AS IDEIAS DE VINÍCIUS MUNHOZ
Por Caio Alves Ao lado de Red Bull Brasil e Ituano, a Ferroviária foi uma das surpresas mais positivas do Campeonato Paulista 2019. Ainda assim, mesmo dividindo o posto com outras duas equipes do interior, a Locomotiva foi quem mais se destacou: em duelo contra o Corinthians pelas quartas de final, a equipe empatou os […]
Por Caio Alves
Ao lado de Red Bull Brasil e Ituano, a Ferroviária foi uma das surpresas mais positivas do Campeonato Paulista 2019. Ainda assim, mesmo dividindo o posto com outras duas equipes do interior, a Locomotiva foi quem mais se destacou: em duelo contra o Corinthians pelas quartas de final, a equipe empatou os dois jogos e, na própria Arena, levou a decisão para os pênaltis.
Apesar da equipe ter ficado marcada pelos resultados positivos e por quase eliminar o finalista da competição, foi o futebol propositivo que destacou o início de temporada do treinador Vinicius Munhoz.
Ex-preparador físico, Vinicius passou por Grêmio, Corinthians e Seleção Brasileira, sendo uma de suas mais duradouras e positivas experiências. Como treinador, posição na qual se vê hoje, passou por Inter de Santa Maria, Audax e Mirassol, mas foi na Ferroviária, especialmente em 2019, que Munhoz obteve o merecido e inesperado – ao menos por parte da grande mídia – destaque.
Chegando às quartas de final do estadual mais competitivo do país, a Locomotiva, através de um futebol associativo e organizado, apresentou uma das campanhas mais concretas do campeonato. Em resumo, especialmente se considerarmos os maiores adversários, a equipe de Munhoz empatou com Palmeiras e São Paulo, além de ter dominado o Corinthians dentro e fora de casa.
A consequência de tudo isso foi o início de um possível desmanche, começando com seus principais destaques. Até aqui, o goleiro Tadeu foi vendido ao Goiás, Léo Artur foi emprestado para o Fluminense, e Tony atuará pelo Figueirense a partir desta temporada.
Em conversa com o Footure, Vinicius Munhoz revelou suas maiores referências, valorizou o aspecto psicológico no esporte, analisou a atual fase das categorias de base do futebol brasileiro e exibe sua satisfação ao ser elogiado pelo melhor treinador do país:
Footure: Quais as suas referências no futebol?
Vinicius Munhoz: Tite, atual treinador da Seleção Brasileira, é uma referência profissional há bastante tempo. Fernando Diniz, pela proximidade das minhas ideias de jogo com as dele, e lançar, sobre o futebol, um olhar mais humano na relação com os atletas. E Tiago Nunes, pois o seu Athletico Paranaense joga o melhor futebol do Brasil atualmente.
Gosto de ver jogar as equipes do Maurizio Sarri (Chelsea), Jürgen Klopp (Liverpool), Mauricio Pochettino (Tottenham) e, claro, Pep Guardiola (Manchester City), por tudo o que representa, por influenciar toda uma geração de treinadores – onde me incluo –, além de 2 Copas do Mundo (2010 e 2014, com Espanha e Alemanha campeãs), onde percebemos a presença de suas ideias de jogo em ambas as seleções.
Você disse que a Ferroviária aposta no projeto a médio-longo prazo e se preocupa com o futuro. Quais as vantagens de trabalhar sabendo que há uma ideologia a ser implantada e um perfil a ser seguido?
Não sei se chega a ser uma ideologia a ser implantada, mas, sim, valorizar os meios que levam aos objetivos, dar valor ao processo, ver o todo, enxergar o resultado esportivo como parte importante do processo, identificar o caminho para chegar até ele e não o resultado sem a clareza de como se chega até ele. Penso que o que foi descrito acima é um diferencial importante da Ferroviária.
Outro ponto a ser destacado no clube é a preocupação com o perfil profissional para as diversas funções dentro da instituição e, assim, chegar aos objetivos traçados. A maioria dos profissionais contratados para posições consideradas estratégicas dentro do clube vem de um processo seletivo criterioso. Cito como exemplo a minha própria contratação, onde a mesma só foi efetivada após observações dos meus jogos na equipe anterior. Também passei por entrevistas e conversas com diferentes setores do clube (administrativo, direção e coordenação técnica das categorias de base), a fim de identificar se realmente ali estava o profissional capaz de atender as características elencadas pelo clube como fundamentais para exercer a função de treinador da equipe profissional.
Recentemente, você elogiou o aspecto psicológico e emocional dos jogadores – coincidentemente, nesse período, a sequência de resultados positivos foi invejável. Qual a importância que você dá para esse fator tão subestimado no meio esportivo?
Jogadores de futebol não se resumem a perna e chuteira (frase da minha esposa e psicóloga Fabiane Munhoz). Jogadores de futebol sentem, sofrem, têm expectativas sobre o próprio desempenho, sobre o desempenho da equipe, sobre a sequência da carreira… além disso, sofrem as mais diversas pressões, sejam elas da imprensa, família, amigos, da própria competição ou até mesmo dos empresários e dirigentes dos clubes.
Diante deste contexto, há, sim, de se ter a preocupação com os aspectos emocionais e psicológicos dos atletas. No caso especifico da Ferroviária, temos a Annie Kopanakis, nossa psicóloga, atuando diretamente com os atletas da categoria de base, equipe profissional e futebol feminino. O trabalho junto ao setor de psicologia do clube teve início em nossa participação na Copa Paulista de 2018 e tem, por objetivo, acompanhar os atletas ao longo do processo de aquisição de suas capacidades para o jogo e também durante a competição.
Além dos resultados positivos e classificação para as quartas de final do Campeonato Paulista, a Ferroviária joga um futebol interessante. Adepto ao jogo posicional, dispondo da posse de bola e triangulações, sua equipe agrada. Tem essa ideologia como inegociável ou você também pode se adaptar ao material (há plantéis que tem a reação como melhor característica, por exemplo)?
Nos últimos trabalhos (2017-2018 por Inter-SM e 2018-2019 por Ferroviária), realizamos as contratações de forma criteriosa. Assim, optamos por atletas que reuniam características para atender ao modelo de jogo proposto. Além disso, contamos com um período de preparação (pré-temporada) considerável para adaptar os atletas àquelas que seriam nossas ideias de jogo. No entanto, nem sempre encontramos essa realidade nos clubes, devido aos mais diversos fatores – muitos jogos em um curto espaço de tempo, alta rotatividade de treinadores, pressão por resultados, entre outros.
Penso que, independente das características dos jogadores, nós, treinadores, precisamos organizar e sistematizar o jogo da equipe. Não sou adepto à equipes apenas reativas (embora já tenha sido em algum momento da minha trajetória). Hoje, a partir das minhas vivências como treinador, acredito que o equilíbrio entre atacar e defender seja o caminho para tornar uma equipe de futebol competitiva, e não apenas reagir as ações dos adversários.
Em um país que prioriza o resultado e oferece pouco respaldo aos treinadores, como treinar, implantar e administrar uma ideologia ofensiva?
Penso que um caminho é estar atento àqueles clubes que entendem o futebol como processo, sem reduzir esse processo ao resultado. A Ferroviária é um exemplo. Concordo que não há como sustentar um trabalho sem resultado, mas penso que saber como ganhou ou como perdeu seja tão importante quanto o resultado em si, e me parece que aí reside um dos maiores problemas do futebol. Para saber os motivos que nos levaram a vencer ou perder, é fundamental entender o processo entre treino, jogo, estudo, correções e elogios. Assim, estaremos concentrando nossas atenções naquilo que é possível, como controlar a preparação e a performance e, como consequência, nos aproximar do resultado.
Embora novo, seja como preparador físico ou treinador, você já passou por clubes do interior, dos Estados Unidos, clubes grandes do futebol brasileiro e Seleção Brasileira. Quais os ensinamentos e experiência que você tirou de tudo isso?
O principal ensinamento é de entender que, enquanto profissionais de futebol, estamos em constante aprendizado. As ideias dos treinadores de hoje não são as mesmas do início de suas carreiras, assim como, muito provavelmente, não serão as mesmas daqui 10 anos.
Em relação a minha trajetória profissional não é diferente, pois, em todas as experiências vividas, sejam elas em clubes do interior ou na Seleção Brasileira de Futebol Feminino, passando pela experiência na Womens Professional Soccer (liga profissional de futebol feminino), nos Estados Unidos, ou até mesmo agora, na Ferroviária, o aprendizado é constante. No entanto, destaco a experiência com a Seleção e a passagem pelo Saint Louis Athletica, equipe de futebol feminino da cidade de Saint Louis, em Missouri, como de grande aprendizado. Isso porque, a partir destas experiências, comecei a identificar diferenças na forma de organização do processo de treinamento e preparação de equipes no Brasil e no exterior.
O Brasil chama atenção pela alta capacidade de formação de jogadores. Somos ímpares quando o assunto é técnica e habilidade motora para a prática do futebol. Porém, fora do Brasil, a preocupação com a organização do jogo em seus diferentes momentos (ofensivo, defensivo, transições e bolas paradas) é o que mais se destaca. Sem entrar no mérito do que é melhor ou pior, procuro construir meu conhecimento sobre o jogo levando em consideração tanto os aspectos técnicos quanto os aspectos táticos e de organização do jogo, pois entendo ser a partir da interação das partes que construímos o todo, e não da tentativa de reduzir o mesmo ao que é certo ou errado.
Após a partida contra o Palmeiras, na qual o seu time mostrou-se organizado e inegociável em suas ideias, Tite elogiou o seu trabalho, bem como o de Vinicius Bergantin, treinador do Ituano. Como você recebeu essa notícia?
Fiquei muito feliz pelo comentário do professor Tite em relação ao nosso trabalho aqui, na Ferroviária. Lembrar e comentar sobre o jogo que realizamos com o Palmeiras e, principalmente, chamar a atenção para a qualidade do jogo praticado pela equipe é motivo de orgulho. Gostaria de ressaltar que a sensibilidade demonstrada pelo treinador da Seleção Brasileira ao considerar a qualidade do jogo da Ferroviária e do Ituano nos deixa a certeza de que temos um profissional muito preparado para o exercício da função ao ser capaz de reconhecer a capacidade de treinadores emergentes e daqueles já estabelecidos no mercado.
Recentemente, você, ao fazer o CBF Academy, na Granja Comary, esteve com referências do futebol e obteve ainda mais aprendizado. O curso teve, de fato, coisas positivas e pôde ajudar os treinadores ou ainda entende que é algo burocrático?
Identifico o treinador de futebol como um dos principais agentes do processo de melhoria do jogo. Faço essa colocação porque vejo, no treinador, um profissional capaz de influenciar o comportamento de seus atletas através do treino e de sua liderança dentro do processo. Portanto, toda e qualquer iniciativa a fim de melhorar a formação dos nossos treinadores irá repercutir de forma positiva para os atletas, para o contexto do futebol e, principalmente, para o jogo. Neste sentido, vejo como fundamental a participação dos treinadores nos cursos de formação propostos pela CBF, pois, lá teremos a possibilidade de acesso a conteúdos relevantes para a prática do futebol tanto a nível de formação quanto para o alto nível.
Tendo sido preparador físico e passado pelas categorias de base, você aprova a maneira que as federações organizam seus campeonatos? Digo isso porque podemos ver, por exemplo, garotos de 18, 19 e 20 anos atuando na mesma categoria. Isso pode ser prejudicial ou faz parte da transição?
Penso que é preciso colocar em discussão o calendário de competições em todos os níveis, sejam eles de formação ou profissional. É preciso pensar na qualidade do jogo e na qualidade da formação, principalmente. Hoje, no profissional, joga-se muito e treina-se pouco, e isso acaba por prejudicar a qualidade do jogo. Em se tratando do calendário de competições nas categorias de base, vejo melhora na quantidade de jogos. Sem dúvida, hoje, competimos mais a nível nacional do que há cinco ou dez anos atrás.
Já conseguimos perceber as equipes de base que disputam competições nacionais se organizando no sentido de proporcionar ritmo de competição a todos os jogadores independentemente da idade. O exemplo do sub-20 é bom porque, diante de competições como Copa do Brasil (sub-20), Campeonato Brasileiro (sub-20) e Copa São Paulo (sub-19), já se consegue distribuir, dentro dessas diferentes competições, atletas de último ano, ano intermediário e primeiro ano na categoria.
Na minha opinião, em se tratando de categoria de base, o problema segue sendo no alinhamento do trabalho da categoria de base com a categoria profissional pelos mais diversos motivos, onde destaco a necessidade de resultados a curto prazo e a alternância na ideia de jogo da equipe profissional (devido à alta rotatividade de treinadores na equipe profissional) como fatores limitantes do processo.
O São Paulo, nos últimos anos, vendeu Luiz Araújo e David Neres com poucas partidas pelo profissional. O Palmeiras, hoje, utiliza sua base como ponte para a Europa. Como você analisa isso e até que ponto é bom para o atleta transferir-se à clubes europeus logo de cara?
Vejo a transferência de jovens brasileiros para o mercado europeu como inevitável. O que chama atenção, realmente, é a precocidade da saída. Os jogadores jogam cada vez menos pelos seus clubes de origem no Brasil. De um lado, a justificativa está na alta capacidade do futebol brasileiro de formar jogadores em quantidade e qualidade, chamando a atenção dos clubes europeus cada vez mais cedo em relação aos atletas brasileiros. Do outro lado, há a necessidade dos europeus na contratação de jogadores cada vez mais jovens, a fim de ter garantida a adaptação dos atletas às suas ideias de jogo também de forma precoce e, assim, aproveitar a qualidade desses jogadores por mais tempo.
É importante destacar que há, também, uma questão de mercado envolvida, já que quanto mais jovem for o atleta, mais valor de mercado ele possui em transferências futuras. Em relação ao atleta, vejo a saída para clubes europeus como uma oportunidade para desenvolvimento do profissional, embora jovem, ter a possibilidade de viver novas culturas. Diferentes formas de jogar sempre acrescentam e contribuem para a sequência da carreira.
O Barcelona, na Espanha, e o Ajax, na Holanda, são as maiores referências sobre formação do jogador. Não somente por ter a mesma filosofia de jogo em todas as categorias, mas por, acima de tudo, formar cidadãos. Por que os clubes brasileiros não oferecem a mesma estrutura? É possível chegarmos a esse nível ou pode ser considerado como utopia?
Vejo o futebol brasileiro preocupado com a formação também do cidadão. Porém, há muito ainda a ser feito neste sentido. Entender o quanto é importante a formação dos nossos jogadores, levando em consideração o todo e não somente aquilo que o identifica como atleta – ou seja, sua capacidade técnica e atlética – pode ser um caminho para que tenhamos, além de atletas, cidadãos sendo formados.
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