A prática e a importância do futebol de rua na visão de André Jardine
Em entrevista concedida ao Footure, o técnico da Seleção Olímpica fala, dentre outros aspectos, sobre Jogo de Posição e tecnologia no esporte
No intuito de contribuir para o debate sobre o jogo de rua e a importância do mesmo como ferramenta de desenvolvimento, o treinador André Jardine, o jornalista Paulo Vinicius Coelho e o diretor de scouting José Boto foram procurados pelo Footure FC.
Depois de publicar a matéria, o site leva ao ar, em uma série de três episódios, as conversas que teve com os personagens citados. A seguir, na íntegra, a entrevista com o técnico da Seleção Brasileira Sub-20, que teve passagens pelas categorias de base de Internacional, Grêmio e São Paulo, além de ter sido comandante da equipe principal do clube paulista na temporada 2019.
Footure: O que pensa sobre a prática do futebol de rua?
André Jardine: Eu, talvez, tenha feito parte da última ou das últimas gerações que ainda puderam usufruir, desfrutar, de passar uma tarde toda na rua, jogando futebol, às vezes usando a árvore como gol, fazendo tabela com muro do vizinho, aquela coisa toda de piso totalmente irregular. E era uma delícia, uma coisa muito legal.
O futebol de rua que eu vejo, infelizmente, diminuindo bastante por uma questão social. Cada vez menos espaços, menos jogado, cada vez mais tecnologia, infelizmente, invadindo. Nesse aspecto, o futebol de rua está perdendo as crianças para os eletrônicos e para as brincadeiras dentro de casa, mas acho que foi um diferencial muito grande por muito tempo. Ainda é. O jogador brasileiro tem essa malandragem, essa habilidade motora acima da média muito porque pratica o futebol de rua com muita intensidade, com muitas horas. Por mais que tenha diminuído, acho que ainda é um diferencial importante nosso.
Você concorda que o futebol de rua é menos praticado hoje do que antigamente?
Acredito que foi uma evolução natural de algumas coisas, especialmente o acesso a computadores, a videogame, ao que é ofertado, hoje, a nível de entretenimento para as crianças. Acaba dividindo um pouquinho mais o tempo deles, e acredito que diminuiu bastante por causa disso. Mas acredito que ainda existe, sim, especialmente nas periferias, especialmente nos bairros mais pobres. Ainda o jogar bola na rua deve ser muito praticado e tem bastante gente saindo desses lugares para os clubes.
Até que ponto um jogo sem regras e limitações favorece?
Eu acho que existem as regras. O futebol de rua respeita as regras do jogo, ele, às vezes, respeita as regras do bairro, da turma que está jogando. Não é que ele seja sem regra, ele tem as suas próprias regras, e isso também é um aprendizado. As crianças se acostumam a respeitar a regra que ali vigora. Agora, claro que não se tem o quesito tático, estratégia, situações de uma orientação, de alguém conduzindo o processo como um todo. Isso não existe e isso torna, sem dúvida, a criança, o adolescente, mais autônomo nas decisões. Faz pensar, faz discutir, exercita a liderança, a liderar processos, liderar o jogo dentro de campo, e isso é uma das riquezas do futebol de rua.
A gente percebe, ali, se formando jogadores com muita personalidade porque aprendem a resolver o problema sozinho. Muitas vezes eles chamam o time, eles orientam, organizam, tomam as ações, chamam o jogo. Então, tem muita coisa que o futebol de rua faz a favor dessa construção de uma personalidade muito forte, de um jogador com muita autonomia.
Qual a importância e influência do futebol de rua para o esporte, sobretudo no Brasil?
A importância é muito grande para todo o esporte, não só o futebol. A brincadeira de rua, os jogos, uma infância rica em brincadeiras que exercitem, que desenvolvam o corpo e a mente, que faça a criança pensar, se mexer e se equilibrar, e evoluindo de uma maneira motora, a coordenação mais fina vai dando um refino físico a nível de desenvolvimento motor muito grande.
Acredito que, quanto mais rica a infância, quanto mais na rua, quanto mais brincadeiras, mais jogos, mais atividades esportivas, maior o acervo motor que, se ela resolve ir para o esporte de alto rendimento, ela já chega dotada de muitos elementos físicos acima das crianças que não tiveram isso. Vira um grande diferencial para o atleta, seja o esporte que for. Ele já chega – como a gente comenta dentro do clube – uma pedra preciosa, um diamante que só precisa ser lapidado. Ele se formou diamante nessa riqueza de experiências que ele teve na infância e na adolescência.
Com o crescimento exponencial da tecnologia no futebol, como seguir encontrando jogadores dentro das periferias antes de scouts e times europeus?
Esse é o desafio: encontrar antes esse tipo de jogador. E, aí, acho que não tem muito atalho, não. Precisa, realmente, ter o trabalho de ir até à periferia, ir até às favelas, ir até onde se tem o jogo de rua e olhar, descobrir, garimpar. É o grande trabalho dos olheiros, dos observadores. Tem que ir, tem que olhar, tem que ter gente com olho, com uma boa experiência, com uma capacidade de avaliar muito bem os jogadores, com experiência para isso, para que se chegue antes dos clubes, dos europeus, e consiga chegar primeiro nessa corrida pelos talentos.
Como aliar o poder da tecnologia com a vontade de jogar futebol?
O videogame é um concorrente, hoje, dessas atividades mais esportivas, porque ele, de certa maneira, contempla essa vontade de competir, de praticar o esporte mesmo que virtualmente. Sacia, de alguma maneira, essa vontade que toda criança tem. Mas não substitui.
Eu acho que, de certa maneira, sempre as crianças são superativas e sempre vão querer praticar esporte, praticar exercícios, brincadeiras. E tem o lado bom, também: os jogos de videogame de futebol, especialmente, podem agregar alguma coisa a nível de tomada de decisão, de consciência mais tática. Eu acho que tem alguma coisa que pode somar. O videogame não é de todo ruim, não, ele agrega alguma coisa, especialmente a nível mental, de refino na tomada de decisão, mas que, com certeza, não vai substituir a prática do futebol na rua. Jogado, ele tem um valor muito maior.
No início da década, a França intensificou a prática do futebol nos subúrbios. Na última Copa, 8 dos 23 convocados foram criados nas periferias, como Mbappé, Pogba e Kanté. Vencer a Copa foi coincidência ou consequência?
É uma informação nova para mim e que reforça ainda mais as convicções que eu tenho da importância do futebol de rua. Eu acho que não é uma coincidência, não, pelo contrário. Acho que a França se deu conta de que o jogador diferente, o jogador mais capaz, que vai fazer diferença no alto nível, é aquele que é submetido, lá na sua infância, a um ambiente que oportuniza ele a desenvolver de uma maneira lúdica, desenvolver as habilidades motoras, físicas, técnicas e, inclusive, as cognitivas. E muitas horas de prática, que é o que acaba acontecendo no futebol de rua. Se pratica muito tempo, se acaba ganhando um volume de horas de prática que, ali na frente, vira um diferencial, especialmente para quem já tem um dom, para quem já vem com uma aptidão. Sendo muito bem estimulado, fatalmente se torna um atleta de altíssimo nível no esporte que ele escolher justamente por esse acervo que ele constrói na infância e na adolescência.
Escolinhas de futebol substituem o futebol de rua?
As escolinhas elas tentam a substituição justamente por essa mudança na sociedade de uma maneira geral, diminuindo futebol de rua e, com isso, abrindo um volume maior de escolinhas, que acabam oportunizando as crianças a terem esse contato com o esporte, a praticarem sua atividade num ambiente mais controlado. Muito menos tempo do que ele praticaria jogando na rua, porque a aula tem um tempo de duração. Então, já começa uma grande desvantagem aí, porque o futebol de rua… quem jogou sabe que, às vezes, a gente jogava até não enxergar mais a bola, jogava 5, 6h no mesmo dia, seis, sete vezes por semana. É uma desvantagem muito grande.
A escolinha acaba nivelando, separando por idade, às vezes por aptidão, mesmo, e era muito interessante, no futebol de rua, o quesito de a criança mais nova já praticar com mais velho, e, com isso, já dava uma maturidade maior, acelerava esse processo. As crianças novas que já jogavam com os mais velhos, com certeza, ganhavam uma confiança muito alta, ganhavam uma malandragem. Eu acredito que a escolinha não vai conseguir substituir, mas, pelo menos, atenua essa diminuição brusca da atividade de rua. Pelo menos, algumas crianças têm a oportunidade de praticar um pouco do futebol.
Você, como um treinador adepto ao Jogo de Posição, já deve ter ouvido analistas dizerem que tal modelo limita o atleta. O que pensa sobre?
Eu acho que tem muita gente falando besteira na mídia, na imprensa, em relação a essa rigidez tática, inclusive ao Jogo de Posição. Se tem falado muita coisa sem ter o estudo, sem ter conhecimento suficiente. Eu acho que não há um treinador, na base, que não estimule os seus atletas a ir para o drible, a ir para uma jogada mais inventiva. Nunca vi, na minha vida, um treinador limitar um atleta habilidoso.
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O que os treinadores fazem é organizar a equipe e o jogador aprender a trabalhar como equipe, dentro de uma estrutura onde ele tem que respeitar algumas situações para que o time tenha um sentido como equipe, coletivo, e que isso também é importante na formação. O atleta joga um esporte coletivo, o futebol é um dos esportes que mais exige essa capacidade de associação com os companheiros, e isso não é ruim de maneira nenhuma. Talvez alguns treinadores possam se exceder em algumas situações, que acabe limitando. Acredito que aconteça, sim, isso não é uma coisa que, com certeza, está impedida de acontecer, mas eu acredito que que os treinadores de base querem, no fundo, vencer, também, e tornarem suas equipes campeãs. E o atleta também quer vencer.
A organização é quase que uma condição para que se vença. As equipes têm que ser organizadas, os atletas têm que aprender a jogar coletivamente, tem que aprender a colocar a sua individualidade, a sua característica dentro da equipe, e isso é, também, parte do processo de evolução e de aprendizagem de toda criança, de todo adolescente. Claro que, quanto mais jovem, as crianças têm que ser estimuladas em jogos, que em alguns momentos não se cobre tanto essa organização e que se dê mais liberdade para, justamente, se formar um jogador autônomo, e essa é a exigência que tem que se fazer especialmente dos profissionais que trabalham na base, que, muitas vezes, não têm a experiência que deveriam ter e, infelizmente, é parte do processo.
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