Pablo Vicó, o homem sem medo de amar

Tão bela e romântica quanto pouco conhecida, a história de Pablo Vicó e do Brown de Adrogué se mistura em decepções, alegrias e expectativas nos escalões inferiores do futebol argentino

“São raros os momentos em que vocês não irão me ver vestidos com os trajes do clube. Existem técnicos que dirigem seus times de paletó e gravata, mas eu não posso. Não me sinto confortável. Me deixem assim, me amem como eu sou”

Mais do que esta frase em si, talvez a palavra “simplicidade” seja o termo que melhor defina quem é Pablo Vicó. Simplicidade, esta, que carrega consigo dentro e fora de campo. É bem possível que muitos não conheçam um dos treinadores mais longevos do futebol sul-americano, afinal, estamos falando de um profissional e de um time que fogem da alça de mira do grande público. E não há como falar de Vicó e do modesto Brown de Adrogué separadamente. Vicó é o Brown, e o Brown é Vicó.

Desde 2009 no comando da equipe ao sul de Buenos Aires, o Ferguson do Conurbano faz literalmente do clube a sua casa. Sua moradia fica a pouco menos de 100 passos da linha lateral do gramado do Estádio Lorenzo Arandilla, onde orquestra seu time a cada final de semana nas divisões inferiores do futebol argentino. Um beliche onde acomoda seus objetos pessoais, uma cama de solteiro, uma televisão, uma mesa redonda e alguns eletrodomésticos são tudo de que Vicó dispõe em seu cômodo há mais de 10 anos.

Essa década é apenas metade da história que possui com os tricolores. Sua trajetória com o clube de Adrogué já ultrapassa as 20 primaveras. Após se aposentar dos gramados, iniciou sua carreira na casamata orientando os times de base do Brown em 1997. Após a demissão de Juan Pablo Kopriva, em 2009, assumiu a equipe profissional como interino e, desde então, nunca mais deixou a beira do campo.

Seus bigodes espessos, cabelos despenteados e a fisionomia magra lhe renderam o carinhoso apelido de Don Ramón, em referência ao icônico personagem conhecido no Brasil como Seu Madruga, do seriado Chaves. Claro, o personagem criado em torno dele ajudou bastante no carinho nutrido pela torcida, mas alguns momentos de sucesso dentro de campo para os padrões do Brown colaboraram para o fanatismo por Vicó.

Em 2013, levou o clube ao acesso para a Primeira B Nacional (segunda divisão argentina) pela primeira vez na história, ao bater o Almagro nos playoffs em uma disputa de pênaltis infartante. Sofrendo com o “efeito ioiô”, o time de Adrogué caiu em 2014 para a Primera B Metropolitana (terceira divisão). Porém, em 2015, a maior e mais agônica glória da agremiação veio.

Brigando não apenas pela promoção ao segundo escalão, mas também pelo título, o Brown (78 pontos) entrava em campo na última rodada contra o Deportivo Morón precisando vencer e torcendo por um empate no confronto direto entre Estudiantes de Caseros (79 pontos) e Defensores de Belgrano (78 pontos). No jogo dos postulantes, o 0 a 0 não saiu do placar até o final. Em Morón, o marcador em 1 a 1 não servia para as aspirações tricolores mesmo com o resultado paralelo perfeito. Isso até os 49 do segundo tempo. Após cobrança de escanteio do lado esquerdo e um desvio de cabeça, Juan García surgiu nas costas da defesa rival para empurrar a bola para a rede, garantir a vitória, o acesso e a primeira taça da carreira de Pablo Vicó.

Pablo Vicó
A comemoração dos jogadores e comissão técnica do Brown de Adrogué, no Lorenzo Arandilla, após o título da terceira divisão em 2015 (Imagem: Brown de Adrogué/Site Oficial)

A conquista teve um sabor ainda mais especial – e carregado de emoção – para o técnico. No começo de 2015, Vicó havia perdido seu filho em um acidente automobilístico. O duro golpe o fez cogitar abandonar o futebol. Entretanto, soube tirar forças desta tragédia e, ao apito final no Estádio Francisco Urbano, suas primeiras palavras foram dedicando o título a seu filho. De quebra, foi aplaudido pela torcida do Deportivo Morón, complementando o ambiente de comoção e felicidade.

Além dos acessos, a passagem de Vicó pelo Brown é marcada por duas vitórias contra uma das equipes mais tradicionais da Argentina: o Independiente. A primeira delas aconteceu em 2013, logo rodada inaugural da Primera B Nacional, quando o tricolor estreava na segunda divisão e, por coincidência, os rojos experimentavam o ineditismo de um descenso. O triunfo por 2 a 1 em pleno Libertadores de América foi um verdadeiro choque, mas não foi influente o suficiente para impedir o retorno do Independiente à elite nem a queda do Brown ao final da temporada. A segunda, não menos chocante, veio na Copa Argentina, na temporada 2017/2018. Após o 1 a 1 no tempo normal, superou seu poderoso oponente nas penalidades por 4 a 3.

Atualmente, o treinador vem lutando para elevar o nível do Brown e conseguir levar seu amado clube à Superliga pela primeira vez na história. Nos últimos anos, inclusive, passou muito perto de conquistar seu objetivo, chegando nas quartas de final dos playoffs de acesso em 2018/19 e na semifinal em 2017/18. Nesta temporada suspensa por conta do COVID-19, não vinha tendo o mesmo sucesso, ocupando apenas a 10ª posição do grupo da Zona B entre 16 equipes, com 24 pontos em 21 jogos.

Mesmo assim, resultados e sucesso são apenas meros detalhes para Pablo Vicó e para o Brown de Adrogué. Em tempos de amores líquidos, um homem e uma instituição desafiam a tese de Zygmunt Bauman em um modesto canto das redondezas de Buenos Aires. Enquanto existir um campo, uma bola e onze homens dispostos a trajar o vermelho, celeste e preto do Brown, Don Ramón seguirá, por si só, sendo um refúgio do romantismo do futebol em terras meridionais. E para resistir, não precisa nada além do cimento frio do Lorenzo Arandilla e de seu bigode a cada final de semana.

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