Rentistas e o conto de fadas uruguaio

De um acesso dramático em 2019 para o primeiro título da história na elite em 2020, o clube de Montevidéu surpreende e faz sua pequena torcida sonhar com mais

Times recém-promovidos brigarem por taças em um campeonato nacional é raridade onde quer que seja. Se disputar título já é um feito e tanto logo no ano subsequente ao acesso, o que dizer, então, sobre conquistá-lo? Bem, o modesto Rentistas pode encher o peito e gritar aos quatro ventos que, sim, esta façanha é parte da história do clube.

Nesta última semana, os Bichos Colorados bateram o todo poderoso Nacional em um jogo dramático, decidido apenas na prorrogação, para conquistar o Torneo Apertura e o primeiro troféu da instituição na elite do futebol uruguaio. Por óbvio, a surpresa pelo título ser garantido por uma equipe que há quatro anos figurava nas divisões inferiores é o elemento que salta aos olhos. Entretanto, observando mais de perto, fica claro que o Rentistas obteve um rendimento incontestável que o credenciou a esta briga.

Os números gerais são apenas a ponta do iceberg para compreender a caminhada dos comandados de Alejandro Capuccio. Ao longo do Apertura, além das 7 vitórias, 7 empates e somente 1 derrota, ainda tiveram a melhor defesa ao lado do Peñarol (15 gols sofridos) e o 2º melhor ataque (26 gols marcados). Mas para explicar como isso foi possível, é necessário ir mais a fundo no modelo de jogo e nas principais valências que potencializaram tal desempenho.

O incentivo à solução individual

Desde o início, as intenções do Rentistas para agredir seus adversários estiveram claras. Com poucos jogadores capazes de sustentarem um jogo mais coletivo e de construção por baixo através da troca de passes – sejam eles curtos ou longos -, apostar na aptidão dos homens de frente para o drible e para o 1 contra 1 foi fundamental para o sucesso. E não poderia ter funcionado melhor.

Na primeira parte do Apertura, quem carregava o piano individualmente e incomodava as defesas rivais era o jovem atacante Cristian Olivera, de 18 anos. Porém, suas excelentes atuações logo chamaram a atenção do futebol europeu e acabou sendo contratado pelo Almería ainda no início do mês de setembro. A partida do grande referencial técnico tinha tudo para ser um baque nas pretensões do Rentistas e, principalmente, dentro do modelo de jogo, mas essa perda foi superada até com certa facilidade. Gonzalo Vega assumiu a responsabilidade em ser o escape do Bicho, dominando os marcadores pela extrema, e a ascensão dos jovens Salomón Rodríguez, Franco Pérez e Nahuel Acosta ajudou a compensar a ausência de Olivera, sobretudo saindo do banco de reservas.

Não por menos, o Rentistas acabou sendo o segundo time com mais tentativas de drible por 90 minutos no Apertura (33.4) e o antepenúltimo em passes por minuto de posse (11). Compreender esta tendência e potencializar situações para que os jogadores pudessem buscar a vitória pessoal foi, sem dúvidas, um dos grandes pontos para a arrancada da equipe de Capuccio.

Alta eficiência para botar a bola na rede

Estar entre os melhores ataques em números totais não significa, necessariamente, ter uma taxa de efetividade de topo. Muitas vezes, bons ataques em estatísticas surgem a partir de uma quantidade enorme de finalizações. Pegando um exemplo de uma das principais ligas do mundo, a Premier League. Na temporada 2019/2020, o Manchester City anotou 102 gols, enquanto o Liverpool anotou 85. Os 102 gols do City vieram em 700 finalizações ao longo do campeonato, o que leva a uma taxa de conversão de finalizações em gols de 14,5%. O Liverpool, por sua vez, marcou seus 85 gols em 559 finalizações, obtendo uma taxa de conversão de 15,2%. Ou seja, o City foi o melhor ataque no geral, mas não foi o mais efetivo.

Voltando ao Campeonato Uruguaio, como destacado anteriormente, o Rentistas teve o 2º melhor ataque geral, com 26 tentos. Até aí, nada de incomum. O que chama a atenção é o fato de terem atingido tal marca sendo uma das equipes que menos finalizaram neste Apertura. No total, foram somente 141 arremates (3º time que menos chutou) e na média por 90 minutos foram apenas 9.84 finalizações (1º que menos chutou na média).

Por outro lado, os índices de efetividade atingiram um nível altíssimo. O time foi o 2º no geral em percentual de chutes no alvo (39%) e a taxa de conversão de gols em relação às finalizações realizadas foi de 18,4%. Gonzalo Vega, além de criar individualmente, botou a bola na rede com constância, sendo o artilheiro do time no Apertura com 6 gols. Os atacantes Cristian Olivera, Renato César e Salomón Rodríguez, e o meia Maximiliano Lemos também contribuíram bastante para isso, com 3 gols cada um. As assistências do meia Matías Abisab e do lateral Robert Ergas tiveram papel importante nesta explosão ofensiva. Juntos, somaram 9 passes para gol e colaboraram com qualidade.

Vale frisar ainda o domínio aéreo do Rentistas nesta produção no ataque. Dos 26 gols marcados, 8 foram de cabeça. E destes 8 gols, 7 jogadores diferentes deixaram sua marca. Neste quesito, Cristian Olivera se sobressaiu por ser o único a marcar duas vezes, sendo destaque ao lado da dupla de zaga formada por Alexis Rolín e Maximiliano Falcon, com cada um anotando um gol.

Combatividade incessante e organização defensiva

O trabalho sem posse de bola do Bicho Colorado merece tanto reconhecimento quanto o desempenho ofensivo. A postura assumida de proteger a área com total intensidade e apostar na combatividade dos meio-campistas deu bom retorno, oferecendo segurança e tirando a pressão dos defensores centrais.

Marcando de maneira predominante no 4-1-4-1 com linhas médias ou baixas, o Rentistas estabelece um encaixe setorizado de muita organização e sabendo o momento certo de subir pra pressionar mais o início da construção oposta. O trio de meias formado por Ramiro Cristóbal, Carlos Villalba e Matías Abisab é chave para isto, sendo bastante ativos para encurtar os espaços dos rivais e buscar a dividida para evitar a evolução das jogadas. O três, inclusive, estão entre os 30 jogadores com mais duelos defensivos executados ao longo do Apertura, com uma marca superior a 100 duelos cada um.

Os zagueiros Falcón e Rolín, como último recurso defensivo da equipe, cumprem um bom papel. Sempre precisos nos combates e bem posicionados para executar os cortes, correm poucos riscos e costumam ser bastante limpos nas disputas pela bola. Incansáveis, perseguem seus adversários até os lances chegarem a uma conclusão, forçando o erro na maior parte das vezes e garantindo tranquilidade ao goleiro Yonatan Irrazábal.

A organização do Rentistas de Alejandro Capuccio no 4-1-4-1 em fase defensiva

A luta do Rentistas para manter o bom rendimento e evitar a “ressaca” pela conquista do Apertura precisa ser intensa. O primeiro passo para o sonho de levantar a taça do Campeonato Uruguaio foi dado. Pela frente, o Torneo Intermedio e o Clausura serão fundamentais para manter o time de Montevidéu bem posicionado na tabela anual. Claro, sustentar essa regularidade não será nada fácil. Além da possibilidade de perder peças do time, o técnico Alejandro Capuccio vem sendo cada vez mais valorizado entre os grandes, sobretudo pelo Nacional, que demitiu Gustavo Munúa após a derrota na final do Apertura e já está de olho em seus serviços.

Apesar de tudo, o clube tem garantido ao menos a semifinal contra o vencedor do Clausura e, mais adiante, terá a chance de brigar pela ida à final contra o líder da classificação geral ao fim do campeonato, neste infindável formulismo colocado em prática pela AUF. Se o conto de fadas terá final feliz para o Rentistas, saberemos em fevereiro de 2021.

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