Os métodos de sucesso nas categorias de base da Itália
Os processos que fizeram clubes como Atalanta, Milan e Roma terem sucesso com seus jogadores na transição da base para o profissional
O desempenho de alguns jogadores em outros clubes naturalmente faz crescer a pergunta: onde foi que o clube formador errou? Essa pergunta acabou sendo feita na Itália após o grande desempenho de Kulusevski pelo Tottenham na partida contra o Manchester City, após ser tido como “descartável” pela Juventus, que outrora já havia pago €40 milhões a Atalanta por ele.
Os métodos — como, quando, quanto — segundo os quais um jovem jogador é considerado pronto para estrear no time principal, bem como para permanecer lá, dependem muito da maneira como ele trabalhou e continua trabalhando seu talento, na capacidade de construir um profissional capaz de reagir positivamente aos estímulos e desafios que o campo lhe oferece quase diariamente, nos treinos e nas partidas, na consistência dos métodos de treinamento ao longo do caminho da base para o profissionalismo.
Um caminho que poucos conseguem seguir até o fim. É uma questão de campo, claro, mas também do que se define genericamente como personalidade, que é a resposta mais ou menos imediata que o indivíduo fornece do ponto de vista psicológico durante a transição da dimensão lúdica para a mais competitiva e seletiva do jogo.
A comparação com Kulusevski nasce do fato de que o sueco veio do setor juvenil da Atalanta, e por lá, antes de rumar para o empréstimo no Parma, em que começou a brilhar na Serie A, foi o melhor jogador do título nerazzurro no campeonato Primavera de 2018-19, em um clube que construiu seu modelo de negócio na pesquisa e desenvolvimento de talentos, tornando-se a pedra angular de um projeto técnico de credibilidade, sustentável e competitivo, apesar da necessidade de operar constantemente em regime de negociação, o que faz até com que o time aposte menos na base pra si.
De acordo com um relatório do CIES de outubro de 2021, o time de Bergamo é o terceiro time italiano, os outros dois são Inter e Roma, presentes na lista de clubes europeus que contribuíram para formar o maior número de jogadores atualmente nos 31 campeonatos da primeira divisão da Uefa; até hoje, 22 jogadores deixaram o CT de Zingonia para conquistar a Itália e a Europa.
O projeto é moldado de acordo com o que o falecido Mino Favini, ex-jogador da Atalanta, definiu à revista Undici em 2015 como uma espécie de filosofia contracultural no panorama italiano: “Não criamos fenômenos porque os fenômenos não são criados. Formamos bons jogadores. A maior satisfação é quando me dizem que um dos nossos meninos que saiu para jogar por empréstimo comporta-se bem, tem boa vontade e dedicação”, completou.
É um modus operandi baseado no conceito do jogador feito em casa, e que desempenhou um papel fundamental para transformar a Atalanta em uma das melhores realidades do futebol italiano, além de ser o vencedor de dois prêmios consecutivos (2019 e 2020) como “Melhor Clube do Ano” na Gran Galà del Calcio, a competição anual prêmio da Associação Italiana de Futebolistas concedido através dos votos de treinadores, árbitros, jornalistas, e dos próprios jogadores.
Como mencionado, é uma espécie de processo de contracultura: se normalmente estamos acostumados com as equipes que compram o “próximo grande” de amanhã entre 15 e 17 anos por causa da superioridade técnica e atlética em relação à mesma idade, na Atalanta isso funciona de maneira distinta.
Na Dea, isso é raciocinado de acordo com o princípio de que essa superioridade não deve ser comprada no mercado, mas sim descoberta e construída de tempos em tempos, acompanhando o menino para descobrir sua própria dimensão individual e coletiva.
Em suma, partimos do que Favini identificou como “atitudes inatas” e continuamos a consolidar essas atitudes dentro de um sistema para o qual os graus de separação entre “fenômeno geracional potencial” e “jogador normal” não são tão relevantes na determinação das chances de conseguir jogar como protagonista na Serie A ou na Champions League desde o início.
Assim se constrói um caminho que, conseguindo respeitar a singularidade técnica, psicológica e estrutural de cada criança, é comum e padronizado no que diz respeito à partilha da mentalidade e valores do clube, a aceitação de um método de trabalho que conduza resultados em termos de crescimento humano e profissional.
Tudo isso é feito e, portanto, acontece independentemente do resultado final, a circunstância pela qual um jogador que foi treinado na Atalanta realmente consegue jogar pela Atalanta. Desta forma, inevitavelmente, acabamos também por criar uma profunda ligação cultural e identitária.
O texto que citamos de referência, o “Como são construídas as melhores categorias de base da Itália”, da revista Undici, cita que em novembro de 2016, em um confronto sub-21 de Itália e Dinamarca disputado em Bérgamo, a Curva Pisani do então “Atleti Azzurri d ‘Itália”, exibiu uma faixa dedicada a Alberto Grassi, Mattia Caldara, Andrea Conti e Andrea Petagna. Os torcedores atalantinos os definiram como os “filhos de Zingonia” e acrescentaram que eles eram “o orgulho de uma cidade inteira”.
O funcionamento da base da Dea, de fato, constituiu e ainda constitui a referência no futebol de base, e sua transformação fica evidente no planejamento de médio-longo prazo, nos investimentos, na narrativa que prevê o retorno da primazia do treinamento sobre a vitória de torneios e campeonatos:
“Para uma criança é claro que existem pressões externas que condicionam, portanto o objetivo de quem trabalha no setor é justamente permitir que esses jovens cresçam pacificamente e se divirtam. Somos um dos poucos clubes a ter todas as equipes juvenis em um centro esportivo. No Milan, preferimos trazer mais jogadores para o time principal do que ganhar um troféu”. Essas palavras foram ditas por Angelo Carbone, que comanda a base rossonera desde 2019, em entrevista à Sky em maio do ano passado.
São conceitos significativos, sobretudo numa época em que a base milanista teve um papel decisivo no relançamento das ambições do clube, graças aos jogadores lançados ao futebol de elite, com jogadores como Donnarumma, Calabria e Locatelli no passado recente, e para alguns escalados por Pioli, nesta temporada com destaque para Christian Maldini e Gabbia.
As palavras do diretor milanista trouxeram de volta ao centro do debate a relação entre os resultados obtidos pelos viveiros e o nível geral dos jogadores que saem dessas categorias, sem a necessidade de tudo girar a partir da escolha entre o sucesso de hoje e a construção de melhores jogadores para amanhã.
Em entrevista ao Corriere dello Sport em dezembro passado, Vincenzo Vergine, chefe do setor juvenil da Roma desde julho de 2021, disse que o verdadeiro grande indicador para avaliar o trabalho de uma base “são os jogadores que se prestam regularmente ao time principal” e isso só pode acontecer se a formação é acompanhada de uma convivência inicial com a pressão dos objetivos a serem alcançados.
“O resultado é sempre importante”, acrescentou Vergine. “Mas pode ser uma ferramenta de treinamento ou se tornar seu objetivo. Para criar o jogador de futebol de alto nível, o resultado deve ser uma ferramenta para formar a mentalidade vencedora do menino. Porque aos 19 você será capaz de superar pressões e tensões importantes. Jogar para ganhar não é como jogar para não perder”, completou ao jornal.
Deste ponto de vista, a Roma é um dos clubes que melhor atua em Itália, com 24 jogadores surgidos de sua base, segundo o referido relatório do CIES, apenas dois a menos que a Inter, apesar das dificuldades estruturais de um campeonato Primavera que, segundo ao que José Mourinho disse, “é de um nível baixo, o que não o prepara para entrar na Serie A”, um conceito que acaba explicando porque alguns apostam tão pouco na base.
O trabalho dos giallorossi é historicamente difundido no território romano, que também se concentra no sentimento de pertencimento e no que o nome e a marca Roma significam para as novas gerações de torcedores primeiro e depois para os jogadores iniciantes, mesmo que seja perpetuar a idolatria que pertence aos vários Totti, De Rossi, Giannini, Bruno Conti, Di Bartolomei, pratas da casa em uma cidade onde ser assim é mais difícil do que em qualquer outro lugar.
Esta visão romântica e emocional encontra a sua necessária concretização nos investimentos nas estruturas e profissionalismo indispensáveis à criação daquilo que Tiago Pinto, diretor-esportivo da Roma definiu “a visão ambiciosa da sociedade no que respeita ao caminho do crescimento dentro e fora do campo das nossas crianças: uma visão que considera essencial recriar uma forte identidade dentro da base”. É como se Tiago Pinto dissesse: romanos, jogadores da Roma e jogadores de futebol, que foram treinados em Roma e que vão jogar pela Roma. Se isso acontece imediatamente ou mais tarde em sua carreira também depende deles, e os processos diferentes interferem nisso.
O lateral milanista Davide Calabria, em entrevista à revista Undici, explicou que “muitos jovens acham difícil enfrentar as pressões e superá-las. Por exemplo, não é legal ser insultado em uma partida, e não é fácil jogar em um estádio como o San Siro. Você tem que ter um temperamento muito forte, porque senão isso te mata. E então você é forçado a sair. Só quem consegue manter um nível muito alto pode permanecer em uma equipe como o Milan, de fato, você deve continuar crescendo”, completou.
Essas palavras destacam como os jogadores de futebol, especialmente no início de sua carreira profissional, sentem a pressão de ter que demonstrar constantemente que não são tão jovens, apesar de serem tão fisicamente, na idade, às vezes até na abordagem mental do jogo, o que demonstra o quanto os clubes devem ter cuidado nesse quesito, e é o que pode diferenciar as boas práticas de uma categoria de base.
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