Existe vida após o 9 a 0: a revolução silenciosa de Ralph Hasenhüttl no Southampton
O treinador sobreviveu ao vexame sofrido em outubro e vem fazendo no sul da Inglaterra o que muitos consideravam impossível
Dia 25 de outubro de 2019, St. Mary’s Stadium. Southampton 0 x 9 Leicester City. Na época, décima oitava colocação. Não foi um erro de digitação.
Dia 11 de janeiro de 2019, King Power Stadium. Leicester City 1 x 2 Southampton. Hoje, décima terceira colocação. Não foi um erro de digitação.
A pergunta que fica é: como um clube que sofreu uma das maiores pancadas da história da Premier League e parecia destinado ao caminho da melancolia conseguiu transformar a sua temporada do inferno ao céu?
A começar, por uma decisão extremamente consciente da diretoria. Ralph Hasenhüttl foi mantido no cargo e prometeu fazer de tudo para recuperar o orgulho da instituição e dos seus torcedores. Os jogadores teriam que se alinhar às suas diretrizes ou não entrariam em campo. A situação passou de tentar formatar um elenco limitado ao que pareciam escalações baseadas na falta de qualidade e os riscos do adversário, para a de explorar as suas melhores características como treinador e as dos atletas. Dos dispostos, claro.
E assim nasceu uma das campanhas mais marcantes para a cidade de 270 mil habitantes no sul da Inglaterra. Vamos ao contexto.
Quando assumiu o bastão das mãos de Mark Hughes, em dezembro de 2018, o austríaco pegou um time fadado ao rebaixamento e com marcas que não animavam ninguém. Baixa autoestima individual, pouco espírito coletivo, falta de intensidade, fragilidades físicas e sintonia zero com as arquibancadas. Era a 16ª rodada e não havia tempo para ensinar detalhes de uma filosofia muito respeitada na Bundesliga, então a solução foi juntar os cacos, limitar com a organização a probabilidade de cada peça comprometer o resultado e criar uma sensação de equipe e competitividade dentro da mesma.
Seu 3-5-2 rendeu os frutos esperados e afastou o perigo da queda, mas todos sabiam que o trabalho na pré-temporada seria extenso. Foi. Só que os placares nos primeiros meses de 19/20 trataram de acender o sinal vermelho novamente. Nove pontos de 39 possíveis, duas vitórias em 13 jogos e, claro, o fatídico 0 a 9. Poucos clubes no mundo apostariam na permanência do técnico em uma fase tão negativa. Os Saints apostaram.
Após o choque, os jogadores acordaram para a realidade de que poderiam ficar marcados pelo fim de uma estadia de oito anos na Premier League e Ralph implantou de vez os conceitos que gostaria de ter colocado em prática desde o início. A base é um 4222 que permite equilíbrio entre os setores e a aplicação de um jogo de intensidade, pressão constante ao portador da bola, busca pelos espaços e rapidez para fechar os mesmos quando necessário.
O ritmo alto é simbolizado por quem é a maior referência do time atualmente, Danny Ings. O atacante tem 14 gols no campeonato (excluindo pênaltis, é líder no quesito ao lado de Vardy e Aguero) e voltou a ser cotado para a Seleção da Inglaterra, mas seu impacto não acaba nas redes adversárias. É ele o responsável por ativar o high-pressing e puxar os companheiros consigo, fazendo o que o Southampton como clube sentia falta há tempos: ditando padrões. Só foi possível com muita força de vontade.
Suas campanhas como atleta do Liverpool (de 15/16 a 17/18) não trazem boas lembranças: na primeira, fraturou o ligamento do joelho esquerdo; na segunda, do direito. Foram, no total, 498 dias no departamento médico e perspectivas, pelo menos sob seus olhos, sumindo gradativamente. Mas o empréstimo para o Soton aos poucos reviveu sua esperança com o futebol e, quando a cláusula de compra foi ativada, o sinal era claro. O camisa 9 dava passos consideráveis para voltar a ser decisivo como nos tempos de Burnley.
Contratou um chef particular que o visita todos os dias para manter a alimentação adequada, adotou práticas como a de fazer aulas de pilates e, quando longe do CT de Staplewood, dedica algumas horas para a academia que tem em casa. Nas últimas férias, viajou até Portugal e Estados Unidos para treinar com o personal trainer Alex Parsons, visando entrar no condicionamento que o colocaria entre os principais atacantes do país. Descrição que agora o enquadra.
E motiva toda uma equipe atrás dele a fazer o melhor em termos de cuidados diários para que o desempenho no final de semana esteja alinhado com o que o professor requer. Ward-Prowse, outrora conhecido por boa técnica e poucas valências físicas, vem sendo uma máquina nas transições e adicionou ao seu arsenal uma mentalidade combativa. Hojbjerg é duro nos desarmes, recicla a posse quando necessário e está prestes a receber proposta de renovação de contrato.
Bertrand, lateral esquerdo, recuperou o nível que haviam em outras temporadas lhe promovido para um dos mais sólidos da posição. Stephens e Bednarek alinharam a zaga e facilitaram a troca debaixo das traves, de Gunn para McCarthy, que vem passando segurança e é no momento o titular absoluto. Redmond está mais confiante, Armstrong fez por merecer uma vaga nas escalações e a espinha dorsal do conjunto está clara. E eficiente.
São 16 pontos dos últimos 24 possíveis e a 13ª colocação, com mais proximidade para o top 6 do que o Z3. Os atletas estão respondendo às instruções da comissão técnica e demonstrando atitudes que só aparecem em times bem treinados. E, pela primeira vez em muitos anos, o torcedor se sente conectado ao grupo e seus feitos dentro das quatro linhas.
Até agora, só Manchester City e Leicester permitiram menos passes do oponente antes que fizessem alguma ação defensiva. Isso não é sinal de clube sem alma; pelo contrário. Está cada vez mais vivo e gera a expectativa de uma reviravolta total dos rumos que estavam seguindo. Silenciosamente, Ralph Hasenhüttl comanda uma revolução no St. Mary’s Stadium. E a diretoria colhe os frutos de uma tacada arriscada, mas certeira.
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