A reestruturação da Seleção da Inglaterra e o futebol multicultural
Bebendo de fontes francesas, portuguesas, espanholas, alemãs e até chilenas; a Seleção da Inglaterra se molda a partir de um futebol multicultural
A Premier League é o campeonato mais cosmopolita do mundo. A cada ano que passa, se torna ainda mais plural. E isso começa a ter reflexos positivos na Seleção Inglesa. Dominado por jovens de diferentes origens e etnias, a Seleção da Inglaterra molda seu futuro a partir da onda de multiculturalidade que tomou conta da liga nacional. De jogadores a dirigentes, o futebol inglês ganhou muito com a influência dos estrangeiros e já produz, dentro de casa, os frutos disso.
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Se pegarmos como exemplos aqueles vídeos do campeonato inglês antes da reabertura para estrangeiros, a diferença fica cristalina. Prejudicados com o afastamento da Liga dos Campeões, os britânicos praticavam algo que parecia com futebol, difícil de ver. Corriam e lançavam. A ilha se tornou um corpo estranho no futebol europeu, que abraçava a modernidade da bola, com verdadeiras seleções multinacionais, como o Milan, o Real Madrid e o Barcelona dos anos 90.
Não foi por acaso que a Premier League assumiu esse posto de referência de futebol moderno e bem jogado. Foram anos das melhores mentes estrangeiras pensando o jogo em solo inglês. O francês Arsene Wenger trouxe o jogo pelo chão e acabou com ‘kick and rush’, naquele que era chamado de “boring Arsenal”, para fazer história e tornar o futebol do país menos “aéreo”. O português José Mourinho chegou com a periodização tática e fez do Chelsea uma potência. Uma década depois, o catalão Pep Guardiola e o alemão Jurgen Klopp polarizam a disputa com estilos marcantes de futebol. Hoje, a Premier League é o El Dorado do futebol.
Mas o que isso tem a ver com a Seleção da Inglaterra? Tudo. A multiculturalidade tirou os ingleses do prumo, no ótimo sentido. Desde as categorias de base, os clubes começaram a pensar o futebol com outra cabeça. E os jovens ingleses foram formados dentro deste ambiente. É o que acontece quando um clube como o Arsenal trouxe um menino ‘Cesc’ Fàbregas para suas academias.
Extraído da mais pura fonte de La Masia, do Barcelona, o meio-campista imprimiu sua marca à verticalidade do futebol inglês. Ditou o ritmo, fez valer suas qualidades e executou o jogo bretão ao seu modo. Não só uma revolução no modo como o Arsenal jogava, como uma evolução para os ingleses. Foi assim que os Gunners criaram um estilo próprio de jogo, importando jovens franceses, espanhóis, holandeses, que enriqueceram a cultura de futebol do time. E foi assim, de estrangeiro em estrangeiro, de evolução em evolução, que a Premier League chegou ao estágio atual.
Tomemos como exemplo a dupla que promete liderar a Inglaterra na próxima década. Crias das categorias de base do Manchester City, Phil Foden e Jadon Sancho não trazem nada do estereótipo clássico do jogo inglês. Mas têm o DNA típico da Premier League. Não é coincidência que o City tenha quase sete anos de uma filosofia propositiva de futebol. Antes de Guardiola, o clube já buscava um jogo mais propositivo com o chileno Manuel Pellegrini, que utilizava um 4-4-2 com muita circulação de bola e tendo Nasri como um ponta construtor, mais por dentro que o normal dos pontas ingleses à época.
Antes dele, a passagem para o jogo posicional ainda teve o italiano Roberto Mancini, que lançou mão de um trequartista à moda italiana. Foi assim que Yaya Tourè viveu a melhor fase de sua vida. Hoje, Guardiola pinta e borda no jogo posicional, com um 4-3-3 que ajudou a moldar o Barcelona moderno e faz história na Premier League.
No City desde os oito anos de idade, Phil Foden se formou bebendo da fonte de um italiano, de um chileno, de um espanhol, desenvolvendo um estilo próprio de jogo. Inglês dos subúrbios de Manchester, o meia tem uma alma espanhola ao tratar a bola. Chegou a atuar como ponta construtor na Inglaterra Sub-17 e exerce diferentes funções no meio-campo do City de Guardiola.
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Jadon Sancho é totalmente diferente. Se falássemos, há 15 anos, de um ponta inglês, driblador por natureza, mágico, soaria como um delírio. Mas ele existe, passou pelas categorias de base do Watford, do Manchester City e se tornou peça de exportação para brilhar na Bundesliga, com o Borussia Dortmund. Jadon Sancho é um inglês à brasileira: agudo, formado na periferia de Londres, muito ligado ao futebol de rua e ao freestyle. Em Dortmund, incorporou a filosofia alemã e enriqueceu ainda mais seu jogo. Deve voltar em breve à Inglaterra como uma super estrela no país.
Essa mesma filosofia é a que Jurgen Klopp aplica com tanto sucesso em seu Liverpool. Virtual campeão inglês em 2020, os Reds trazem um modelo de muita intensidade, fisicalidade e concentração. O sistema alemão do Gegenpressing é liderado por pilares multinacionais: o brasileiro Roberto Firmino, o holandês Georginio Wijnaldum e o inglês Trent Alexander-Arnold.
O trabalho dentro da Seleção da Inglaterra
Poderíamos ficar o dia inteiro trazendo diferentes exemplos da multiculturalidade da Premier League. Mas nada disso importaria para a seleção inglesa se ficasse restrito à liga. O pulo do gato foi a maneira como a Associação de Futebol da Inglaterra (FA) abraçou as mudanças para fortalecer o English Team.
O técnico, Gareth Southgate, trabalha desde 2013 com o desenvolvimento das categorias de base da Seleção. Ajudou na formação de jogadores como Fikayo Tomori, Dominic Calvert-Lewin e Ayodele Solanke. Após o título no Mundial Sub-20, em 2017, foi promovido para a equipe principal. Logo em sua primeira competição oficial, conduziu o time ao melhor resultado em uma Copa do Mundo desde 1990: parou nas semi-finais, contra a Croácia.
Mesmo com o trabalho iniciado no meio de um ciclo, a Inglaterra tem clara evolução sob seu comando. A seu modo, Southgate reúne as características para atender as demandas do futebol atual em um curto espaço de tempo. Dentro de campo, o que se vê também é uma seleção muito mais multicultural. E isso não se resume a etnia ou origem dos jogadores. É toda essa salada de estilos da Premier League vestindo a camisa dos Três Leões.
Essa evolução foi altamente estimulada pela FA, pelo Ministério do Esporte e pela Premier League com o o “Elite Player Performance Plan” (Plano de Performance de Elite do Jogador – EPPP). A iniciativa cuida da formação de jogadores e treinadores, trabalhando o lado técnico, a criatividade e o jogo coletivo. São contempladas as fases de iniciação (dos 9 aos 11 anos), de desenvolvimento jovem (dos 12 aos 16) e de desenvolvimento profissional (dos 17 aos 23). O curso de treinadores dura dois anos.
Um ponto importante da EPPP é que, por ela, os clubes não captam diretamente os jogadores antes dos 17 anos. Eles são repassados para as cidades próximas do nascimento do jogador. Dessa forma, o talento fica espalhado pelos clubes. O meia Jude Bellingham, próximo talento inglês, provavelmente não seria formado no Birmingham se a política da EPPP não existisse. Jude nasceu em uma cidade próxima, Stoudbridge, e chegou ao clube aos oito anos de idade.
Em linhas gerais, a Inglaterra viu o que aconteceu na Premier League, pegou seu caderno e anotou tudo. Aprendeu que o intercâmbio de ideias e culturas é positivo para um futebol mais plural e melhor jogado. Na próxima Copa do Mundo, a Seleção da Inglaterra deve ser representado por atletas com ascendência imigrante: Tomori, Tammy Abraham e Ross Barkley (Nigéria), Aaron Wan-Bissaka (Congo), Callum Hudson-Odoi (Gana). Também devem estar presentes jogadores criados nas zonas industriais inglesas, onde o futebol de rua é uma verdadeira paixão, como Trent Alexander-Arnold, Marcus Rashford, Declan Rice e Harry Kane.
Como resultado desta transformação, já vieram os títulos mundiais sub-17 e sub-20. O próximo objetivo é a Copa do Mundo. E essa pode ser a receita perfeita para reconquistar uma glória que não vem desde 1966.
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1 comentário
Interessante observar esse multiculturalismo, é o que observamos no Brasil e vemos muito na Seleção Francesa. Realmente o trabalho da Federação Inglesa teve um ótimo resultado no ponto de vista formativo e também de Desempenho.