A prática e a importância do futebol de rua na visão de PVC

Em entrevista concedida ao Footure, o jornalista PVC fala, dentre outros aspectos, sobre a prática do jogo de rua e a cultura do futebol brasileiro

No intuito de contribuir para o debate sobre o jogo de rua e a importância do mesmo como ferramenta de desenvolvimento, o treinador André Jardine, o jornalista Paulo Vinicius Coelho e o diretor de scouting José Boto foram procurados pelo Footure FC.

Depois de publicar a matéria, o site leva ao ar, em uma série de três episódios, as conversas que teve com os personagens citados. A seguir, na íntegra, a entrevista com PVC, do Grupo Globo e da Folha de S. Paulo, que também passou pelos canais ESPN Brasil e FOX Sports.

Footure: O que pensa sobre a prática do futebol de rua?

PVC: Outro dia, eu vi uma entrevista… acho que do [Paul] Breitner, que era uma coisa de falar sobre como, na Alemanha, isso era muito forte nos anos 70, e me surpreendeu o fato de que esse alemão estava fazendo um discurso muito parecido com o que a gente faz há muito tempo no Brasil, que é do tipo ‘Perdemos o futebol de rua’, ‘Perdemos o futebol de várzea’, ‘Perdemos os terrenos baldios’, ‘Perdemos nossa essência’. Isso é muito marcante para nós. Eu ouço isso desde o começo dos anos 80, mas ouvir de um alemão mostra que tem, de fato, uma mudança de realidade.

Eu acho que, no Brasil, especificamente, a gente passou, nos últimos anos, vendo a Inglaterra se declarando home of football, e a gente começou a dizer ‘Não, o Brasil não é o país do futebol’. Eu acho que o Brasil é o país do futebol jogado. O Brasil nunca foi o país do futebol assistido, dos estádios lotados, mas o Brasil é um país que, se você jogar uma bola na beira do Rio Amazonas, o cara sai jogando. Se você jogar no meio da floresta amazônica, o cara sai jogando. Se você jogar numa favela em Belém, ele sai jogando. A nossa essência é o futebol jogado em qualquer tipo de terreno.

Até que ponto um jogo sem regras e limitações pode favorecer o jovem?

Eu acho que favorece, a questão não é essa. A questão é você saber em que momento ele vai fazer a transição. Nos anos 80, o Cláudio Mortari, que foi técnico da Seleção Brasileira de Basquete nos Jogos Olímpicos de Moscou, dizia que o futebol ia virar basquete, e eu acho que ele tinha toda a razão. O futebol virou basquete. No sentido de que, hoje, você recua a linha de ataque e sobe a sua linha de defesa e, quando você tem a posse de bola, muitas vezes você se percebe jogando num espaço de 12 metros, que é entre a linha da grande área e a intermediária. Então, você obriga o teu adversário a jogar diante de regras muito claras de coletividade.

Hoje, o jogador que sai da rua precisa ter o aprendizado tático. A gente trabalha a questão tática, muitas vezes, achando que tática é defesa, e não é. Está morto esse discurso de ‘No último terço, meu jogador resolve’. Não resolve. No espaço reduzido, eu preciso criar estratégias para o meu melhor jogador, o mais talentoso, ficar no um contra um, e não só o meu melhor. Esse aprendizado tático precisa acontecer em algum momento. O garoto precisa chegar às divisões de base do clube aos 14 ou aos 16, vai ter um cara que vai chegar aos 18 e vai ter mais dificuldade.

Qual a importância e influência do futebol de rua para o esporte, sobretudo no Brasil?

É a história do futebol brasileiro. Tem o risco de cair no lugar comum: ‘Ah, porque o Brasil, hoje, não revela mais jogadores como no passado porque não temos mais os terrenos baldios’. Isso eu ouvia lá em 81, esquece. Não é isso. O cara vai jogar na praia, o cara vai jogar na várzea, em São Paulo. Tem campo de várzea ainda, vai ter menos daqui a 20 anos, porque a cidade vai crescer mais do que já cresceu.

A questão é: o grande problema do futebol brasileiro é o êxodo. É a exportação excessiva. Agora, onde o jogador nasce, se ele nasce de classe média numa quadra de futsal, como foi o Rivellino, se ele nasce no campo de várzea, como o Garrincha, se ele nasce jogando na praia, como o Edu, do Santos, se ele nasce jogando futsal e no campo, como o Neymar… a gente tem milhares de condições de fazer, o fato é que a rua é o símbolo da paixão do brasileiro pela bola. Porque, se você jogar uma bola em qualquer lugar do Brasil, ele vai sair jogando, ela vai ser chutada.

Com o crescimento exponencial da tecnologia no futebol, como seguir encontrando jogadores dentro das periferias antes de scouts e times europeus?

Eu acho que é com observadores. Tem que ter um olheiro, tem que ter um descobridor de talentos que perceba onde está esse talento. E tem que mudar a estrutura que, nesse momento, com a pandemia, não vai acontecer, mas entender que eu posso manter o jogador aqui, por mais tempo. Entender que esse campeonato que se disputa aqui pode crescer.

Isso é impossível? Não, não é. Nos anos 90 e 80, o jogador inglês queria sair da Inglaterra. Hoje, todo mundo quer ir para lá. A gente tem uma dificuldade financeira. O Brasil não é Inglaterra no ponto de visto econômico, é verdade, mas o futebol inglês também não era. O futebol inglês também era um futebol de 19 mil pessoas de média de público. No ano passado, teve 21 mil aqui, de média. A gente precisa criar um ciclo virtuoso – o nosso ciclo é vicioso. É ‘Eu não tenho dinheiro, eu vendo meu jogador, a torcida vai menos ao estádio, tem menos patrocinador, tem menos dinheiro, eu vendo meu jogador’. Tem que ser o contrário. Eu mantenho meu jogador, eu trago mais patrocínio, eu tenho mais torcida, o jogador se encanta, o jogador quer ficar, o campeonato melhora e eu mantenho o meu jogador.

PVC: “O futebol de rua é a história do futebol brasileiro” (Foto: FOX Sports)

Como aliar o poder da tecnologia com a vontade de jogar futebol?

Esse é o problema do mundo inteiro, não é um problema do Brasil. A gente também não precisa romantizar a miséria. O jogador pobre, que tem como único brinquedo a bola, ele vai ser sempre importante de ser descoberto, porque o brinquedo dele é a bola. E o jogador que nasceu em uma outra posição, que o brinquedo dele é o videogame, esse jogador tem que se seduzir pela bola. Mas é possível você apresentar a bola e dizer ‘Olha aqui, isso que você está fazendo virtual é muito mais legal pessoal’.

No início da década, a França intensificou a prática do futebol nos subúrbios. Na última Copa, 8 dos 23 convocados foram criados nas periferias, como Mbappé, Pogba e Kanté. Vencer a Copa foi coincidência ou consequência?

Eu acho que a França faz o melhor trabalho de descoberta do planeta. Não é à toa que a França é o único país que rivaliza com o Brasil no número de jogadores nas fases de mata-mata da Champions League. E acho que esse é o processo anterior.

A França é um país de muitos altos e baixos. Você vê o resultado da França na Copa do Mundo, que é incrível como ela sobe e desce. Em 82, 4º lugar; 86, 3º lugar; 90 e 94, não se classificou para a Copa; 98, campeã do mundo; 2002, eliminado na fase de grupos; 2006, vice-campeã do mundo; 2010, eliminado na fase de grupos; 2014, eliminada nas quartas de final; 2018, campeã do mundo, que, aqui, foi o trabalho regular, de sequência do [Didier] Deschamps, que é um técnico muito coerente, muito mais do que era o [Raymond] Domeneck. Você percebe que são altos e baixos, mas eu acho que o processo de descoberta da França começa com trabalho de Claire Fontaine, no começo dos anos 90.

Escolinhas de futebol substituem o futebol de rua?

Eu acho que as coisas têm que ser complementares. Uma mãe de classe média não vai deixar o filho dela jogar bola na rua, passando o carro na rua que ela mora, até às 22h. Mas uma criança em Duque de Caxias, mesmo em Belford Roxo, vai jogar bola na rua, e a capacidade que é preciso ter é fazer o futebol ocupar 8,5 milhões de quilômetros quadrados. O grande problema é que o Brasil anda revelando jogadores em 20 clubes, que é o mesmo território da Itália, só que o Brasil tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Quando a gente também olha para essa questão das escolinhas, a gente está olhando para uma realidade de classe média, média-baixa nas grandes cidades, e você não precisa descobrir jogador só nas grandes cidades.

Quais os principais jogadores com características de futebol de rua?

O Mbappé é potência e velocidade. O Neymar, que saiu do futsal, dos campos também, da praia também, da rua também, é habilidade pura. O contraste é a característica do jogador. O Ronaldo é um jogador de rua, mas que tinha potência, força, velocidade. Tinha técnica, tinha o drible. O Mbappé também tem. Em teoria, a rua vai te dar mais necessidade da habilidade, porque você não precisa driblar só o adversário, você precisa driblar o terreno.

Compartilhe

Comente!

Tem algo a dizer?

Últimas Postagens

A prospecção do Grêmio ao mercado Sul-Americano

A prospecção do Grêmio ao mercado Sul-Americano

Lucas Goulart
Cinco jogadores que se destacaram na Copa América

Cinco jogadores que se destacaram na Copa América

André Andrade
As influências dos campos reduzidos na Copa América

As influências dos campos reduzidos na Copa América

Douglas Batista
FIQUE DE OLHO: Jogadores Sub-23 que podem se destacar na Copa América 2024
André Andrade

FIQUE DE OLHO: Jogadores Sub-23 que podem se destacar na Copa América 2024

A EVOLUÇÃO DE GABRIEL SARA NA INGLATERRA

A EVOLUÇÃO DE GABRIEL SARA NA INGLATERRA

Douglas Batista
EURO 2024 | COMO CHEGA PORTUGAL

EURO 2024 | COMO CHEGA PORTUGAL

Gabriel Mota
EURO 2024 | COMO CHEGA A BÉLGICA

EURO 2024 | COMO CHEGA A BÉLGICA

Vinícius Dutra
EURO 2024 | COMO CHEGA A FRANÇA

EURO 2024 | COMO CHEGA A FRANÇA

Gabriel Mota
EURO 2024 | COMO CHEGA A HOLANDA

EURO 2024 | COMO CHEGA A HOLANDA

Lucas Goulart
EURO 2024 | COMO CHEGA A INGLATERRA

EURO 2024 | COMO CHEGA A INGLATERRA

Vinícius Dutra
EURO 2024 | COMO CHEGA A ITÁLIA

EURO 2024 | COMO CHEGA A ITÁLIA

Lucas Goulart
EURO 2024 | COMO CHEGA A ESPANHA

EURO 2024 | COMO CHEGA A ESPANHA

Vinícius Dutra
EURO 2024 | COMO CHEGA A ALEMANHA

EURO 2024 | COMO CHEGA A ALEMANHA

Lucas Goulart
O crescimento de Andrey Santos no Strasbourg

O crescimento de Andrey Santos no Strasbourg

Douglas Batista
Os treinadores de bolas paradas no futebol e a importância de Nicolas Jover no Arsenal

Os treinadores de bolas paradas no futebol e a importância de Nicolas Jover no Arsenal

André Andrade