A metodologia de scouting de Luís Campos e as atuais joias do Lille
150 milhões de euros: este foi o valor aproximado em vendas que o Lille fez na última janela de verão europeu.
Após sagrar-se vice-campeão francês em 2018-19, o Lille, clube do norte da França, vendeu Thiago Mendes e Youssouf Koné para o Lyon, Rafael Leão para o Milan e Nicolas Pépé para o Arsenal, a maior compra da história do clube inglês e a maior venda do francês.
Dos quatro atletas citados, Mendes, Leão e Pépé têm algo em comum: foram prospectados pela equipe de scouting do Lille, capitaneada por um superstar da área, o português Luís Campos.
Campos foi técnico de times de menor expressão em Portugal durante os anos 1990 e 2000, mas passou a se destacar ao se tornar scout do Real Madrid, por intermédio de José Mourinho, permanecendo na Espanha entre 2012 e 2013.
Após esta passagem, rumou ao Monaco para ser diretor esportivo. No clube do principado, viveu a primeira temporada com muito dinheiro para gastar pelo investimento do bilionário russo Dmitry Rybolovlev, contratando nomes como João Moutinho, Radamel Falcao Garcia e James Rodríguez por quantias consideráveis.
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Na segunda temporada, o fair-play financeiro fechou o cerco e o time alvirrubro precisou mudar a estratégia. Campos estruturou o departamento de scouting e apostou na prospecção para montar bons times e realizar boas vendas.
Por meio do trabalho do português e sua equipe, o Monaco contratou e revendeu por valores muito acima jogadores do calibre de James Rodríguez, Fabinho, Martial, Bernardo Silva, Bakayoko, Mendy, Kondogbia e Lemar.
O departamento responsável por estes feitos conta com aproximadamente 7 scouts que rodam o mundo à procura de talentos.
O próprio Campos diz que não acredita em scouts locais, e, sim, em universais. Muitos clubes adotam profissionais especializados em determinados países e que concentram sua atenção em alguma região geográfica.
Sob Campos, os observadores precisam conhecer todos os mercados, viajar sempre e mudar de zona periodicamente. Cada contratação potencial precisa ser analisada por todos os scouts do clube, por meio de estatísticas, vídeos e observações in loco. É um investimento pequeno, se comparado com o lucro que têm provido aos clubes comandados por Campos nos últimos anos e com as grandíssimas redes de scouting de outros clubes, com profissionais em diversos países do planeta.
O ex-técnico e sua equipe trabalham para montar uma lista de nove jogadores por posição, três de cada faixa de valor, para serem discutidos com a equipe técnica e o presidente ao final da temporada.
As indicações para esta lista são feitas por cada scout sem que seus colegas saibam quem indicou quem, já que todos observam os mesmos jogadores. Luís Campos faz o trabalho final, de avaliar as indicações através de vídeo e ao vivo e definir as melhores opções.
O jantar de reconhecimento também faz parte da metodologia de Luís Campos, que serve para conhecer melhor a personalidade dos atletas e entendê-los enquanto seres humanos e se possuem o perfil para encaixar no grupo de jogadores que já está no clube.
Como nem só de jovens promessas vive um clube de futebol, Campos também contrata atletas experientes, com lastro esportivo e de vida para transmitir aos jovens e tornar o time mais forte. No Monaco, vieram Ricardo Carvalho, Berbatov, Glik, João Moutinho e Toulalan. Já no Lille, nomes como José Fonte, Remy, Gaitán e André.
AS JOIAS DO LILLE
Já na sua terceira temporada como diretor esportivo do Lille, vários jogadores passaram pelos jantares de reconhecimento de Luís Campos.
Do atual grupo, muitos atletas se apresentam com potencial para se tornarem relevantes na elite do futebol europeu, como Timothy Weah, Yusuf Yazici, Jonathan Bamba, Luiz Araújo, Tiago Djaló e Domagoj Bradaric.
Vamos nos ater, porém, a quatro jogadores que já atingiram um protagonismo maior ou estão em um processo de maturação mais avançado do que os citados anteriormente: Gabriel Magalhães, Boubakary Soumaré, Jonathan Ikoné e Victor Osimhen.
Gabriel Magalhães
Nacionalidade: Brasil
Idade: 22 anos
Altura: 1,89
Posição: zagueiro
Pé dominante: esquerdo
Gabriel chegou ao Lille em 2017, após se destacar pelo Avaí, na Série B de 2016. Mesmo com períodos de empréstimo não tão bem sucedidos no Troyes e no Dinamo Zagreb, Gabriel viu sua hora chegar na última temporada, quando atuou regularmente pelo Lille e correspondeu, a ponto de iniciar 2019-20 como titular absoluto da equipe de Christophe Galtier.
Um dos atenuantes para o sucesso recente de Gabriel na França está em seu companheiro de zaga. Aos 36 anos, o português José Fonte é um defensor com características físicas e de jogo semelhantes às de Gabriel, além de ser um líder nato, com bastante influência nos jovens.
O Lille possui algumas variações de esquema tático, mas há um padrão de jogo estabelecido em alguns pilares como a saída curta desde os zagueiros, que precisam ter bom passe vertical para ativar o companheiro melhor colocado no meio-campo.
Gabriel vai muito bem neste quesito, ao utilizar sua técnica e a postura corporal de recepção sempre orientada de forma a buscar a melhor visão dos companheiros e adversários e poder escolher o passe adequado o mais rápido possível.
O jogo direto é pouco utilizado pelo Lille, portanto as bolas longas acabam surgindo mais para viradas de jogo, no que Gabriel também é bastante eficiente. Atuando do lado esquerdo, costuma executar bons lançamentos diagonais para quem esteja em amplitude no lado oposto.
Defensivamente, o brasileiro é forte nos duelos, pelo alto ou por baixo, sobretudo quando o atacante está de costas. No um contra um defensivo, entretanto, deixa um pouco a desejar e, por vezes, é driblado com facilidade.
A maioria dos seus desarmes vêm quando deixa a linha para dividir com o adversário de costas ou com pouco espaço, já que Gabriel é sempre rápido para decidir e realizar as ações.
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Na comparação com Fonte, Gabriel vence 6,3 (67% das tentativas) disputas de bola por jogo da Ligue 1, sendo 2,8 (70%) no chão e 3,5 (65%) no alto, enquanto o português ganha 3,9 (58%) duelos. Destes, 1,3 (53%) no chão e 2,6 (61%) aéreos. São números impressionantes para o brasileiro.
Outras qualidades que colocam Gabriel como um dos principais zagueiros do futebol francês são coordenação corporal, cobertura defensiva, disputas de corpo, velocidade e antecipação.
Mentalmente, demonstra em campo bastante concentração, capacidade de reagir a erros e liderança, mesmo jovem e apenas na segunda temporada completa com o Lille.
A desenvoltura para falar francês, idioma que aprendeu sozinho, segundo o próprio, também sugerem um comprometimento com a carreira e um respeito muito grande ao seu clube, companheiros e torcedores.
Gabriel é um dos melhores zagueiros jovens brasileiros e tem sido convocado por André Jardine para a seleção olímpica, além de linkado a uma possível transferência para o Everton, na próxima janela.
Boubakary Soumaré
Nacionalidade: França
Idade: 21 anos
Altura: 1,88
Posição: volante/médio
Pé dominante: direito
Alto e com uma biotipia privilegiada, Soumaré frequentou todas as seleções de base francesas desde o sub-16 e integrou as categorias inferiores do Paris Saint-Germain até 2017, quando foi contratado para agregar à equipe principal do Lille.
Patrick Vieira e Yaya Youré: você vê Boubakary em campo e automaticamente lembra do início da carreira destas duas lendas do futebol mundial.
O jovem é fundamental para a circulação da bola nas duas etapas de criação, com destaque para a primeira, através da distribuição rápida, dinâmica e ativa, realizada a partir da boa movimentação e leitura dos espaços que possibilitam a criação de linhas de passe para os companheiros, além dos bons passes curto e longo.
Quando recebe a bola, Soumaré tem um primeiro toque apurado, costuma sempre estar posicionado de maneira orientada e é rápido nas ações e na decisão, tanto para mudar de direção e conduzir a bola, desvencilhando-se da pressão, quanto para dar seguimento através de um passe ativo.
Além da postura corporal, o camisa 24 do Lille também possui uma característica fundamental para volantes de distribuição: a bilateralidade, que consiste na habilidade técnica e neurológica de receber a bola e girar para qualquer um dos lados, além de realizar passes e controlá-la com os dois pés e para todas as direções.
Soumaré participa pouco da segunda etapa de criação nos ataques posicionais, costumando aparecer no terço ofensivo para passes de ruptura com maior frequência nos momentos de transição, a partir da ótima capacidade associativa e velocidade das ações.
Também não tem a infiltração como uma de suas principais atribuições na equipe, o que fica a cargo de seu companheiro na dupla de volantes: Benjamin André.
Na fase defensiva, Soumaré tem uma postura adequada na linha de marcação, é inteligente e rápido para se antecipar aos adversários e intenso nos duelos aéreos e no chão, além de se posicionar bem para as segundas bolas.
Por vezes, apresenta dificuldade ao realizar grandes ações em sequência, sobretudo quando vai ao ataque e precisa realizar a transição defensiva já desgastado de alguma ação anterior.
Apesar de demonstrar boa concentração e mentalidade de jogo, Soumaré foi expulso duas vezes na atual Ligue 1 e, após a segunda expulsão, acabou vendo Renato Sanches assumir sua posição, fazendo seus minutos diminuírem a partir deste momento.
Sanches demonstrou se encaixar melhor no jogo posicional adotado por Galtier, além de oferecer maior desequilíbrio na terminação das jogadas. Soumaré, por sua vez, é mais efetivo em times que jogam de maneira apoiada, com foco nas transições.
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Também contribuíram a boa forma do português, somada à sua contribuição maior nos momentos de criação e definição, com 3 gols (0 de Soumaré), 1 assistência (0), 5 grandes chances criadas (0), 1,9 passes decisivos/jogo (0,6) e 26,2 passes no campo ofensivo (20,8).
A forma como reagirá a isto quando a temporada for retomada vai dar algumas pistas sobre a força mental do francês e a sua postura em momentos adversos, tanto para se recuperar individualmente, quanto para continuar contribuindo para o grupo.
Jonathan Ikoné
Nacionalidade: França
Idade: 22 anos
Altura: 1,80
Posição: meia-ofensivo/extrema
Pé dominante: esquerdo
Com a saída de Pépé para o futebol inglês, Jonathan Ikoné assumiu o papel de referência técnica dentro da equipe do Lille.
A exemplo de Soumaré, o camisa 10 foi mais um buscado por Luís Campos no PSG e frequentou todas as seleções menores da França. A diferença é que Ikoné chegou a atuar entre os profissionais do time de Paris e já contabiliza quatro participações pela seleção principal.
Um camisa 10 moderno, versátil para atuar em várias zonas do setor ofensivo e exercer diferentes funções, este é o resumo do jogador que Ikoné é.
Possui excelente visão de jogo e intensidade para participar das ações ofensivas. Mesmo quando atua aberto, procura sempre o entrelinhas para receber e finalizar a fase de criação, através do passe vencedor.
Com a relação íntima que possui com a bola e a leveza e naturalidade com a qual executa os gestos técnicos, Ikoné é bastante ativo e possui grande repertório de ações.
Sabe correr com bola, tem uma postura corporal adequada para receber tanto de frente quanto de costas e não é egoísta, sendo inclusive bastante associativo, lendo bem os espaços e criando linhas de passe.
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O drible curto para sair da pressão e desequilibrar nos momentos de decisão também está presente no jogo de Ikoné, além da habilidade para virar e agir pros dois lados, inclusive no momento de finalização, já que usa os dois pés para concluir as jogadas, como se pode ver no vídeo abaixo:
O jogador de les bleus é bem condicionado fisicamente. É muito apurado na mudança de direção, na velocidade de sprint e arrancadas, além de auxiliar muito na fase defensiva através da boa recomposição e da pressão ativa, sobretudo quando atua mais perto do atacante. O compromisso com a pressão pós-perda também é evidente no comportamento de Ikoné.
A dificuldade para manter a mesma intensidade durante os 90 minutos é algo que ainda precisa ser aperfeiçoado em seu jogo, sobretudo se rumar a uma liga mais intensa do que a francesa num futuro próximo.
Victor Osimhen
Nacionalidade: Nigéria
Idade: 21 anos
Altura: 1,85
Posição: centroavante/extrema
Pé dominante: direito
18 gols e 4 assistências. Esta é a temporada atual do nigeriano Victor Osimhen, ex-Wolfsburg, e que foi recrutado por Luís Campos do futebol belga na última janela de verão, por 12 milhões de euros.
O valor é alto para os padrões do Lille, mas baixo se comparado ao que o clube deve arrebatar por sua venda em breve.
Osimhen colocou Rémy no banco e se adaptou rapidamente ao futebol francês, onde nunca havia atuado, mas tem as características ideais para se dar bem.
Nas ações técnicas, o jogador da seleção da Nigéria não chama a atenção, mas suas características físicas, mentais e táticas são bastante influentes no jogo.
Por atuar de maneira posicional, mas também usar a transição, o Lille precisa de um atacante de profundidade e força na última linha defensiva adversária e Osimhen agrega isto com notável competência.
Suas capacidades físicas são excepcionais. Além da biotipia favorável, consegue executar ações desgastantes em sequência, como dar um pique para uma bola em profundidade e em seguida executar uma pressão ativa na saída adversária. É extremamente forte para disputar no corpo, sobretudo nos duelos aéreos.
Para oferecer profundidade, também consegue executar movimentos verticais contrários e, desta forma, atrapalhar a ação defensiva rival.
Usa a força física para trabalhar bem no pivô e dar opção no jogo aéreo ofensivo, já que é alto, forte e tem ótima impulsão e elasticidade.
Seu comportamento sugere uma mentalidade de jogo forte, demonstrando concentração, boa tomada de decisão, entusiasmo, carisma e agressividade.
Esta agressividade, entretanto, às vezes pende para o lado negativo, já que Osimhen acaba cometendo muitas faltas na hora da pressão ofensiva e é constantemente visto reclamando com companheiros, adversários e arbitragem.
Nesta temporada isto não tem refletido numa grande quantidade de cartões amarelos ou vermelhos, o que pode configurar num indício de uma agressividade controlável que não interfira diretamente no seu jogo individual e coletivo.
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Conhecidos o método scouting de Luís Campos e quatro dos seus principais prospectos atuais, é possível inferir que os resultados obtidos no Monaco devem seguir no Lille e que o clube certamente continuará colhendo os frutos deste trabalho, alcançando outro patamar no futebol francês e europeu.
Luís Campos pediu para sair do Lille e o Tottenham, do amigo José Mourinho, parece ser o destino. De qualquer forma, o legado do português seguirá por um bom tempo no norte da França, já que, além de Gabriel, Soumaré, Ikoné e Osimhen, muitos outros atletas foram recrutados nestes últimos três anos e devem trazer resultado esportivo e financeiro nas próximas temporadas.
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2 comentários
Parabéns pelo artigo. Excelente ! Eu pessoalmente nao conhecia o Luis Campos.
Marcelo, muito obrigado pelo comentário. O Campos é um superstar da área de scouting. Vale muito a pena conhecer a fundo. Abs