânimo no lado azul de Liverpool. Não é coincidência que uma figura desassociada a um padrão específico de jogo tenha se tornado no equilíbrio entre Martinez, Koeman, Silva e Allardyce.
“Existem alguns treinadores que organizam os times para si, não para os jogadores, para então as pessoas falarem “olha como ele organiza bem o time”. Um time com uma identidade clara é limitado. Significa que ele só consegue jogar de uma forma. Mas você precisa escolher o estilo correto considerando a qualidade e as fraquezas do oponente e a tradição do seu clube”, palavras de Carlo.
Como joga o Everton de Ancelotti?
Todos os setores são importantes, mas não há nenhuma vontade expressiva de utilizar em grande escala as áreas em que os toffees são frágeis. A busca é por uma consciência das vantagens e limitações, aproveitando os pontos fortes e minimizando o impacto dos fracos. Assim, por exemplo, o Everton praticamente não constrói utilizando o meio-campo, onde a progressão é debilitada – seja com Schneiderlin ou Davies. Sigurdsson é quem dá um toque mais cerebral por ali, mas seu papel é mais pontual do que de participação constante.
“Nós queremos construir de trás, mas quando você tem a possibilidade de lançar pra frente, deve lançar pra frente. Rapidamente. Se você está tocando a bola lentamente atrás, tem menos possibilidade de encontrar espaço no campo adversário.”
São duas maneiras principais de chegar ao ataque. Uma é com a técnica, condução e passes acima da média de Digne pelo lado esquerdo, e outra nos pivôs de Calvert-Lewin – que é também o artilheiro do time e vem se destacando por finalmente estar sendo usado de acordo com suas características. Com 1,87m de altura, é uma referência que casa com os movimentos de Richarlison, uma daquelas peças que não podemos definir como ponta ou centroavante.
É um segundo atacante e por ali, pegando as sobras e partindo pra cima das defesas, rende o seu melhor. Com 31 chances criadas, 34 passes chave, 12 gols e 34 chutes ao alvo, é a principal força criativa do grupo. Enquanto isso, um entre Bernard e Iwobi acaba sendo o articulador, responsável por receber a bola nas entrelinhas (partindo da ponta para o meio) e encontrando os passes que condicionam os ataques para os momentos incisivos.
Na direita, a conhecida velocidade de Walcott gera situações indesejadas para os marcadores e, direta e indiretamente, contribui para a equipe se manter perto do gol. É comum ver Sidibé subindo ‘como quem não quer nada’ e, explorando esse tempo-espaço que sobra, cruzando para a área – onde Calvert-Lewin costuma estar bem posicionado para concluir. E é com o camisa 9 que a fase defensiva começa.
Seu discernimento sem bola é ótimo e ele define a postura na marcação, baseada em um 4-4-2 que faz essa pressão inicial e depois retrai as linhas em um bloco médio. O que vimos acontecer muitas vezes é a agressividade pra cima do goleiro causando um lançamento ou chutão pra frente, criando o cenário em que Mina é dominante. O ex-Palmeiras se impõe nos duelos aéreos e tem a cobertura cada vez mais confiável de Holgate.
O zagueiro de 23 anos se posiciona com inteligência e chama atenção pelo timing de suas intervenções, fator decisivo para quem é o último homem antes do goleiro. E eles trabalham bastante, visto que, como citei acima, o meio-campo é o setor de menor participação em todas as fases do jogo. Digne acumula performances sólidas também na marcação, encostando no adversário e confiando em sua agilidade para não ser ultrapassado.
Sidibé é inconsistente e pode decepcionar em momentos cruciais, mas ao menos contribui com desarmes importantes e uma combatividade notável. Debaixo das traves está outro jogador de temporada instável, Jordan Pickford. O titular da Inglaterra não convence há um bom tempo e, se ocasionalmente opera milagres, deixa passar finalizações simples com mais frequência do que deveria.
A ver se Ancelotti conseguirá recuperar esse caso preocupante como fez com o resto do time. Seguindo essas instruções claras e sabendo se adaptar às circunstâncias dos confrontos, esse é um Everton superior aos anteriores em ímpeto, organização e consciência. E desempenho. Mesmo que os últimos resultados antes da paralisação não tenham sido agradáveis: derrotas para Chelsea e Arsenal (fora) e empate contra o Manchester United (casa).
A sequência, de fato, não era das mais simples. Mas a expectativa é que sirva de aprendizado e a equipe consiga repetir diante dos grandes o nível demonstrado nos jogos frente ao ‘resto’. Precisa também de investimento e, sobretudo, inteligência no mercado. A alta rotação nas recentes temporadas criou um plantel desequilibrado. Mas o processo que esse treinador histórico está tentando aplicar em uma instituição que não vê a hora de subir de patamar é das narrativas mais interessantes do futebol inglês no momento.
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