A ascensão de Luke Shaw
Um dos melhores laterais da temporada europeia, o jogador do Manchester United foi de criticado para reverenciado e superou vários obstáculos no caminho
No texto anterior desta coluna, a pauta foi a recuperação do futebol de İlkay Gündoğan, do Manchester City. Ainda na metrópole inglesa, mas do lado vermelho, existe outro jogador que sofreu críticas pesadas e passou a ser extremamente valorizado; aparentemente, ‘de uma hora pra outra’. Mas esse crescimento se deu de que forma? Foi tão grandioso assim ou houve apenas uma mudança na percepção do público? A resposta, como na maioria das questões, provavelmente estará no meio termo. Vamos contextualizar.
Luke Shaw chegou ao Manchester United em junho de 2014, após duas excelentes temporadas vestindo a camisa do Southampton. No time do sul, que na época passou a se destacar pelo alto nível das categorias de base, fez sua estreia aos 16 anos e aos 17 assumiu a titularidade. Sob o comando de Nigel Adkins e depois Mauricio Pochettino, chamou a atenção pela qualidade e a consistência em uma idade tão baixa, jogando em uma liga exigente como a Premier League.
Foi eleito o melhor lateral esquerdo do campeonato em 13/14 e desembarcou no Old Trafford como o jovem mais caro do futebol, adquirido por 30 milhões de libras. Era uma visão praticamente consensual que sua contratação representava a resposta para os problemas dos Red Devils na posição, prejudicada com o declínio de Patrice Evra. Mas logo no primeiro mês surgiu um indício do que estava por vir.
Antes mesmo de estrear oficialmente, sofreu uma lesão no tornozelo e ficou de fora por algumas semanas. Depois, durante 14/15, dividiu seus minutos com Daley Blind e Marcos Rojo, peças versáteis que também conseguiam jogar por ali. A expectativa era de que o inglês assumisse de vez o seu lugar em 15/16, quando foi escalado em várias partidas consecutivas e agradou. Só que um acontecimento em Eindhoven mudou completamente o cenário.
Em um confronto com o PSV, pela Champions League, uma entrada dura de Hector Moreno resultou em uma fratura dupla na perna de Shaw. O momento foi tão delicado que ele precisou receber oxigênio ainda em campo e foi levado diretamente para o hospital. Em 2018, o próprio jogador falou sobre o ocorrido:
“Eu quase perdi a minha perna. E eu não sabia disso até o médico me contar seis meses depois. Estavam pensando em me enviar de volta (pra Manchester). Se eu voltasse, provavelmente perderia minha perna por causa do coágulo. Tenho duas cicatrizes na perna, onde eles tiveram que abrir para tirar o sangue.”
Obviamente, a recuperação durou muito tempo e ele só foi voltar aos gramados em julho do ano seguinte, 10 meses depois. Mas a condição física estava longe da ideal. Ele ganhou muito peso e perdeu as características corporais que tinha anteriormente, quando impressionava pela velocidade e agilidade. Teve bastante dificuldade para entrar no ritmo e acabou fazendo apenas 27 partidas (22 como titular) somando 16/17 com 17/18.
Nesses períodos, quando entrava não fazia atuações tão convincentes e, nos momentos em que conseguia dar sinais mais positivos, o fato do time estar instável também não ajudava. Somou-se isso ao contexto vivenciado com José Mourinho, que teve problemas constantes no trato com alguns atletas, e não fica difícil perceber os motivos por trás de sua queda. Fatores negativos se acumulando e a pressão psicológica que tanto faz diferença no desempenho e ainda não tem a devida atenção no futebol.
O técnico português não segurava as palavras em relação a Shaw, que posteriormente admitiu as dificuldades superadas naquele período. Após uma boa performance do lateral, Mou chegou a dizer que “estava tomando todas as decisões por ele na beira do gramado” e que ele “não poderia continuar jogando” com o cérebro do técnico. A antiga promessa parecia ter atingido um limite em Manchester e muitos acreditavam que só uma mudança de ares poderia revigorar sua carreira.
Essa mudança de ares veio a acontecer com a chegada de Ole Gunnar Solskjaer. A opinião sobre o trabalho do norueguês costuma ser polarizada e divide admiradores de críticos ferrenhos, mas as transformações realizadas no ambiente e no gerenciamento do elenco são indiscutíveis. O então interino engatou a missão de recuperar algumas peças que pareciam ‘perdidas’ (não eram poucas) e o lateral esquerdo ganhou um trato diferente e oportunidades frequentes.
A evolução foi gradativa e visivelmente ele vive seu melhor momento agora, mas desde 18/19 o desempenho foi positivo. Pode não ter agradado a todos e em certos pontos deixado dúvidas ou a sensação de “e se fosse outro por ali?”, certamente. Entretanto, foi eleito em três oportunidades o melhor jogador do mês da equipe e terminou a temporada recebendo o prêmio de melhor jogador do ano, o Player of the Season.
Levantou discussões sobre o merecimento do troféu, mas de fato esteve entre os mais consistentes e, em um time ainda em reconstrução, deu indicativos de que poderia fazer parte do futuro do clube. Algo que não passava na cabeça de ninguém antes da troca no comando. Em 19/20, então, uma subida mais considerável. Passou de apenas ‘consistente’ para peça importante de um conjunto mais qualificado e funcional.
Teve um início de campanha apenas ‘ok’, mas no retorno da parada da pandemia fez ótimas exibições em sequência e começou a conquistar o apreço de alguns torcedores que ainda não eram muito convencidos. Foi desfalque por lesão nas últimas partidas e voltou em cima da hora para o início da temporada atual, novamente mostrando problemas após uma estadia no departamento médico. Não era novidade e isso resultou em alguns jogos abaixo da média, com a novidade da sombra do recém-contratado Alex Telles.
Mesmo assim, teve a confiança de Solskjaer e começou a retribuí-la em meados de novembro, entregando performances melhores e deixando o brasileiro no banco de reservas com justiça. E a partir da virada do ano apresentou sua versão mais completa na carreira, contribuindo em todas as fases do jogo e sendo possivelmente o grande destaque da equipe em 2021 se considerarmos a queda recente de Bruno Fernandes.
É essencial para a saída de bola, passando segurança técnica em suas ações e raramente perdendo a posse. Ao lado de Maguire, se responsabiliza pela construção lá de trás e se destaca pelas diversas formas de fugir da pressão – um aspecto de grande valia no ritmo intenso da Premier League.
Tranquiliza o jogo com essa característica e potencializa a articulação ao ter qualidade em vários tipos de passe; o toque curto pra dentro ou pra fora, dificultando pra marcação, a diagonal pra quebrar as linhas e ativar o atacante ou o meia, etc. No campo ofensivo, desenvolveu um entrosamento visível com Marcus Rashford e é por ali que as melhores jogadas saem.
A movimentação – o ponto que ele mais evoluiu – impressiona, com sua capacidade de conduzir para o meio sendo um artifício para o United progredir e ganhar território. Voltou também a acertar cruzamentos como nos tempos de Southampton, inclusive registrando seis assistências na temporada. É o lateral com mais chances criadas na liga nacional e uma verdadeira força criativa do time, se destacando também com uma marcação extremamente sólida, crescendo em clássicos.
Dentro desse cenário, se fala incessantemente da importância da chegada de Alex Telles para o desenvolvimento de Shaw.
Em parte, um fator realmente relevante que pode ter feito o inglês aumentar a sua dedicação e o preparo de fato atingiu um novo patamar. Na vitória sobre o Manchester City, ele estava com dores até minutos antes do apito inicial e se esforçou para estar em campo. Sentiu no segundo tempo, mas quando viu o brasileiro pronto pra entrar fez o máximo pra continuar e até marcou gol. Internamente, também destacam uma mudança de mentalidade.
Mas não podemos bater de modo excessivo nessa tecla, pois a narrativa que se cria acaba basicamente tirando os méritos de quem está jogando em altíssimo nível e atribuindo um valor exagerado para um reserva. O ex-Porto tem suas qualidades e é considerado uma boa opção dentro do plantel, mas comparando o repertório que cada um apresentou conseguimos perceber que a razão de Luke ser titular absoluto é bem clara: superioridade na maior parte dos atributos e uma contribuição mais variada, confiável e consistente em todas as fases do jogo.
Após anos de sofrimento contínuo e contestações pesadas afetando o seu psicológico, a antiga promessa deu a volta por cima. E merece os créditos por isso.
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