De vidro? O outro lado das lesões no futebol

Você sabia que a psicologia esportiva é muito importante para entender as lesões ou a reincidência delas, também?

Final da Eurocopa 2016. França x Portugal se enfrentavam no Stade de France em busca da taça quando Cristiano Ronaldo, uma das estrelas do jogo e principal esperança dos portugueses para levar o título, sente uma lesão e é substituído aos 25 minutos do 1º tempo. Final da Champions League 17/18. Real Madrid x Liverpool duelavam pela tão sonhada orelhuda quando Mohamed Salah, talvez o principal nome dos Reds na temporada, se machuca em lance com Sergio Ramos e sai do jogo aos 30′ do 1º tempo. Ronaldo rompeu o tendão patelar do joelho em jogo da Internazionale, em 2000. Neymar perdeu dezenas de partidas no PSG por várias lesões ao longo das temporadas.

Embora seja extremamente comum no futebol profissional, as lesões ainda não são entendidas e consideradas como deveriam. Rafinha, que tem sua carreira atravessada por diversas lesões, teve destaque no documentário Matchday: FC Barcelona, que acompanha as temporadas 18/19 e 19/20 do clube catalão, justamente por causa de uma lesão grave que o deixou muito tempo longe dos gramados. No episódio, ele constata: “o futebol esquece os machucados”.

Rafinha Alcântara em depoimento para o documentário Matchday: FC Barcelona

Alguns atletas convivem mais com lesões por diversos motivos, outros convivem menos e também por motivos variados: predisposição física, tipo de treinamento, estrutura de trabalho, posição onde joga, aspectos psicológicos, entre outros. Nessas perspectivas, você já deve ter pensado em jogadores que se encaixam nos dois casos. No primeiro grupo, podemos lembrar de Marco Reus, Eden Hazard e o já citado Rafinha Alcântara; no segundo, Cristiano Ronaldo, Messi e Iñaki Williams. Os primeiros já perderam inúmeros jogos na temporada por estarem no Departamento Médico, enquanto os outros quase nunca ficam de fora das partidas, mesmo jogando muitas vezes durante o ano. Quais as diferenças entre eles, será que dá para definir? É difícil precisar, porque isso envolve exames e testes mais apurados, mas isso, claro, passa pelo conjunto de fatores expostos anteriormente.

O medo, insegurança, estresse e ansiedade por estarem afastados dos colegas e do trabalho, e de serem alvos de críticas por parte dos torcedores e da imprensa torna tudo ainda mais difícil. A parte psicológica, mais uma vez, é uma via importante para entender e trabalhar com atletas nesse campo tido como sombrio.

A carga de esforço físico de um jogador durante os treinos e jogos é enorme. Embora normalmente analisada, recomendada e acompanhada por profissionais especializados no assunto, em um momento ou em outro, o desgaste pelas altas exigências aparece em forma de lesões facilmente sentidas e identificadas pelos próprios atletas e comissão médica – aqui ainda entra a categoria de lesões causadas por choques bruscos com adversários ou quedas. O que não é visto, mas exerce papel fundamental nesse processo, é o aspecto psicológico das lesões.

Seleção Brasileira feminina de futebol durante treino. Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Para entender as relações entre o estado psicológico e o momento anterior ao acontecimento da lesão é preciso tocar brevemente no funcionamento do corpo.

Todos os movimentos corporais feitos pelos jogadores são controlados, voluntária ou involuntariamente, por áreas do encéfalo e da medula espinal: regulação do tônus muscular, batidas do coração, ações de correr, saltar e respirar, entre centenas de outras atividades essenciais à vida e à prática de esportes. Situações de estresse e ansiedade, vividas pelos atletas com frequência, também são processadas por partes específicas do encéfalo e podem afetar diretamente essas ações, visto que interferem na atuação dos hormônios e neurotransmissores, podendo potencializar lesões. Exemplo: estados emocionais de estresse, ansiedade e depressão podem causar um aumento generalizado da tensão muscular (probabilidade maior de estiramento, entorses e fraturas), redução do campo visual (dificulta a percepção de situações com potencial de gerar lesão) e aumento da distração (sem foco, o atleta pode realizar o movimento errado e sofrer lesão).

Quando a lesão é detectada, a atenção ao aspecto emocional deve ser constante, visto que isso será determinante para que ele se empenhe e confie no tratamento, se mantenha motivado durante o período em que estará afastado do trabalho e consiga lidar de forma satisfatória com a frustração, raiva, medo e outras angustias que aparecem no período. Nesse ponto, as reações dos atletas à lesão se parece com o que acontece nas fases do luto:

  1. Negação;
  2. Raiva;
  3. Barganha ou negociação;
  4. Depressão;
  5. Aceitação e reorganização;

É comum e até esperado que os jogadores passem por todas essas fases, mas deve-se estar atento a intensidade e tempo que se fica em cada uma delas.

O processo de recuperação deve ser feito de forma multidisciplinar, sendo o trabalho do(a) psicólogo(a) levado tão a sério quanto o do médico, fisioterapeuta e preparador físico. O apoio da família, de colegas de trabalho, comissão técnica, direção do clube e outras pessoas importantes para o jogador constitui o fundamental suporte social, que vem sendo estudado há alguns anos pela importância nessa etapa. Em entrevistas de atletas que voltam a jogar depois de algum tempo parados, os créditos para esse suporte social são facilmente identificados através dos muitos agradecimentos aos familiares, principalmente, e aos funcionários do clube que os ajudaram.

O atacante Leandro Kível voltou aos campos após 1 ano e 6 meses afastado de lesão e agradece a esposa em entrevista.

Informações precisas sobre a lesão, palavras de apoio e confiança, respaldo do clube, compartilhamento de experiências de colegas que já vivenciaram a situação, encorajamento, escuta aos medos e angustias, e empatia com a situação do jogador lesionado e em recuperação são algumas atitudes que fazem parte do suporte social e devem ser estimuladas pela equipe profissional que cuida do atleta.

Nesse contexto, o(a) psicólogo(a) entende e dispõe de uma série de técnicas psicológicas para trabalhar com o atleta durante o período de tratamento e também no pós, quando a insegurança, o medo e a ansiedade da volta aos gramados se faz presente. Algumas técnicas são:

  • Estabelecimento de metas;
  • Autoconversação (substituir pensamentos negativos por positivos);
  • Visualização;
  • Relaxamento;
  • Controle da dor;

A reincidência da lesão, embora normal em muitos casos, é desgastante para o jogador e para quem o cerca, porque um novo afastamento e um novo processo de reabilitação pode ter ainda mais implicações emocionais, com o surgimento de questionamentos sobre a própria capacidade, merecimento, sentimento de culpa e estados de depressão. Muitos atletas entendem que o seu valor pessoal está intimamente relacionado com o seu desempenho nos jogos, o que torna tudo ainda mais difícil por adentrar no campo da autoestima e das percepções sobre si e suas habilidades.

Luciano, do São Paulo, chora ao sentir novamente lesão durante jogo. Reprodução: UOL

Entendendo tudo isso, a humanização dos jogadores e dos processos comuns às exigências do esporte profissional pela torcida e pela mídia especializada se faz mais do que necessária. Além do sofrimento físico e psicológico causado pela lesão, ser alvo de xingamentos e “piadas” do tipo “jogador de vidro” e outras “brincadeiras” por estar machucado, pode se tornar mais um ponto de estresse e ansiedade que afetará diretamente a sua recuperação e o seu desempenho em campo, sendo esse atravessado por inúmeros fatores psicológicos, biológicos, sociais, culturais que precisam ser considerados quando se olha para um jogador profissional.

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