Futebol, variáveis em jogo e Liga dos Campeões
Como o confronto entre equipas de valor diferente demonstra onde o pensamento sobre futebol tem campo para se desenvolver.
Metade dos jogos da primeira mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões disputou-se esta semana, com o Sporting a voltar a ser goleado numa segunda presença nesta fase, enquanto o RB Salzburg, em estreia, alcançou um assinalável empate frente ao Bayern de Munique. A presença de equipas de fora das ligas do TOP 5 nesta fase é uma prova de que esta mantém ainda uma abertura ao mérito de equipas financeiramente menos apetrechadas, um argumento muito utilizado para usar a Liga dos Campeões como um contraponto à anunciada Superliga.
A capacidade económica é um forte diferenciador de possibilidade competitiva, sendo certo que plantéis como os do Manchester City ou do Bayern de Munique pouco ou nada têm que ver com aqueles que apresentam o Sporting ou o Salzburg. Ao longo da história, essa diferença tem sido utilizada para preconizar atitudes diferentes, também, na organização das equipas, sendo que capacidade financeira tem servido para reforçar equipas a nível ofensivo, aumentando a sua capacidade em espaços de decisão, enquanto a falta de recursos é, muitas vezes mascarada com posturas mais defensivas.
Rúben Amorim, treinador versus jogadores
No discurso de Rúben Amorim, no final desta partida, percebeu-se, no entanto, que outras coisas estavam em causa. Para o treinador português, parte do problema de enfrentar uma equipa como o Manchester City, passa muito pela forma como pode o treinador junto dos seus jogadores para alterar a sua forma habitual de jogar. Ou seja, o Sporting tem uma identidade desenvolvida pelo treinador em conjunto com os seus jogadores e a alteração dessa identidade (seja no sistema, seja nas dinâmicas da equipa) é algo que o treinador não vê como possível para o enquadramento numa só partida.
Este tipo de decisão ficou, creio, também visível na forma como Matthias Jaissle foi gerindo a sua vantagem frente ao Bayern. A vencer por 1-0 e perante um Bayern a passar a jogar com dois pontas-de-lança, depois da entrada de Choupo-Moting, não avançou para colocar um terceiro elemento no centro da defesa e, também por isso, acabou por revelar um desequilíbrio que permitiu o empate, quando Kristensen foi “chamado” ao meio para conter Lewandowski e deixou Coman sozinho para finalizar.
Questões de identidade
As questões de identidade das equipas são um tema muito mais ideológico no futebol do que noutras modalidades coletivas. Em termos gerais, as ideias que as equipas apresentam para defender e para atacar devem ser consolidadas nos seus respetivos momentos, acertando as ligações entre estes através de movimentos de transição (defensiva e ofensiva) que potenciem a eficácia do todo. Uma equipa é sempre reflexo daquilo que consegue fazer na conjugação dos momentos do jogo.
Em várias modalidades, como o basquetebol ou o andebol, a conjugação entre momento ofensivo e defensivo e respetivas transições é elaborada através de vários princípios dinâmicos, comportamentos que a equipa assume, acertando também dentro de cada um destes momentos as respetivas variáveis que permitem desenvolver momentos de desequilíbrio e de incerteza no adversário. No futebol, o trabalho de Julian Nagelsmann, no Leipzig, será aquele que foi mais longe na adopção de variáveis, algo que também tem sido característico na maioria dos trabalhos de Pep Guardiola ao longo da sua carreira, sobretudo depois de ter chegado a Munique. Não por acaso, as duas equipas mais fortes referidas no início deste artigo.
A Rúben Amorim e a Matthias Jaissle não falta capacidade criativa para elaborar o desenvolvimento tático dos seus conjuntos, como tem sido demonstrado ao longo desta temporada. Perante as dificuldades, o Sporting acabou por sentir mais problemas, aumentados pelo facto de ter sofrido um golo logo aos 9 minutos, o que desmobilizou a estratégia montada para o jogo. Mas por aquilo que fomos vendo da resposta do City de Guardiola, a forma como este promoveu o ataque ao bloco sportinguista foi razão de monta para que o Sporting não fosse capaz de reação. Já Jaissle viu, também ao minuto 9, um remate de Gnabry não se transformar em golo, permitindo ao Salzburg a manutenção de uma pressão e um aproveitamento de lacunas na transição defensiva do Bayern que têm sido visíveis em várias partidas das últimas semanas.
Ligas onde se pensa o futebol
Não se trata aqui de justificar resultados negativos, nem de diferenciar estratégias de abordagem ao jogo. No fim das contas, o talento disponível, com o apoio financeiro existente, coloca as equipas mais ricas em melhores condições para passar a eliminatória. No entanto, o contexto do jogo e as dificuldades que cada treinador consegue enumerar são excelentes pontes para entendermos o processo que cada um realiza.
Na Áustria, num campeonato com menos talento, várias equipas para além do Salzburg (Wolfsberger, LASK Linz,…) têm demonstrado como trabalhar variáveis durante o jogo pode responder a dificuldades, inovando na forma de entender e a abordar o jogo. Esse clima de exigência prepara todos, treinadores e jogadores, para o confronto noutros níveis competitivos. Em Portugal, os três grandes, tendo muito mais talento disponível, estão muito menos disponíveis para elaborar rumo a um novo tipo de futebol, por bons princípios que possam apresentar no seu trabalho. Esse contexto acaba por se revelar mais pobre, com a discussão a centrar-se em ideologias e não tanto em conhecimento sobre o jogo. São realidades diferentes que potenciam comportamentos que se poderão adaptar na realidade dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões. A segunda mão ajudar-nos-á a perceber qual o teto que o Salzburg terá que enfrentar.
Foto em destaque de Isabel Silva (@Idzabela)
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